maio 11, 2010

Para que servem os críticos literários – e por que não é bom matá-los

Encontrei esta edificante historinha no blog da Livraria Pó dos Livros, de Lisboa, e decidi compartilhar com vocês:

A importância de um bom crítico

No quarto de um célebre escritor, vivia um rato que não se alimentava de outra coisa senão dos textos que o famoso escritor produzia durante o dia. Este rato era a sua desgraça. Nem mesmo um gato vigilante conseguia chegar-lhe ao pêlo, nem as mais estranhas invenções, as mais variadas e engenhosas ratoeiras, conseguiam evitar a destruição de páginas inteiras de prosa, escrita no mais doce papel que o escritor se via obrigado a reescrever continuamente. Certo dia o escritor decide, em vez de escrever ficção, passar a escrever poesia, na esperança que o rato não gostasse do género. Entusiasmado, inspirado com tal ideia, escreve num só dia um livro inteiro. Cansado vai dormir. No dia seguinte, para seu espanto, jazia em cima de um dos seus poemas o rato.
– Finalmente morreste! – pensou o escritor – Que sorte a minha, apenas tiveste tempo de roer o meu primeiro verso.
Reza a história que desde aí nunca mais o escritor teve sucesso. Nem na prosa, muito menos na poesia.

Anos mais tarde, ao perguntarem-lhe qual teria sido a causa da sua desgraça enquanto escritor, terá respondido:

– Matei o meu melhor e mais exigente crítico, com apenas um mau poema.

Nota: esta história foi inspirada numa fábula da literatura espanhola.

Jaime Bulhosa

maio 05, 2010

O que parcela da crítica literária quer?

O que se esconde no substrato do texto prolixo e confuso de Flora Sussekind é uma determinada concepção de literatura – uma concepção excludente, preconceituosa e autoritária.

Concepção, aliás, defendida por significativa parcela da crítica literária brasileira contemporânea. Para esses críticos, ou a literatura se transforma num vanguardismo eterno – no qual a linguagem é elevada à condição de única protagonista da obra, o que gera livros sem enredo e sem personagens, narrativas nas quais enredo, personagens, fluxo de tempo, configuração do espaço etc. amontoam-se num verdadeiro caos –, ou abraça cegamente o dogma do politicamente correto – e cria obras em que as chamadas minorias sociais são sempre apresentadas como boas, justas, belas, corretas e bem-aventuradas. Ou, ainda, une as duas possibilidades e dá vida a narrativas que, além de incompreensíveis, são também demagógicas.

Para tais críticos, a obra literária que não se incluir em alguma dessas categorias já está classificada, de antemão, como mero exercício beletrista, ultrapassado e, portanto, condenado ao desprezo absoluto desses luminares.

Não importa que, ao seguir esses dogmas absurdos, a produção literária se distancie radicalmente do leitor, transformando-o em um ser incapacitado para decodificar o texto, condenando-o a ler sem entender, ou ler defrontando-se com dificuldades sobre dificuldades. O que importa para tais críticos é a mistificação de que a verdadeira obra de arte literária é, necessariamente, enigmática, difícil de ser compreendida. Ou seja, a leitura, para ser uma experiência realmente libertadora, deve se tornar, necessariamente, um exercício obscuro, aflitivo – uma nova forma de tortura.

Além de expulsar o leitor do sistema literário-cultural, essas concepções críticas reforçam um fenômeno exótico: o dos escritores que se bajulam mutuamente em suas seitas particulares, repetindo o que Antonio Candido já detectou nos primórdios da vida cultural brasileira: a situação artificial em que os próprios escritores são “ao mesmo tempo grupo criador, transmissor e receptor; grupo multifuncional de ressonância limitada e dúbia caracterização, onde a literatura acabava por abafar a si mesma, esterilizando-se por falta de um ponto de apoio”.

É óbvio, portanto, que esses mandarins pretendam assassinar duplamente Wilson Martins (como propõe Flora Sussekind). Isso não é nenhuma novidade, pois já assassinam, no nascedouro, qualquer narrativa que não siga os limites estreitos que eles pretendem impor à literatura nacional.

maio 03, 2010

Em defesa de Wilson Martins

Transcrevo abaixo, com a autorização de Affonso Romano de Sant'Anna, o artigo que ele publicou hoje em seu blog, resposta sóbria, lúcida e destemida ao artigo de Flora Sussekind:

Crítica do necrológio e necrológio da crítica

Affonso Romano de Sant'Anna

1. Crítica do necrológio

Quando Wilson Martins morreu, várias pessoas escreveram lembrando sua obra. E algumas lamentaram sua morte. Mas Flora Sussekind lamenta que Wilson Martins tivesse vivido. Por isto, no no texto publicado n’O Globo (23.04.2010), afirma expressamente que talvez seja necessário “matar uma vez mais Wilson Martins”. Ou seja, além da morte física, ela se esforça por extirpar os textos de Wilson da literatura brasileira.

No texto de Flora, em que tantos leitores já acusaram estilística e retoricamente um pensamento tortuoso e mal formulado, é possível, com mais paciência, desentranhar vestígios de questões que poderiam ser mais claramente expostas. Ao que parece, ela pretende fazer uma análise da situação da crítica literária no país. E aí logo surge a questão: será que realiza o seu intento? Dentro deste propósito ela se detém não exatamente sobre a obra do crítico Wilson Martins, mas sobre o seu suposto necrológio feito especialmente por três críticos: Alcir Pécora, Miguel Sanchez Neto e Sérgio Rodrigues.

Vou tratar aqui da “maltratada” questão do “necrológio” e do mito do “herói solitário”, deixando para outra oportunidade outros equívocos da autora.

Aos ingênuos poderia parecer uma simples metáfora essa de “matar uma vez mais Wilson Martins”, pois o objetivo dela seria uma reflexão para se rever a crítica literária no país. Não é bem assim. “Matar” é tirar a vida, eliminar, apagar, limpar os vestígios. E a ensaísta está tão incomodada com o nome ou o fantasma de Wilson Martins rondando seu imaginário que investiu contra aqueles que escreveram sobre ele quando ele faleceu. Não basta ter ocultado, censurado o nome do crítico nos cursos de literatura quando ele era vivo, agora é necessário também censurar (quem sabe “matar”?) os que escrevem sobre ele.

Se algum estudante de linguística, de literatura ou psicolinguística aplicar a técnica da “análise de conteúdo” à diatribe que ela escreveu, vai notar que palavras como “ressentimento”, “agressivamente”, “virulência”, “truculência”, “exacerbado” pavimentam sintomaticamente o seu texto.

Isto consubstancia uma “pulsão de morte” sub specie crítica que no plano político e social aproxima-se de ideologias e regimes que incitam a matar, extirpar nomes e imagens de adversários como forma de apropriar-se da história.

Dito isto, tenho que me demorar ainda mais um pouco sobre a questão do necrológio, já que a autora do interessante ensaio “O sapateiro Silva” insiste em sapatear sobre a sepultura de Wilson Martins. Consideremos o sentido do necrológio tanto na sociedade primitiva quanto na civilizada. Diga-se logo, que ao negar aos outros que façam o necrológio afetivo ou intelectual de Wilson Martins, talvez Flora esteja escrevendo um epitáfio para si mesma enquanto crítica, além de promover uma desleitura do que significam os necrológios na antropologia e na sociologia.

A celebração, a evocação dos mortos não é uma aberração nem pode ser abolida pela pretensa racionalidade de alguém, pois são exigência do imaginário humano. As sociedades recorrem a esses rituais para elaborar sentimentos, remorsos, fantasias e até dialogar com a morte. Diz L. V. Thomas que “o homem é um animal que enterra seus mortos”. Acrescenta Françoise Charpentier que “nenhum grupo humano se desinteressa de seus cadáveres”. E Michel Ragon (“L'espace de la mort”) arrola umas 15 maneiras que as diversas culturas elaboraram de lidar com seus mortos: fazendo tumbas, incinerando, praticando o canibalismo, expondo-os às bestas ferozes, jogando ao mar, lançando ao fogo, colocando em urnas, árvores, nichos etc.

Na tragédia Antígona, Sófocles narra a patética estória da heroína procurando enterrar seu irmão Polinice, ao qual o rei Creonte negava o direito de sepultura. Antígona enfrenta o poder e enterra o irmão. Negar a sepultura e o ritual necrológio a Polinice foi o princípio crítico da decadência de Creonte, como advertiu o sábio Tirésias.

Só nos regimes e mentalidades autoritários destroem-se cemitérios, apaga-se a história, faz-se tabula rasa do passado. Os familiares dos mortos na última ditadura que tivemos (e eu vivi este período) ainda clamam pelo direito de enterrar seus “desaparecidos”. De resto, neste caso, é bom lembrar aquele imperador chinês, que mandou não só matar todos os sábios da corte, mas queimar seus livros, e decretou que a história começasse com ele mesmo.

Por sua vez, a cultura barroca, refazendo os costumes arcaicos, elaborou uma oratória, um “elogio fúnebre” que era um gênero literário dos mais considerados e com uma função social específica. Phillippe Ariès nota que uma das características da sociedade industrial “contemporânea” (e Flora se quer “contemporânea”), é perverter, disfarçar e até interditar o sentimento de morte. No entanto, mesmo modernamente, o “necrológio”, sobre ser um fato socioantropológico, é também um gênero jornalístico e literário cultivado com singularidade pelo The Times e The New York Times, que têm redatores especializados no assunto.

