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julho 05, 2012

“A todo transe!...”, de Emanuel Guimarães – esquecido e desprezado


Este mês, no jornal Rascunho, analiso o romance A todo transe!..., de Emanuel Guimarães. A seguir, coloco os três primeiros parágrafos do meu ensaio:

A todo transe!… é um tipo peculiar de roman à clef: à parte o fato de pertencer a certo elogiável grupo — no qual encontramos, por exemplo, Os Buddenbrooks ou O sol também se levanta —, a obra de Emanuel Guimarães, publicada em 1902, permanece atual não apenas graças às qualidades literárias, mas porque sua “chave”, passados mais de cem anos, pode ser encontrada em Brasília ou nas assembleias estaduais, como se os políticos encobertos pelas personagens ainda estivessem vivos, cadáveres embalsamados por meio de alguma técnica miraculosa, capaz de mantê-los respirando e, principalmente, cometendo os mesmos delitos.

De fato, a semelhança entre o romance e as piores páginas do noticiário político chega a ser assustadora, mas não devemos nos prender a tal característica, pois ela apequena as virtudes desse livro injustamente esquecido, que nos ensina como a ficção pode descrever não só uma época, mas, partindo de fatos mesquinhos, retratar a índole duradoura da classe dirigente e a feliz alienação do povo.

Não por outro motivo, aliás, A todo transe!… foi expulso das nossas histórias literárias, escorraçado das antologias e banido das livrarias: o brasileiro é condicionado, sempre e cada vez mais, a enganar-se quanto a seus defeitos e qualidades, travestindo-os por meio do sentimentalismo, da farra, da autocomiseração ou do comportamento ufanista. O que é o Carnaval, senão a exasperação da tristeza e da derrota? E a crescente hegemonia do marxismo — inclusive, é claro, na crítica literária — só agravou o problema: para a esquerda, o brasileiro, olhando-se ao espelho, deve ver não a realidade, mas a utopia — a ideia benévola que faz de si mesmo.

julho 03, 2012

Machado de Assis – a pior das respostas


Machado de Assis é o continuador da tradição iniciada, na literatura brasileira, por Manuel Antônio de Almeida. Os dois escritores tornaram-se amigos depois que o autor de Memórias de um sargento de milícias passou a proteger Machado na Imprensa Nacional, onde este, aprendiz de tipógrafo, subalterno de Almeida, era considerado um preguiçoso. Trata-se de um dos inúmeros casos em que o aluno se mostra maior que o mestre, é verdade. Contudo, o influenciado permanece devedor de quem lhe indicou o caminho a seguir, ainda que, no caso do autor de Dom Casmurro, este tenha preferido, por austeridade ou imodéstia, não comentar sobre a dívida – que, portanto, continua ativa, ou melhor, ativíssima, como diria o agregado José Dias, um dos melhores personagens de Dom Casmurro.

A geração espontânea, teoria desprezada em ciência, merece igual tratamento na literatura. Gênios não nascem do nada. No caso de Machado de Assis, a leitura meticulosa de Memórias de um sargento de milícias, quando ele revisa o livro para a edição definitiva de 1862/1863, representou a culminância dos ensinamentos que Manuel Antônio de Almeida lhe transmitira desde os dezessete anos. Aquele que se tornaria o Bruxo do Cosme Velho teve, sem dúvida, várias outras influências, mas seu salto sobre o abismo da retórica nacional recebeu impulso significativo desse amigo e protetor. Dele, Machado aprendeu que a grandiloquência e o sentimentalismo exacerbado dos românticos eram superfluidades – e dele herdou, como já afirmei neste Rascunho (em agosto de 2010), a sutileza da frase, a habilidade para construir narradores irônicos e o hábito – transformado em verdadeira mania – de se dirigir ao leitor como se este fosse seu cúmplice.