Lembro essas coisas, mas me dou conta que o incômodo que a figura de Wilson Martins provoca em Flora é de tal ordem, que ela está execrando até mesmo os necrológios feitos sobre cadáver recente.

Talvez se devesse lhe dizer: Flora, você não tem que levar flores à tumba de Wilson Martins. Mas também não tem que dar chutes nem tentar destruir sua lápide.

2. O mito do herói solitário

No processo de decomposição da imagem de Wilson Martins, Flora Sussekind refere-se, por duas vezes, ao fato que alguns o consideram um “herói solitário”. Ela ironiza essa expressão ou idéia que estaria expressa ou subentendida nos textos escritos sobre ele.

Aqui a questão torna-se constrangedora e pode-se supor que ela desconhece não só a obra como a própria vida desse anti-herói. É querer ignorar que ele abriu mão de agremiações literárias, abriu mão de grupelhos e de partidos e centrou-se desde sempre no seu fazer crítico. É não saber que por ter as opiniões críticas que tinha, foi despedido de vários jornais. E no último jornal em que trabalhou, ou não recebia pagamento ou tinha que se esforçar para tal. É querer negar o que há de solitário e heróico em realizar, sozinho, uma obra complexa como História da Inteligência Brasileira, em 7 volumes. É querer invalidar além dos 2 volumes de A crítica literária no Brasil, os 17 volumes de críticas jornalísticas. É querer negar que ele é o único historiador e crítico que fez uma leitura abrangente de nossa cultura de 1500 até 2010. Ninguém fez isto entre nós. E noutras literaturas não sei de nada semelhante. Durante sua trajetória, alguns críticos evidentemente surgiram, mas trabalharam apenas alguns anos e pararam ou foram desestimulados. Ele persistiu desde 1942 até 2010, portanto, quase 70 anos. E é isto que a autora de “Até segunda ordem não risquem nada”, com meia dúzia de argumentos mal alinhavados, quer jogar no lixo.

Alguém pode até dizer malevolamente: melhor se Wilson Martins tivesse lido menos e pensado mais. Como tirada tem lá sua graça momentânea, mas não se ajusta a ele. Quem pretende ser crítico e historiador tem mesmo que ler “tudo” e não pode resumir-se a elogiar seus confrades e a operar pela exclusão (coisa que é muito familiar à autora de “Papéis colados”). E Wilson Martins, crítico semanal, estava na “linha de fogo” opinando sobre obras ainda não canonizadas. Como escrevi em outra ocasião, ao longo de cinco décadas de atividade crítica ele pode ter feito um inimigo por semana, ou seja, uns 2.600 ao longo de 50 anos. E certamente Flora é um deles, pois Wilson Martins mostrou o que ele chama de “falácias” de seu livro “O Brasil não é longe daqui”.

Lembremos, por outro lado, que essa obra extensiva e intensiva que Wilson Martins produziu, ele a elaborou não com uma equipe, mas individualmente, só, solitariamente, num tempo em que não havia Google ou internet. E mais, a executou apesar das suas deficiências físicas, movendo-se com dificuldade para chegar aos locais de trabalho e fazer suas pesquisas. Por isto, embora eu possa discordar dele quanto à leitura ou o julgamento de um autor ou outro, ou de uma idéia ou outra, diria que ele com sua deficiência física é mais imprescindível à cultura brasileira que outros com sua deficiência intelectual.

Uma das coisas mais irônicas, paradoxais, senão patéticas, que se pode constatar no texto de Flora é que ela, em alguns aspectos, está defendendo as mesmas teses de Wilson Martins, sem o saber. Em 1996, numa entrevista dada a José Castelo, o crítico já assinalava a “morte da crítica literária no Brasil”. Dizia, com a autoridade que tinha, que “nos jornais propagou-se com rapidez a idéia de que a crítica literária não tem mais importância”. Portanto, Flora está atrasadíssima no seu diagnóstico.

Garcia Marquez tem o conhecido romance, Crônica de uma morte anunciada, e vários autores têm livros onde falam da segunda morte de seus personagens. Isto me ocorre enquanto analiso o que está sucedendo nessa tentativa de novo assassinato de Wilson Martins. Na verdade, a “morte” de Wilson Martins já havia sido anunciada há muito. Ele mesmo se encarregou de divulgar isto, quando, naquela entrevista em 1996, disse que a morte da crítica literária estava em curso com as mudanças ocorridas na imprensa e na vida social. Neste sentido, o texto de Flora está atrasado 14 anos em relação ao de Wilson ao vir falar agora sobre “a perda de lugar social da crítica”. E mais: torna-se repetitivo. Quando Wilson assinalava, com tristeza e ironia, que a crítica literária estava sendo assassinada, havia um toque autobiográfico nisto, porque ele era crítico e estava, portanto, falando de seu próprio extermínio social. E essa que seria simbolicamente a morte de um gênero literário tornou-se algo mais concreto e físico quando o próprio Wilson foi demitido do jornal que, agora, sem crítico de literatura, alardeia o artigo de Flora sobre a morte da crítica literária.

Portanto, com a proposta de novo assassinato de Wilson Martins e diante desse desejo de “matar uma vez mais” o crítico, estamos diante de uma terceira morte. Mas como nas regras onde o mais é menos e o menos é mais, está ocorrendo um renascimento da obra do crítico, as pessoas estão procurando os seus volumes para entender a razão de tanto desejo de morte em relação a ele. A virulência desejada sobre seu nome está provocando interesse em torno de sua obra, para o tormento dos que querem autoritariamente controlar a vida e o sistema literário.

maio 02, 2010

“Poderoso esforço de síntese e de notável erudição”

O historiador Gunter Axt também acompanha os debates em torno do texto de Flora Sussekind – e conclui: “História da Inteligência Brasileira [de Wilson Martins] é resultado de um poderoso esforço de síntese e de notável erudição. Não é e nem precisa ser a interpretação última e mais acabada da cultura e da literatura brasileiras. É mais uma. E, em minha modesta opinião, muito útil, para todo aquele que deseja alcançar uma aproximação razoável ao Brasil”.

Vale a pena ler outros intelectuais que se manifestaram, parcial ou totalmente, contra o texto da ensaísta:

Affonso Romano de Sant'anna

Deonísio da Silva

Luís Antônio Giron

Sérgio Rodrigues

maio 01, 2010

Diplomacia contra a truculência

Hoje foi a vez de Sérgio Rodrigues responder à metralhada de Flora Sussekind. Para o meu gosto pessoal, usou de muita cordialidade. Nem sempre a diplomacia é a melhor resposta à truculência. Mas, enfim, sempre me esqueço, este é um país cordial. Sérgio não deixa de apontar, com acerto, ao menos dois graves problemas de parcela da crítica literária contemporânea: a “rendição incondicional à antropologia”, enaltecendo os escritores que se preocupam apenas em ser porta-vozes dos “despossuídos literários: mulheres, negros, gays, favelados”, e o endeusamento da “transgressão”, do “escrever mal”. É uma pena que, ao fazê-lo, tenha se sentido obrigado a diminuir o valor de Wilson Martins, que, em sua opinião, “se ao morrer andou sendo saudado por aí como um gigante, em evidente exagero, isso parece se dever menos à sua estatura do que ao cenário liliputiano construído ao seu redor” – afirmação com a qual não posso, de forma alguma, concordar.

No entanto, temos de saudar o fato de o violento artigo da mandarina ter sido contestado por alguns no transcorrer da última semana: além de Sérgio Rodrigues, Affonso Romano de Sant'anna, Deonísio da Silva e Luís Antônio Giron.

abril 29, 2010

“Wilson Martins nos legou uma atitude ética”

Agora é Luís Antônio Giron, da Época, quem fala sobre o artigo de Flora Sussekind. Na opinião do crítico, a ensaísta assumiu o “papel de carrasca exumadora de cadáveres”. E ele completa: “Não compreendo ela chutar um crítico morto, que é pior que um cachorro morto neste país que odeia quem aponte erros, quem denuncie ideias, quem leia com atenção”. Na opinião de Giron, Wilson Martins “foi um exemplo ético a ser seguido por qualquer pessoa que queira se devotar ao estudo da cultura”.

Ao lado de Affonso Romano de Sant'anna e Deonísio da Silva, Luís Antônio Giron forma o solitário trio de intelectuais que, até agora, demonstrou coragem e caráter para se contrapor ao mandarinato da crítica literária brasileira.

abril 28, 2010

A arte de escrever

Começa hoje o curso “Em Busca da Prosa Perdida - Fundamentos e Possibilidades da Arte da Escrita”, ministrado on-line pelo escritor Antônio Fernando Borges. Acabo de assistir à Aula Zero e me parece uma ótima oportunidade para todos aqueles que desejam utilizar a língua portuguesa não só como instrumento de comunicação, mas principalmente como “arte da expressão e da tradução de ideias em palavras”.

Hoje, quando a língua portuguesa é ultrajada do mais alto dignitário do país até alguns novíssimos escritores – que tentam esconder sua insegurança e sua negligência em relação à língua citando ambíguas teorias estéticas –, um curso com tais objetivos precisa ser recebido com entusiasmo e otimismo.

abril 27, 2010

“Jamais discordou de Wilson Martins quando ele era vivo”

Depois de Affonso Romano de Sant'anna, hoje foi a vez de Deonísio da Silva rebater o panfleto de Flora Sussekind. Segundo o escritor e jornalista, Sussekind

“perpetrou várias indelicadezas e equívocos no caderno 'Prosa&Verso' de O Globo (24/4/2010). Não apenas com o que disse, mas com o que costuma silenciar, pois ela deve conhecer a qualidade de livros e autores que omite em suas pesquisas. Como disse Eduardo Portella, 'o silêncio é aquilo que se diz naquilo que se cala'.

O pior de tudo é que jamais discordou de Wilson Martins quando ele era vivo. Em cima de seu caixão, com o profissional morto, ela, não só desanca sua obra, como ainda fala mal de quem falou bem do crítico [...]”.


O que posso dizer? É a ética dos mandarins da crítica literária nacional.

abril 26, 2010

Ódio esquerdista

Affonso Romano de Sant'anna está certíssimo: o artigo de Flora Sussekind, publicado em O Globo, no último sábado, não passa de uma "metralhadora alucinada e giratória". Nada surpreendente quando se trata dos esquerdistas, peritos em autoritarismo e processos de limpeza ideológica. A impressão que se tem, ao final da leitura desse texto rançoso, cheio dos jargões e da sintaxe confusa que parcela da crítica literária brasileira adora usar, é de que terminamos de ler o libelo acusatório de um tribunal stalinista. E ainda há quem siga, de olhos fechados, esses inquisidores-mores!

abril 05, 2010

O ingrato trabalho do tradutor na lusofonia

Desidério Murcho, que não passa uma semana sem publicar comentários instigantes no blog Crítica, escreve hoje um ótimo texto em defesa de Denise Bottmann e sua corajosa campanha contra o plágio de traduções no Brasil. Levando o problema para o âmbito dos países de língua portuguesa, sem excluir Portugal, Murcho acerta na mosca: “na lusofonia, o tradutor não é considerado um autor, o que é inaceitável. Os nomes dos tradutores de países culturalmente mais sofisticados vêm na capa dos livros, e os tradutores têm direitos intelectuais sobre a sua tradução: são co-autores, juntamente com o autor original. É um trabalho intelectual criativo, único, irrepetível. E que dá muito, muito trabalho, para ser bem feito. É inaceitável usar o trabalho de um tradutor, eliminando-lhe o direito de autoria”.

Aos interessados em acompanhar o debate, sugiro que leiam o blog de Denise, Não gosto de plágio, e, caso se sensibilizem com sua causa, assinem o Manifesto de Apoio que conta com quase três mil assinaturas. Como já afirmei aqui em outras oportunidades, Denise Bottmann presta inestimável serviço à cultura brasileira, ao mercado editorial e a todos nós, que amamos os livros.

março 27, 2010

Tolstói sem pedantismos

A crítica literária de José Maria Guelbenzu tem, dentre várias qualidades, a de ser isenta do artificialismo que, cada vez mais, contamina parcela significativa de seus colegas brasileiros. Entre nós, tornou-se um hábito saturar o texto crítico com a terminologia estruturalista, abusar dos academicismos, como se esses vocábulos, completamente distantes dos leitores de jornal, pudessem acrescentar algum significado etéreo, inusitado ou surpreendente ao texto literário. Na verdade, não passam de pedantismos, transformando o texto que deveria esclarecer numa selva fechada, impenetrável ao leitor comum, algaravia que, às vezes, serve para esconder a pusilanimidade de julgar.

Vejam, por exemplo, o texto de Guelbenzu deste sábado, no Babelia, em que ele fala sobre o Anna Kariênina: transparência, objetividade. Não, o crítico não diminui suas ideias, não as torna fáceis apenas para ser lido por muitos, mas explicita seu julgamento com clareza. O leitor informado percebe, nos alicerces, todo o aparato crítico contemporâneo, os avanços e retrocessos da ciência da linguagem, mas ninguém precisará recorrer a um dicionário – e, chegando ao final, somos recompensados: sabemos exatamente o que Guelbenzu quis dizer, o texto não turvou nossa compreensão; ao contrário, nos aproximou ainda mais do universo de Tolstói.

Leiam. O texto flui. O sentimento de intimidade é tão grande, que parece estar escrito em português.

março 20, 2010

Advertência aos defensores da liberdade

Roberto Romano, com sua habitual lucidez, escreve no Estadão sobre “os cosméticos que tombam da face governamental”. A fala dogmática do PT, maquiada pelo marketing político nos últimos anos, começa, de fato, a reaparecer, e o professor de Ética da Unicamp lembra que as afirmações do cínico nº 1 do país, feitas em 1986, continuam atuais, corroboradas pelos recentes discursos ridicularizando os presos políticos da ditadura cubana e pelas conferências, ditas “populares”, sobre a cultura e os meios de comunicação. Voltam, assim, à tona, aquelas perigosas e temerárias palavras: “a liberdade individual está subordinada à liberdade coletiva. Na medida em que você cria parâmetros aceitos pela coletividade, o individualismo desaparece. Ou seja, não há razão para a defesa da liberdade individual”.

Pensamento herdeiro da pior e da mais criminosa cepa esquerdista, esse que pretende submeter a liberdade individual a certa imaginária “coletividade”, palavrinha sob a qual nós – os que não se entregam ao sono da consciência e permanecem vigilantes – sabemos muito bem que, semelhante ao lobo fantasiado de cordeiro, se esconde outra, adorada pelos totalitaristas: Estado.

É o que a esquerda quer: garrotear a imprensa, submeter as manifestações culturais à pauta censória do politicamente correto, ditar os rumos da pesquisa científica (vejam-se, por exemplo, os critérios tácitos seguidos hoje pelo CNPq para concessão de bolsas na área de Humanas) e, passo a passo, controlar cada escaninho do país. Roberto Romano está certo: as falas do presidente da República devem servir como advertência àqueles que amam e defendem a verdadeira liberdade.

março 19, 2010

Poetão ou poetinha?

Demolidora, para dizer o mínimo, a crítica de Luis Dolhnikoff ao livro Esquimó, de Fabrício Corsaletti, publicada na Revista Sibila. As conclusões de Dolhnikoff são bem-humoradas e devastadoras: "Um meninão brincalhão e espertalhão, que ao notar o pote da geleia geral a transbordar e a lambuzar a estreita prateleira da poesia, meio esquecida na parte menos luminosa da cozinha bagunçada da arte brasileira, foi lá e meteu sua colherzinha".

Ao que parece, somos, eu e Dolhnikoff, as únicas vozes que ousam divergir do prematuro e irresponsável consenso que se formou em torno dos livrinhos, em prosa e verso, de Corsaletti. Para os que se interessarem, analiso a prosa do "poetinha", como a Folha de S. Paulo o qualificou em fevereiro deste ano, no texto "A pequena alegria de Corsaletti", também na Revista Sibila.

março 14, 2010

O hábito da infâmia

O magnífico e corajoso artigo do escritor Antonio Muñoz Molina, publicado na edição de ontem do Babelia, é um verdadeiro repto. Depois de uma semana sem ler, afastado dos meus prazeres por uma cirurgia que me deixará de cama por cerca de um mês, o artigo de Muñoz Molina produz efeitos semelhantes aos de uma exitosa antibioterapia. Deveria ser inoculado nos intelectuais brasileiros que silenciam diante das atrocidades cometidas pelo regime cubano e pactuam com os discursos insultuosos de Lula. Discursos, aliás, que, repletos de ironia vulgar, não passam de exemplos da pior logorreia.

"Yo pensaba que ser de izquierdas era estar a favor de la igualdad justiciera de los seres humanos, del derecho de cada uno a vivir soberanamente su vida. No imaginaba que duraría tanto la costumbre estalinista de injuriar a los perseguidos y a los asesinados." (Antonio Muñoz Molina)

março 05, 2010

Os pecados de Wilson Martins

Em artigo publicado no Rascunho deste mês e no site do Instituto Millenium, falo sobre Wilson Martins, esse nobre (no sentido que Ortega y Gasset dá à palavra) intelectual que, dentre outras inúmeras qualidades, se recusou a seguir modismos, não era paternal, não silenciava diante de erros e omissões – e não se fazia de cego ou surdo quando discordava dos supostos mandarins da literatura brasileira.

março 04, 2010

Tzvetan Todorov e Wilson Martins

Tzvetan Todorov, em entrevista publicada na Bravo! deste mês, nos presenteia com ideias lúcidas, infelizmente desprezadas pela maioria dos acadêmicos e críticos literários brasileiros:

“O bom crítico – e também o bom professor – deveria recorrer a toda sorte de ferramentas para desvendar o sentido da obra literária, de maneira ampla. Esses instrumentos são conhecimentos históricos, conhecimentos linguísticos, análise formal, análise do contexto social, teoria psicológica. São todos bem-vindos, desde que obedeçam à condição essencial de estar submetidos à pesquisa do sentido, fugindo da análise gratuita”.