Há quem não goste de Machado – e eu próprio sou um admirador comedido dos seus romances –, mas é inegável que, a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), sua obra enfrentou com bravura a recepção tortuosa e arrevesada – leiam-se, por exemplo, as análises de Sílvio Romero –, pisoteou a maioria dos ficcionistas, compreendendo seus antecedentes, contemporâneos e pósteros, e conseguiu reafirmar a lição de Manuel Antônio de Almeida, agora de maneira irretorquível: literatura e eloquência são forças antagônicas.

Miragens

Dom Casmurro, publicado em 1899, representa a síntese das qualidades – e também dos defeitos – machadianos. Narrada pelo protagonista, Bento Santiago, cuja alcunha dá nome ao romance, a história é um curioso flashback, que rememora certo possível adultério. Na verdade, “casmurro” é um eufemismo no que se refere a Bento – seus detratores foram magnânimos ou polidos. Já no primeiro capítulo temos uma amostra da sua arrogância, sempre mascarada pela ironia: oferece a um jovem poetastro – que, por não receber a atenção do narrador, dera-lhe o apelido de “casmurro” – o livro iniciado, sugerindo-lhe considerar a obra como sua, pois o título lhe pertencia, e concluindo: “Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto” – uma ampliação da ironia, agora dirigida a todos os escritores medíocres, e por meio da qual o narrador afirma, de maneira oblíqua, a superioridade da sua própria escrita.

Bento é um narrador peculiar, consciente de que “a verossimilhança [...] é muita vez toda a verdade”, mas nebuloso a ponto de concluir que sua vida “se casa bem à definição”. Esta poderia ser a tão ansiada chave para Dom Casmurro, solução, no entanto, somente cabível se Bento não se desdissesse o tempo todo ou se descrevesse os demais personagens de maneira plana, o que, no caso de Machado, bem sabemos, é impossível.

O leitor maduro tem consciência de que a vida é uma luta entre a aparência de verdade e o realmente verdadeiro, luta surda, em que o real é vítima de constantes refrações – maneira sutil de dizer que o homem se acostumou a defraudar a verdade. Assim, o romance, sob o comando de Bento, espelha parcialmente a vida: seu tema central não é o adultério, mas o uso obstinado de subterfúgios, de instrumentos que, a cada capítulo, enganem o leitor, levando-o por um labirinto cujo final é a decepção, pois todas as possíveis certezas foram corrompidas.

Não há inocência em Bento. E quanto mais o romance avança, mais temos certeza – a única – de que ele é sardônico. Jamais saberemos se Capitu, sua mulher, realmente o traiu, mas ele é claro ao afirmar suas intenções: “Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda o não disse, fica. Se disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição”. A primeira parte da citação é discurso vazio, rodeio, no qual, aliás, Bento é especialista; mas a última frase não deixa dúvidas: ele tem um plano, quer levar seus leitores ingênuos à confusão, a conclusões erradas, ou seja, a simplesmente acreditar no que diz.

Mas não mereceria nosso crédito o narrador que revela o desejo de, num arroubo, ver a própria mãe morta ou assassinar o filho inocente? Ou que afirma: “Eu confessarei tudo o que importar à minha história”? Esse é o problema de Bento: ele confessará apenas o que importar não à verdade, mas à sua história. E no mesmo capítulo, ironicamente denominado “Adiemos a virtude”, dá um exemplo esclarecedor: “[...] Agora que contei um pecado, diria com muito gosto alguma bela ação contemporânea, se me lembrasse, mas não me lembra; fica transferida a melhor oportunidade”. Que tipo de homem é esse, que não tem uma só “bela ação” para relatar? Linhas abaixo, ele nos esclarece, destrinçando sua obscura moral: na opinião de Bento, virtudes e pecados estão “aliados por matrimônio para se compensarem na vida”, e “a regra é dar-se a prática simultânea dos dois, com vantagem do portador de ambos”. Ora, se bem e mal são equivalentes, e se tal equilíbrio é um benefício, então só nos resta perguntar, do começo ao fim do romance: onde está o bem? E o mal? E que suposta igualdade de forças é essa, construída por um discurso aliciador, bem arquitetado, mas permissivo? Que ele seja um homem dividido entre o bem e o mal, até aí não há novidade – o problema é não nos oferecer nenhuma prova fidedigna de bondade ou de maldade, sua ou de outrem, mas apenas o discurso repleto de ironia.