Diante dessa visão equilibrada – para a qual Todorov evoluiu depois de superar sua adesão irrestrita ao estruturalismo –, lembrei-me de Wilson Martins, que defendia pontos de vista semelhantes e que, ao fazer crítica literária, sempre rejeitou o que chamava de “monismo de julgamento”, afirmando que a crítica jamais poderia se “confinar nos princípios e métodos de uma determinada família espiritual, mas exigiria, ao contrário, a contribuição simultânea de todas elas”.

Wilson Martins pagou um alto preço por caminhar na contramão dos modismos que, no Brasil, a maioria segue sem refletir. Mas, vejam que ironia, Todorov, antes um monista, veio ao seu encontro.

março 03, 2010

Três verdades em sete minutos

É uma pena que a TV Estadão não tenha disponibilizado a íntegra da palestra de Leopoldo Bernucci realizada no evento “Euclides da Cunha 360º”, em agosto de 2009.

Bernucci, que é professor de Literatura Latino-Americana na Universidade da Califórnia e autor de três obras fundamentais sobre Euclides da Cunha – a edição comentada de Os Sertões (Editora Ateliê/Imprensa Oficial do Estado), A imitação dos sentidos (Edusp) e, ao lado de Francisco Foot Hardmann, a edição da Poesia reunida (Unesp) –, toca, no pequeno trecho a que podemos assistir, em três questões fundamentais:

1. Salienta a importância de se ler a obra, mas também de se conhecer o homem, a biografia, retirando (os comentários a seguir são meus) os estudos literários da influência nefasta do estruturalismo – que, além de outros pecados, se pretende exclusivo, superior às demais escolas de interpretação e portador da única chave possível para se analisar e compreender não só o texto, mas todas as formas de linguagem e a própria vida.

2. Ainda que não cite nomes, alerta para o fato de que, nos últimos anos, as leituras da obra euclidiana estão como que fossilizadas, pois excessivamente laudativas, capazes somente de coroá-la com jaculatórias.

3. E, finalmente, cita um aspecto curioso, para dizer o mínimo, do nosso país, no qual se cultua um autor controverso – ou seja, que, ao invés de ser endeusado, deveria ser debatido –, prática, certamente, fruto de uma cultura em que não se aprende a ler de maneira compenetrada e crítica, na qual o fascínio pela palavra escrita se sobrepõe à sua compreensão. Um país estrambótico (adjetivo meu) no qual há mais editoras que livrarias.

Vale a pena acompanhar, atentamente, a fala de Bernucci.

fevereiro 28, 2010

Manifesto de apoio a Denise Bottmann

Denise Bottmann (de quem falei no post anterior) vem denunciando, sistematicamente, plágios de tradução em seu blog “Não gosto de plágio”. No mercado editorial brasileiro, infelizmente, os casos são inúmeros. Em sua última denúncia, a tradutora apontou o uso indevido de uma tradução do romance Morro dos ventos uivantes – feita por Vera Pedroso para a Editora Bruguera, em 1971 – pela Editora Landmark (em 2007).

Em resposta à denúncia, a Landmark agora move um processo contra Denise, exigindo vultosa indenização por pretensos danos morais e materiais e, pior, que a Justiça silencie o blog, antes mesmo que se realize o exame do mérito da ação impetrada.

Defendendo a liberdade de expressão e o seriíssimo trabalho de Denise, quatro dos mais importantes tradutores brasileiros – Heloisa Jahn, Jório Dauster, Ivo Barroso e Ivone C. Benedetti – acabam de lançar na web um manifesto de apoio à tradutora. Manifesto, aliás, que já assinei – e que convido todos a assinarem.

fevereiro 27, 2010

Só ignorantes ou desonestos gostam de plágio

Com seu blog “Não gosto de plágio”, a tradutora Denise Bottmann presta inestimável serviço à cultura brasileira, ao mercado editorial e a todos nós, que amamos os livros. Com raro ânimo, ela acompanha o mercado livreiro e o silencioso – e infelizmente pouco reconhecido – trabalho dos tradutores nacionais, além de abrir espaço aos artigos de dois dos nossos maiores tradutores: Jório Dauster, autor de traduções exemplares de Nabokov, e Ivo Barroso, tradutor das obras completas de Rimbaud, apenas para citar um de seus magníficos trabalhos.

A Denise Bottmann, todo o nosso irrestrito apoio.

fevereiro 21, 2010

Não a sentimos – mas ela está aqui

Reportagem do El País deste domingo, assinada por Lola Galán, apresenta o cotidiano, as idéias e os sentimentos de Kurt Westergaard, o caricaturista dinamarquês condenado à morte pelos extremistas muçulmanos, desde que, em 11 de setembro de 2005, publicou, no diário Jyllands Posten, uma caricatura na qual Maomé usa um turbante-bomba. Segundo ele, o objetivo do editor de Cultura do jornal, Flemming Rose, era colocar o dedo na ferida da autocensura que impera no Ocidente, no que se refere a temas relacionados ao Islã.

As conseqüências provocadas pela caricatura mostram, de fato, tudo que o Ocidente tem a temer. Na verdade, essa autocensura se espalha, atualmente, de maneira silenciosa, pelos países democráticos, nos quais a liberdade de expressão deveria ser um direito inviolável. Quando se trata do Islã, uma sombra avança sobre as consciências – e governos, jornalistas, escritores, ilustradores, todos temem se contrapor ao avanço do obscurantismo. Muitos de nós talvez não sintam essa autocensura – mas ela está em toda parte.

fevereiro 17, 2010

Esclarecimento

A Folha de S. Paulo de hoje, na matéria “Poetinha”, do caderno Ilustrada, cita meu nome duas vezes (a segunda, aliás, de maneira errônea).

Desejo apenas esclarecer aos meus leitores que a crítica de minha autoria à qual o jornalista se refere en passant, “A pequena alegria de Corsaletti”, publicada na Revista Sibila há alguns meses, analisa um livro em prosa do “poetinha”. Como todos sabem, não me dedico à crítica de poesia.

No mais, continuo achando os elogios aos textos em prosa do autor exagerados. E como disse ao repórter que me entrevistou:

1) tornou-se um hábito no Brasil tratar como gênios escritores que mal começaram a carreira – basta ter os amigos certos e... pimba!, temos um novo Flaubert. A média, na última década, é de um novo gênio a cada bimestre;

2) talvez dentro de vinte, trinta anos, quem sabe um século, possamos dizer, com orgulho, que tal escritor “incorpora a lição de Manuel Bandeira”. O tempo dirá, com absoluta certeza, se estou errado ou não.

fevereiro 03, 2010

Tardança

O caminhante noturno segue sua jornada descontínua e sem rumo. Ele volta, numa de suas viagens recorrentes, à casa da avó paterna. O velho sobrado está às escuras – e, passo a passo, enquanto se acostuma às sombras, ele descobre mudanças na arquitetura. A escada que leva ao sótão alargou-se, está mais firme. Apoiado ao corrimão, ele sobe, mas desta vez, à sua esquerda, onde no passado havia apenas a parede, agora se abre um vão gigantesco, profundo, no qual ele vê, lá embaixo, a sacristia de uma das igrejas que frequentou na juventude. Certo homem carrega os paramentos engomados, dos quais sobressai uma estola verde, e sorri, satisfeito por alguma razão, sem perceber o observador que, acima dele, acompanha cada um dos seus gestos. A luz que brota do vão ilumina os degraus; o viajante observa, sob seus pés, o detalhe das madeiras novas, infelizmente não envernizadas, e continua a subir. Fora do sonho, seguindo o viajante através do descampado de sua mente, o homem que sonha se pergunta sobre o sentido de o personagem se deparar, naquele trecho da escada, com a sacristia; mas, impedido de agir, de se manifestar, ele pode apenas inquietar-se, tamanha a sua fragilidade. Voltando a subir a escada, o viajante chega à parte do casarão que deveria estar exatamente abaixo de onde ele se encontra, mas isso não o incomoda. A esposa e a mãe estão ali, arrumando os armários, desfazendo malas e caixas, mas ele – e também o homem que sonha – é dominado por um único pensamento: quando sua avó chegará? E o que ela pensará de tudo aquilo? De todas aquelas mudanças? Aprovará que ele volte a morar ali? Com tais pensamentos, ele senta à beirada da cama de casal e, lentamente, vai sendo tomado pela angústia, como se previsse a chegada iminente da avó, que – e é isso o que realmente o incomoda – sabe impossível, ainda que desejável, pois ela está morta. Então, deita-se na cama e dorme, entristecido. O homem que sonha olha uma última vez as mulheres atarefadas e desperta. Cabe a ele toda angústia, agora.

janeiro 04, 2010

O mito da participação política

O professor Desidério Murcho nos oferece novas reflexões provocadoras. Em seu mais recente artigo, Murcho pergunta se não estaríamos chegando ao fim da política, um tempo no qual as sociedades mais evoluídas – o professor não se refere, portanto, aos países que vivem sob os regimes populistas de Lula, Chávez e Morales, por exemplo – começam a perceber que os processos democráticos são apenas grandes ilusões. O que vocês acham?

Este é um dos bons trechos do artigo:

Um interesse intenso pela vida política só faz sentido para a generalidade das pessoas quando o conforto da sua vida privada está em risco, ou quando têm a esperança de que uma mudança política terá resultados importantes para a qualidade da sua vida privada. A partir do momento em que o barco está no bom caminho, digamos assim, as pessoas desinteressam-se. E penso que se não fosse a retórica da cidadania a generalidade das pessoas assumiria o seu interesse meramente instrumental na política. A questão é: o que há de errado nessa atitude? Usando a metáfora da República de Platão, defender a democracia é defender que toda a gente num navio deve ir dar dicas ao capitão sobre a maneira de manobrar o navio. Platão argumentava que isto é uma tolice porque a generalidade das pessoas não sabe manobrar navios. O pensamento democrático fica horrorizado com isto e insiste na rotatividade política e na participação aristotélica de todos nas manobras, ainda que indirectamente, através do voto e da imprensa livre. Mas aparentemente Platão conhecia melhor a natureza humana; não se trata de impedir toda a gente de mandar bocas sobre as manobras do navio. Trata-se, ao invés, de a generalidade das pessoas não estar interessada nisso — desde que o capitão demonstre a sua competência.

dezembro 31, 2009

Tem de haver mais

Agora o verão se foi
E poderia nunca ter vindo.
No sol está quente.
Mas tem de haver mais.

Tudo aconteceu,
Tudo caiu em minhas mãos
Como uma folha de cinco pontas,
Mas tem de haver mais.

Nada de mau se perdeu,
Nada de bom foi em vão,
Uma luz clara ilumina tudo,
Mas tem de haver mais.

A vida me recolheu
À segurança de suas asas,
Minha sorte nunca falhou,
Mas tem de haver mais.

Nem uma folha queimada,
Nem um graveto partido,
Claro como um vidro é o dia,
Mas tem de haver mais.

Arseny Alexandrovich Tarkovsky

A todos – amigos, leitores, clientes – um feliz 2010, repleto de boas leituras, tranqüilidade e harmonia.

***

Observação (em 3 de janeiro de 2010):

Lauro Machado Coelho, em seu Poesia soviética (Editora Algol), apresenta outra tradução desse poema:

Agora o verão passou.
Ele podia nunca ter acontecido.
Está quente ao sol,
Mas isso não é bastante.

Tudo isso poderia ter ocorrido
Como um trevo de cinco pontas
Flutuando em minha mão,
Mas isso não é o bastante.

Nem o mal nem o bem
Desvaneceram-se em vão,
Tudo ardeu e houve luz,
Mas isso não é o bastante.

A vida tem sido como um escudo,
E tem oferecido proteção.
Tenho tido bastante sorte,
Mas isso não é o bastante.

As folhas não se queimaram,
Os ramos não se quebraram,
Claro como vidro o dia está,
Mas isso não é o bastante.

dezembro 30, 2009

A quietude no meio do caos


O que desejo para 2010? O que sempre estou buscando? Qual o anseio subjacente a todos os meus pensamentos? Saul Bellow (foto) tem a resposta:

Sinto que a arte tem a ver com a conquista da quietude no meio do caos. Uma quietude que caracteriza a prece, também, e o olho do ciclone. Deter a atenção em meio à distração.

Que eu consiga viver no olho do ciclone, centrado em meus pensamentos, desprezando tudo que é supérfluo, frívolo, vulgar. Que eu seja um trapista vivendo no século.

dezembro 26, 2009

Knut Hamsun

Dois ótimos textos que comentam a vida e a obra do escritor norueguês Knut Hamsun: a resenha de Javier Fernández de Castro, sobre o romance Vitória, e trechos da biografia escrita por Ingar Sletten Kolloen.

dezembro 24, 2009

Natal


Ótimo Natal aos amigos, aos leitores assíduos e aos visitantes esporádicos. Deixo aqui este presente para todos, um Sexteto de Brahms:

dezembro 23, 2009

Sem melancolia

Poucas coisas podem ser melhores para expulsar a melancolia desta época do ano – quando recordo, cada vez mais, dos familiares muito amados que se foram ou que, por várias razões, estão longe de mim – do que um antigo e singelo musical da RKO, com Fred Astaire e Ginger Rogers. É o melhor remédio contra a tristeza. E fiz questão de tomá-lo até a última gota hoje, assistindo a Top Hat (O Picolino), adorável comédia dirigida por Mark Sandrich, com as magníficas canções de Irving Berlin. Vejam, por exemplo, esta longa cena, em que Ginger e Fred dançam ao som de Cheek to Cheek. Astaire pode não ser um bom cantor, mas qualquer falha desaparece sob a música de Berlin e a leveza dessa dupla incrível:

dezembro 22, 2009

Natal no Islã

Quando o mundo entenderá que o discurso do Islã não corresponde à sua prática? Quando o mundo entenderá que pluralismo, democracia e liberdade não são valores fundamentais para o islamismo? Vejam, por exemplo, o post de Marcos Guterman, no qual ele comenta matéria publicada no New York Times. Leiam e depois me respondam: é possível conviver pacificamente com o fundamentalismo muçulmano?

dezembro 21, 2009

Um rasgo de bom humor

Há situações na vida que exigem um rasgo de bom humor. Quando a circunstância exata surge, gosto de repetir, por exemplo, a frase que decorava uma das paredes da Sapataria Relâmpago, na Praça da Matriz, na Jundiaí da minha infância: “O impossível fazemos na hora – milagres demoram um pouco mais”.

dezembro 20, 2009

Cabaré intelectual

Na Folha de S. Paulo de hoje, John Gray faz críticas lúcidas aos principais ícones do comunismo moderno: a dupla Michael Hardt e Antonio Negri e o pretenso filósofo Slavoj Zizek, incluindo todos na categoria de “número de cabaré intelectual”.

Depois de analisar os livros de Hardt e Negri, Gray conclui, implacável: “baboseira do tipo que visa a fazer o leitor se sentir bem, disfarçada de análise neomarxista”. Quanto a Zizek, árduo defensor do comunismo, Gray também acerta: ele “passa por cima do fato de que em nenhum lugar o terror sistemático realizou as metas utópicas do comunismo e que, em vez disso, criou formas novas e piores de tirania, ao mesmo tempo dizimando milhões de pessoas”.

Primores do pensamento a-histórico, ultrarromânticos anacrônicos, Hardt, Negri e Zizek realmente só podem ser lidos assim, como roteiristas de vaudeville. Mas Zizek, principalmente, escreve vaudeville de mau gosto, pois prefere fazer vista grossa aos gulags, à censura, à coerção e ao terror dos regimes comunistas – e, pior, acredita que pisotear cadáveres pode construir um mundo novo, sem injustiças.

dezembro 18, 2009

Presépios da infância

Sempre que se aproxima o Natal, minha memória volta-se à infância. Ainda que, no decorrer da vida adulta, tenha me afastado do catolicismo, preservo não só amigos do ano em que cursei filosofia no seminário – alguns deles, inclusive, ascenderam na hierarquia da Igreja –, mas também profundo respeito pelos rituais e datas festivas. É impossível me dissociar das tradições que marcaram minha vida e a de meus familiares. E, ao invés de lutar contra os sentimentos que me invadem, submeto-me a eles, deixo que a emoção emerja e cumpra seu papel, pois seria uma rematada tolice negar o que pulsa dentro de mim. Revisito, então, os melhores dias do Advento, aqueles em que meu pai nos levava a visitar os dois mais belos presépios de Jundiaí. No jardim de entrada da velha indústria Argos construía-se, anualmente, um presépio imenso, cheio de pormenores, com água corrente que fazia funcionar o monjolo e figuras que se mexiam. Contudo, ainda que essa maravilha de engenharia me impressionasse, a lembrança mais viva refere-se ao presépio da catedral Nossa Senhora do Desterro. A luz que atravessava os vitrais dissolvia-se na penumbra da nave central, e caminhávamos em silêncio por entre as colunas, até chegar ao estrado alto em que a cena do estábulo era reconstruída sem anacronismos. Ali, no fundo quase escuro, o recém-nascido – Aeterni Parentis splendorem aeternum, velatum sub carne, como diz a mais doce canção natalina, Adeste Fideles – era velado por seus pais e pelos pastores. Ali se concentrava o mistério do Natal, do Deus que se faz homem, mas sem qualquer arrogância, recusando todos os privilégios. Só mesmo alguém como Francisco de Assis, cuja espiritualidade, saudavelmente reacionária, abalou o Ocidente, poderia captar com tanta sabedoria a loucura da encarnação, traduzindo-a aos mais simples*, aproximando-a dos que buscam a essência da mensagem cristã, desvinculada, em sua origem, de qualquer pompa. Se posso, aos cinquenta anos, revisitar o catolicismo de meus avós, é essa religião que eu abraçaria, a do silêncio, inimiga da celebridade e da glória do mundo, algo entre o franciscanismo e a Trapa.



* O primeiro presépio foi montado por São Francisco de Assis, em 1223, na floresta de Greccio, na Itália.

dezembro 15, 2009

Lutar contra a vida frívola

Desidério Murcho está sempre a propor reflexões instigantes, como a publicada hoje, da qual extraio um trecho que colocarei em local bem visível no meu escritório:

A vida de praticamente todos os artistas, cientistas ou filósofos é um teste contínuo à força de vontade, uma luta constante contra todos os obstáculos das frivolidades do dia-a-dia, que nos roubam tempo e tornam mais fácil não fazer o que mais valorizamos.

O verdadeiro Brasil

Às vezes o verdadeiro Brasil aflora, contestando o discurso demagógico, triunfalista e megalomaníaco do governo federal. Segundo notícia veiculada hoje, dados do Ministério da Saúde apontam que 58% dos brasileiros não fazem uso da escova de dentes e um terço da população nunca fez tratamento dentário. Cerca de 40 milhões de brasileiros já perderam todos os dentes. Ou seja, grande parte da população sequer imagina o que são cuidados básicos de higiene.

Esse é o Brasil real, emperrado, difícil de mudar, o presunto inesgotável de que falava Lima Barreto, o Brasil que a política antiliberal e populista do governo só entrava ainda mais.

dezembro 14, 2009

Deixar que as coisas sejam

Quando nos daremos conta de que o maior acontecimento que podemos esperar da vida não é um acontecimento propriamente dito, mas, na verdade, um meta-acontecimento, uma mudança de perspectiva que nos faça ver o real de outra maneira?

Manuel Cruz, catedrático de filosofia da Universidade de Barcelona, fala, de maneira admirável, sobre essa forma especial de se olhar a vida, de se estar aberto a novas possibilidades: “O segredo é extremamente simples. [...] Trata-se, em substância, de deixar que as coisas sejam, de não nos empenharmos em impedir sua emergência”.

Um meta-acontecimento: a “genuína condição de possibilidade de todo acontecimento”.

Leiam aqui o artigo/crônica de Manuel Cruz.

dezembro 10, 2009

Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa

Quando o fim do ano se aproxima, a nostalgia dos livros que não li vem me apoquentar. Não me interessam os volumes que, felizardos, estão cheios das observações que escrevo a lápis enquanto leio. O que importa, o que realmente importa, são as pilhas aguardando sobre o criado-mudo, na escrivaninha... a fila interminável que me remói, enchendo-me de culpa, acusando-me de não ter cuidado do que era essencial.

Mas li tanto... Por que não me basta? Por que não me satisfaço com a velha desculpa, de que haverá tempo para todos os livros, incluindo os que ainda nem imagino? Não sei... Sei apenas que me entristeço pelo tempo perdido em inúteis afazeres, desperdiçado com livros ruins, que só me aborreceram, e com a dura necessidade de trabalhar para sobreviver.

Estão lá, no criado-mudo, As aventuras de Augie March, do Bellow, e Meridiano de sangue, do Cormac MacCarthy – exatamente os dois que mais desejo ler. Não consegui chegar perto, nem mesmo passar os olhos no índice ou na bibliografia, do estudo de Sylvie Courtine-Dénamy sobre Hanna Arendt, e o mesmo ocorreu com a biografia de Lampedusa, um dos autores que mais amo, escrita por David Gilmour. Há dois anos Poetas românticos, críticos e outros loucos segue invicto sobre minha mesa de trabalho; livros chegam e partem, mas o volume de Charles Rosen, espanado semanalmente, aguarda um gesto de boa vontade. E como posso me desculpar com George Steiner e Câmara Cascudo, cujos Lições dos mestres e Canto de muro não consigo terminar há meses, ainda que me agradem?

Talvez eu devesse ser mais sistemático ou, quem sabe, mais compulsivo. Não sei. Mas me incomodam esses volumes arrumados com esmero pela faxineira, como se ela soubesse da minha falta. E que desconforto sinto ao olhar para eles, como se tivesse cabulado a aula ou exagerado nos doces, ou, pior, traído um grande amor – uma daquelas traições sem volta, irremediáveis, que até mesmo o padre, na penumbra do confessionário, hesita perdoar...

dezembro 09, 2009

Reparação

Um documentário que reúne, entre outros, depoimentos do historiador Marco Antonio Villa, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e do geógrafo e sociólogo Demétrio Magnoli, certamente merece ser assistido. Reparação, dirigido por Daniel Moreno, parte do drama de Orlando Lovecchio – que perdeu uma das pernas no atentado ao Consulado dos EUA em São Paulo, cometido pela esquerda no ano de 1968, e que luta até hoje por uma indenização justa – para discutir a realidade da ditadura militar no Brasil. “A esquerda era golpista, assim como a direita”, afirma, com lucidez, Marco Antonio Villa.

Assistam ao trailer:

dezembro 07, 2009

Ficção científica e mundividência cósmica

O professor Desidério Murcho, da Universidade Federal de Ouro Preto, sempre nos oferece reflexões instigantes. Vejam, por exemplo, este trecho de seu artigo “Azar cósmico e o futuro pós-humano”:

O sonho de explorar outros planetas carece de realismo. Mesmo que seja possível, é uma possibilidade de tal modo remota que não tem poder motivador. Isto deixa-nos, num certo sentido, onde sempre estivemos. Deixa-nos no provincianismo das nossas preocupações mesquinhas, que nos faz imaginar realidades distantes, na ficção científica, só para voltarmos a falar de nós mesmos e dos nossos problemas: guerra, discriminação, dominação, opressão das hierarquias, facciosismo, cegueira. O sonho que mais vale a pena sonhar, em ficção científica, é assim o domínio das tecnologias genéticas, que nos permitam ter bebés mais inteligentes, mais sensatos — menos humanos, num certo sentido. Se a humanidade é o que tem mostrado ao longo dos milénios — exploração dos fracos, frivolidade, injustiça, provincianismo — talvez valha a pena sonhar com um futuro pós-humano, em que os nossos descendentes, mais inteligentes e sensatos, possam fundar uma sociedade que, ao contrário de todas as sociedades humanas, não seja uma vergonha cósmica.

A íntegra do artigo pode ser lida aqui.

dezembro 05, 2009

A Osesp sob o comando de Frank Shipway

Ainda que a plateia tenha delirado com O festim de Baltazar, de William Walton (ouvi a peça tendo a impressão, durante alguns trechos, de estar assistindo a um filme de Cecil B. DeMille), o melhor momento da noite, nesta última quinta-feira, foi a Sinfonia nº 29 em lá maior, de Mozart. Sob a regência de Frank Shipway, a orquestra tocou com, digamos, sabedoria. O Andante, de extrema delicadeza, e o lirismo às vezes quase infantil de Mozart, que nos dá uma insuperável sensação de jovialidade, como se a alegria pudesse subsistir para além daqueles minutos em que nos protegemos na sala de concerto: Shipway conseguiu extrair da orquestra os sons, as variações mais tênues. Com um currículo impressionante, ele rege destilando a dignidade que se espera de um grande maestro, e demonstra, a cada gesto, não só dar o melhor de si, mas realmente dialogar com a orquestra; um diálogo não apenas profícuo, mas que obteve da Osesp o que ela tem de melhor. E ao final da programação, o observador atento pôde perceber como a própria orquestra agradecia ao regente por ter feito o que, neste ano de 2009, nenhum outro conseguiu fazer.

dezembro 04, 2009

Desperdício

O populismo é mestre em esbanjar dinheiro público de maneira irresponsável. O Vale Cultura, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, só reafirma como é fácil fazer demagogia com o dinheiro dos contribuintes e ainda rotulá-la de "política de incentivo à cultura". O dinheiro poderá ser usado, inclusive, para se comprar revistas, jornais e gibis. Como vemos, a preocupação governamental está profundamente ligada à educação das massas...

dezembro 01, 2009

Senso comum e arte

Voltando às minhas leituras de William Hazlitt, coloco a seguir um dos bons trechos do ensaio “Por que as artes não evoluem?”, de 1814. Temo que minha tradução não seja exemplar, mas certamente permitirá aos interessados descobrir um pouco desse crítico infelizmente nunca divulgado no Brasil:

“O princípio do sufrágio universal, por mais aplicável que seja a questões de governo, que têm a ver com os sentimentos e os interesses comuns da sociedade, não é aplicável, de modo algum, aos assuntos do gosto, pois, estes, só podem julgá-los os espíritos mais refinados. A humanidade nunca pôde entender completamente os maiores esforços do gênio, em qualquer uma das artes. Há uma infinidade de belezas e verdades muito além da sua compreensão, que chegam a ser comuns no mundo porque o refinamento e a sublimidade se misturam com outras qualidades, de natureza mais óbvia e vulgar. O gosto constitui o grau mais elevado da sensibilidade, assim como a impressão que atua sobre as mentes mais refinadas, da mesma forma que o gênio é o resultado da força do sentimento e da invenção. Pode-se dizer, no entanto, que o gosto público é suscetível de uma melhora gradual, pois o povo termina fazendo justiça às obras de maior mérito. Semelhante ideia é um erro. A reputação que, ao final, e quase sempre lentamente, se concede às obras de gênio provém da autoridade, não do assentimento popular nem do senso comum do mundo.”

novembro 30, 2009

O avanço do Islã sobre a Europa

“[...] O número de mesquitas na França cresceu de cerca de 260 na metade da década de 1980 para mais de duas mil hoje. Há algumas mesquitas grandes em cidades como Paris, Marselha e Lyon, mas a maioria é pequena e o mesmo vale para a Alemanha e outros países europeus. A Alemanha tinha aproximadamente setecentas mesquitas de pequeno porte ou salões de oração nos anos 1980, mas são mais de 2.500 nos dias atuais. Havia 584 ‘mesquitas certificadas’ na Grã-Bretanha em 1999, mas o número real no presente é de pelo menos duas mil; em Birmingham, a segunda maior cidade da Inglaterra, existem atualmente mais mesquitas do que igrejas, apesar de muito menores. Pode ser que haja, agora, mais muçulmanos praticantes na Grã-Bretanha do que membros da Igreja da Inglaterra."

(in Os últimos dias da Europa - epitáfio para um velho continente, de Walter Laqueur)

novembro 28, 2009

Ensino de literatura e Internet

Convidado por meu amigo Antonio Carlos Olivieri, participei do projeto Livro Aberto, cujo objetivo é, utilizando os recursos da Internet, despertar a curiosidade dos alunos do ensino médio para a literatura brasileira. Nesta sua primeira fase, o projeto enfocou os livros selecionados para o vestibular da Fuvest.

Minha participação, divertidíssima, se restringiu a interpretar este ou aquele personagem. Mas o melhor foi conhecer pessoas animadas, cheias de entusiasmo, que amam seu trabalho e a literatura nacional.

Os podcasts já estão na web – e têm tudo para ser uma porta de entrada dos jovens à literatura. Confiram:

“Memórias de um Sargento de Milícias”, Manuel Antônio de Almeida
“Auto da Barca do Inferno”, Gil Vicente
“Iracema”, José de Alencar
“Dom Casmurro”, Machado de Assis
“O Cortiço”, Aluísio Azevedo
“A Cidade e as Serras”, Eça de Queirós
“Vidas Secas”, Graciliano Ramos
“Capitães da Areia”, Jorge Amado
“Antologia Poética”, Vinicius de Moraes

novembro 27, 2009

Vulgaridade, vulgaridade, vulgaridade

Da expressão lapidar do ministro da Cultura, dissecando em público o próprio corpo, a fim de defender seu emocionalismo intransigente, ao artigo de César Benjamin, na edição de hoje da Folha de S. Paulo, no qual testemunha sobre uma possível característica repulsiva do presidente da República, passando por certa mensagem publicitária de papel higiênico, que transformou as duas principais figuras do governo federal em garotos-propaganda à porta de uma latrina, e sem esquecer todas as expressões chulas que se tornaram, nos últimos anos, a principal muleta linguística dos discursos presidenciais, “nunca antes neste país” chafurdamos tanto na lama da vulgaridade, da grosseria.

A massa certamente se delicia e se espoja nesse espetáculo de sordidez, mas nós, que ainda exercemos a capacidade de julgar, devemos manter distância desse circo de escatologias, ainda que nossas opções sejam poucas: a ingestão de um emético diário – ou recordar com altivez, depois da leitura de mais um capítulo de William Hazlitt, o provérbio latino: Vulgus vult decipi, ergo decipiatur (O povo quer ser enganado, pois que o seja).

novembro 26, 2009

William Hazlitt, a Bolsa Escritor e a missão do crítico literário

Vivemos numa época estranha, na qual, dentre outros fenômenos excêntricos, parte significativa da crítica literária demonstra receio de qualificar, de exercer um julgamento. Como escrevi certa vez, a maior parte dos críticos e resenhistas se protege atrás de um dialeto acadêmico que, ao fim e ao cabo, nada explicita. Há muito de covardia intelectual nesse comportamento – e, percebo, uma boa dose de esperteza macunaímica, que se utiliza da linguagem hermética para se arrogar uma suposta hegemonia científica, disfarçada de imparcialidade, mas que, no fundo, esconde o medo de desagradar, de ferir vaidades.

Nos últimos anos, todos esses sintomas pioraram, pois grande parte dos críticos e resenhistas, seguindo a tendência geral do país, prefere se colocar no papel de pajem da demagogia, do populismo. Assim, eles se esmeram em distribuir análises (sempre análises, nunca julgamentos!) e elogios, como se estes conformassem um tipo curioso de Bolsa Família, a Bolsa Escritor, esmola para agradar copistas que, talvez, preferissem receber sua parte na forma de papel-moeda.

Em épocas assim, o melhor que podemos fazer é nos dedicar à leitura dos melhores críticos, o que nos ajuda a estabelecer uma barreira de lucidez, um filtro capaz de separar a moda passageira daquelas produções que nunca morrerão, às quais a humanidade, de tempos em tempos, sempre retorna, sedenta de verdade, ciência e beleza.

É o caso de William Hazlitt, que tenho relido com imenso prazer, amigo de William Wordsworth e Samuel Taylor Coleridge, mas que não se furtou a criticá-los duramente quando considerou que abdicavam de seus princípios estéticos, aderindo ao fácil, ao senso comum.

Otto Maria Carpeaux considerava Hazlitt um dos três principais intérpretes românticos de Shakespeare, ao lado de August Wilhelm Schlegel e Coleridge. E os leitores de Harold Bloom certamente lembram das inúmeras referências que ele faz a esse crítico cujo valor se iguala ao de outro gênio, Samuel Johnson, do qual Hazlitt não gostava.

Esse inglês é um ironista formidável, cuja linguagem, refinada e sem afetação, nos prende desde a primeira linha. Jacques Barzun diz que Hazlitt só tem um desejo: “fazer-nos leitores tão bons quanto ele”. É a missão que todo verdadeiro crítico literário deveria impor a si mesmo; inclusive porque essa é a única tarefa – extremamente honrosa, essencial para a formação dos leitores e para a vida cultural do país – que lhe cabe. O resto são firulas que alimentam a jactanciosidade no presente, mas estão condenadas a, no futuro, serem completamente esquecidas.

novembro 20, 2009

Uma questão de coragem

O Brasil recebe, com honras de chefe de Estado, na próxima segunda-feira, o antissemita Mahmoud Ahmadinejad, fervoroso patrocinador do terrorismo muçulmano e presidente de um país no qual a religião está acima da política – ou seja, a fé cega é superior à liberdade.

Para comemorar mais essa genuflexão da diplomacia e do governo brasileiros, Reinaldo Azevedo publicou o post “Uma descompostura fabulosa no facinoroso”, no qual traduz, praticamente na íntegra, o discurso com que o reitor da Universidade de Columbia (EUA), Lee Bollinger, recepcionou Ahmadinejad, quando este, em 24 de setembro de 2007, falou num evento da Escola de Assuntos Públicos e Internacionais da instituição.

O post é longo, mas merece leitura atenta. O texto termina com a pergunta de Reinaldo, sobre quem, no Brasil, teria coragem de dizer essas verdades a Ahmadinejad.

De minha parte, prefiro fazer uma questão mais específica: quem, dentre os jornalistas e intelectuais brasileiros, teria coragem de divulgar esse discurso, de se contrapor às vozes oficiais do nosso Estado? Quem, neste país, ainda tem coragem para NÃO ficar de joelhos diante do governo? Dentre os raros que podem ser citados, sem dúvida está Reinaldo Azevedo.

novembro 19, 2009

Como Javier Marías vê o mundo hoje

Uma das grandes vozes da literatura contemporânea, Javier Marías fala dos governantes medíocres e descarados:

Veo el mundo muy decadente. Basta con mirar alrededor. Berlusconi, Sarkozy, los Kirchner, Chávez o la corrupción en España. Gente mediocre y desfachatada. Tengo la sensación de un envilecimiento general de las poblaciones. Ojalá no tenga nada que ver con lo que se produjo en los años treinta. Ahora hay una especie de pragmatismo, de falta de escándalo; una tendencia a darle importancia a lo que no lo tiene y a no dársela a lo que quizá sí.

Mas ele também fala sobre literatura, seu processo de criação e o livro que está escrevendo: na edição do El País de hoje.

novembro 18, 2009

“Não podemos cair em utopias regressivas”

Em alguns casos, a distância do poder concede sabedoria ao político. Não que essa qualidade tenha faltado a Fernando Henrique Cardoso durante os seus oitos anos como presidente da República, mas agora, comparando aquele período ao atual, exercido por meio de um populismo desagregador, vemos bem a falta que nos faz um verdadeiro estadista.

Diante da entrevista que FHC concedeu ao jornal El País, traduzida no UOL Notícias, devo penitenciar-me dos inúmeros erros de avaliação que cometi, principalmente no início de seu primeiro governo, em 1995, quando, ainda militando no PT, eu apenas repetia os velhos chavões da esquerda e pautava-me mais pelo rancor típico dos esquerdistas do que pelo bom senso.

Leiam, por exemplo, o trecho abaixo. Vejam como FHC avalia a realidade de maneira correta e equilibrada:

El País: Onde estão os pensadores que têm de refletir em épocas de crise?

Cardoso: Em casa. E há necessidade de intelectuais com brio, gente que pense grande e dialogue com a sociedade. O que há são negativistas, têm o faro virado para trás. É preciso olhar para a frente, aceitar que a globalização está aí, que a Internet está aí, que há novas formas de produção, de comunicação. Não podemos cair em utopias regressivas [...].

novembro 17, 2009

A volta de Robert Nozick

Odiado pela esquerda e há muitos anos esgotado no Brasil, o clássico Anarquia, Estado e Utopia, de Robert Nozick, acaba de ganhar nova edição pela Edições 70, de Lisboa. Os interessados podem ler, na Revista Crítica, a introdução ao livro, escrita pelo professor João Cardoso Rosas, da Universidade do Minho.

Se Nozick despertar o interesse de vocês, recomendo vivamente a leitura do ensaio “Por que os intelectuais se opõem ao capitalismo?”, disponível no ótimo Ordem Livre.

novembro 15, 2009

A República que não existe

Na República dos meus sonhos há uma fórmula pétrea: 1 cidadão = 1 voto. Sem esse princípio básico, não há verdadeira democracia, mas apenas manipulação – exatamente o que fazem neste país por meio da chamada “proporcionalidade”, que concede, nas eleições ao legislativo federal, mais ou menos poder a este ou aquele cidadão, a depender do estado em que ele reside. Sílvio Romero estava certo:

“Aos que exerceram o monopólio de nos governar em nome do direito divino dos reis, sucederam os que exercem o mesmo monopólio em nome da esperteza, da audácia, da mentira, da corrupção. Contra esses é que é preciso bater, bater, bater, no intuito de desbravar o caminho dos tropeços que o entulham”. (In O Brasil dos meus sonhos.)

novembro 13, 2009

Causas do apagão

Eu estava nas ruas de São Paulo quando ocorreu o blecaute – e não foi nada agradável a sensação de completa insegurança que experimentei e pude constatar em centenas de outras pessoas.

É fácil para o subperonismo lulista – a expressão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é perfeita em sua síntese – simplesmente dar o caso por encerrado, como se não lhe coubesse qualquer responsabilidade ou, no mínimo, uma palavra de desculpa pelo transtorno causado a milhares de pessoas.

Mas se você, caro leitor, fica se perguntando por qual motivo o insigne presidente não vem a público e faz mais um dos seus discursinhos demagógicos, repletos de linguajar grosseiro, sorrisos ensaiados e ironias fáceis, leia a primeira parte do texto de Malu Gaspar, chefe da sucursal da revista Exame no Rio de Janeiro. Muitas coisas começarão a ficar claras.

[E aqui, a segunda parte da criteriosa análise de Malu Gaspar.]

novembro 08, 2009

Felinocracia

O que é viver sob a irritante ditadura dos gatos:

novembro 06, 2009

Sunt lacrimae rerum

“Há lágrimas nas coisas”, diz Virgílio na Eneida. Essa é a epígrafe de Os desaparecidos – A procura de 6 em 6 milhões de vítimas do Holocausto, de Daniel Mendelsohn, que analiso no Rascunho de novembro.

novembro 01, 2009

Em berço esplêndido

Segundo a PricewaterhouseCoopers, a América Latina é a região do mundo em que menos se adquire livros: do total de obras comercializado no mundo em 2008, apenas 4,14% das vendas ocorreram em nosso continente. Dessa fatia minúscula, 70% corresponde a gastos feitos no Brasil.

Os dados são desanimadores: o brasileiro gasta, por ano, a média de US$ 19 com livros. Na França, um cidadão despende, anualmente, US$ 144. Em Israel, US$ 139.

Para essa grave deficiência, não há discurso demagógico, PAC, Bolsa Família ou qualquer outro programa populista que mascare a realidade. Só elevados gastos em educação, durante várias décadas, podem mudar esses números. Ou seja: aguardemos deitados em berço esplêndido.

outubro 31, 2009

Tranquilidade


Minhas preferências musicais se inclinam sempre na direção da música de câmara e dos lieder. Não que eu desgoste das grandes sinfonias, mas, antes, prefiro os concertos; e, em primeiro lugar, os pequenos grupos de executantes, que me proporcionam uma agradável sensação de aconchego, tranquilidade. No caso da música lírica ocorre o mesmo: aprecio a ópera, mas os lieder e os duetos, íntimos, breves e líricos, me cativam. Hoje, desde o início da manhã, escuto Marilyn Schmiege e Julie Kaufmann interpretando as deliciosas canções de Brahms, o que torna a vida, no mínimo, mais suportável.

outubro 30, 2009

Um aperitivo

A Editora Cosac Naify disponibilizou, no início deste mês, algumas páginas da tradução de Guerra e paz, de Liev Tolstói, que Rubens Figueiredo está produzindo.

Será terrível esperar até fins de 2010 pelo livro, mas, olhando para o que o tradutor nos ofereceu em Anna Kariênina, minhas expectativas serão plenamente recompensadas.

outubro 28, 2009

Narratofobia

No Rascunho deste mês, meu ensaio sobre a paúra de narrar:

[...] parte da produção literária distanciou-se radicalmente do receptor da mensagem, do leitor, transformando-o em um ser incapacitado para decodificar o texto, condenando-o a ler sem entender, ou ler defrontando-se com dificuldades sobre dificuldades.

outubro 24, 2009

A lucidez de Guilherme Valente

Um dos mais respeitáveis editores de língua portuguesa, Guilherme Valente, editor da famosa Gradiva, de Portugal, critica José Saramago. E o faz com extrema acuidade:

Saramago é, quanto a mim, um escritor engenhoso, mas elementar e habilmente lamecha, que, em termos de ideias, escreve e fala para um público pouco culto, cuja ignorância explora, para cujos juízos mal informados, ideológicos, sectários ou primários, apela, obscurecendo, em vez de (o) iluminar. [...]

Quando fala da Bíblia, de ciência, das viagens de exploração do Universo, ou de Castro, ou de tantas outras matérias sobre as quais regularmente diz, sempre no mesmo tom teocrático, enormidades, a minha dúvida é se ele é mesmo tão limitado intelectualmente como parece, ou se não se tratará de um sacrifício pulsional da inteligência e do conhecimento. [...]


Aqui, para aqueles que desejarem ler o texto na íntegra.

E aqui, para conhecer quem é esse perspicaz editor.

outubro 09, 2009

Simenon

Fui resgatado das brumas por um romance de Georges Simenon: Sangue na neve. A dura objetividade da narrativa – Simenon não admite volteios de espécie alguma – sequestrou-me ao mundo nevoso, quase espectral, em que a maldade surge sem qualquer objetivo claro. Graham Greene trata melhor do tema, em seu romance de estreia, O condenado, cujo fim, triste e impactante, concentra profunda reflexão não apenas sobre a relação entre Bem e Mal, mas principalmente sobre como o Mal pode nascer movido pela gratuidade insana. Mas Simenon, ainda que fique um pouquinho atrás, nos oferece seus parágrafos curtos, certeiros; Frank, o protagonista taciturno e infantil, para quem o mundo e as pessoas são personagens de um teatro de sombras; e trechos antológicos, como este, em que se revela o cinismo da caftina Lotte, mãe de Frank, que aluga meninas em seu apartamento, ao comentar sobre os fregueses:

[...] Cada aquecedor, cada fogo, tem seu odor particular, sua vida própria, seu modo de respirar, seus ruídos mais ou menos incongruentes. O do salão cheira a linóleo, evoca o próprio cômodo, com seus móveis encerados, seu piano de armário, seus bordados e paninhos de crochê em cima das mesas de pé de galo e nos braços das poltronas.

– Os mais viciosos – diz Lotte – são os burgueses. E os burgueses gostam de fazer as suas patifarias numa atmosfera que lembre a eles a de suas casas.

É por isso que as duas mesinhas de manicure são minúsculas, por assim dizer invisíveis. Por outro lado, Lotte ensina as meninas a batucar o piano com um dedo só.

– Como as filhas deles, entende?

O quarto – o quarto grande, como é chamado, no qual Lotte dorme nesse momento – é todo revestido de tapetes, de cortinas, e atochado de pequenos trabalhos de agulha.

É Lotte ainda que afirma:

– Ah, se eu pudesse ter o retrato do pai deles, da mulher, das crianças! Ficaria rica, milionária!

setembro 03, 2009

Estado sem limites (do jeito que a esquerda gosta)

Brilhante, para dizer o mínimo, o artigo de Demétrio Magnoli hoje no Estadão:

Nunca, desde o encerramento da ditadura militar, o Estado brasileiro violou tão profundamente a ordem democrática quanto na hora em que Mattoso selecionou, entre os milhões de correntistas da CEF, o nome de Francenildo, uma testemunha da CPI que investigava o poderoso ministro. No mesmo dia em que o presidente da CEF acessava o extrato "suspeito", mas não o transmitia ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), guardando-o para Palocci, Tião Viana prometia aos jornalistas "uma grande surpresa". O poder que faz isso não conhece limites. Seu horizonte utópico é o Estado policial: a administração pública convertida em aparelho de intimidação permanente dos cidadãos, por meio da invasão da privacidade e da chantagem pessoal.

[...]

Quando proferiram seus votos, os cinco juízes enxergaram um semelhante não em Francenildo, mas em Palocci. Eles votaram na sua casta, deixando as impressões digitais do persistente patrimonialismo brasileiro nos registros da Corte constitucional.


Maus tempos os nossos, caros leitores. Tempos perigosos para os cidadãos comuns.