O riso à socapa de Bento não perdoa nem mesmo o ato de escrever, de narrar. No longo capítulo “Um soneto” – longo para os padrões machadianos –, mostra-se digressivo, mas termina com uma receita, em sua opinião infalível, para compor o poema: “Tudo é dar-lhe uma ideia e encher o centro que falta”. Ou seja, escrever não passaria de mera banalização.

Mas Bento não recheia sua almofada de qualquer modo. Se ele fosse coerente, não leríamos sua história, nem se o livro trouxesse, na capa, o nome de Machado de Assis... São exatamente suas incongruências que nos atraem, principalmente quando descobrimos com que disposição devaneia. Ele próprio, depois de recordar o dia, na adolescência, em que imaginou receber a visita de Pedro II, conclui: “[...] A imaginação de Ariosto não é mais fértil que a das crianças e dos namorados, nem a visão do impossível precisa mais que de um recanto de ônibus”.

Nosso narrador está sempre a um passo de fantasiar. Minutos depois de beijar Capitu a primeira vez, volta a procurá-la, ainda excitado: “Fui ter com ela, e perguntei se a mãe havia dito alguma coisa; respondeu-me que não. A boca com que respondeu era tal que cuida haver-me provocado um gesto de aproximação”. E conclui, recordando melhor: “Certo é que Capitu recuou um pouco”. Assim, há delírios de todos os tipos: breves e longos, detalhados ou sintéticos. Certa mulher leva um tombo na rua e Bento entrevê as meias “muito lavadas” e as ligas de seda azul: é o que basta. Da manhã daquela segunda-feira até o dia seguinte só pensará nisso, seus pensamentos e sonhos confluirão para as meias, que imagina esticadas, e para as ligas, certamente justas. Ao final, sua sofreguidão é tamanha, que já não saberá ao certo o que viu, e se viu, mas a miragem se prolonga por dias.

Tal é o narrador que jura ser afligido por um “escrúpulo de exatidão”... E poucas páginas depois, ao fim do trecho no qual confessa os poderosos dotes de sua imaginação, com que preenche as lacunas deixadas pelos “livros omissos”, convida o leitor a agir da mesma forma – confissão indireta das reticências propositais de sua obra.

Naufrágio

No entanto, se Dom Casmurro fosse apenas o vaivém de um narrador que aparenta viver entre a melancolia, a alucinação e a desonestidade, não conseguiria prender nossa atenção. É preciso mais para compor um grande livro. E Machado domina os instrumentos necessários. Vejam, na descrição desta cena algo cômica, o uso perfeito da pontuação, o vocabulário preciso, o período composto de maneira a, num crescendo, não só reconstruir os gestos do Tio Cosme, mas, no fim, dar-nos a viva imagem da massa descomunal que derreia a montaria:

Era gordo e pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos. Uma das minhas recordações mais antigas era vê-lo montar todas as manhãs a besta que minha mãe lhe deu e que o levava ao escritório. O preto que a tinha ido buscar à cocheira segurava o freio, enquanto ele erguia o pé e pousava no estribo – a isto seguia-se um minuto de descanso ou reflexão. Depois, dava um impulso, o primeiro, o corpo ameaçava subir, mas não subia; segundo impulso, igual efeito. Enfim, após alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava todas as forças físicas e morais, dava o último surto da terra, e desta vez caía em cima do selim. Raramente a besta deixava de mostrar por um gesto que acabava de receber o mundo. Tio Cosme acomodava as carnes, e a besta partia a trote.

Ele também exibe perícia ao criar descrições cuja economia de recursos nos transmite a impressão palpável do personagem. Não está todo nesta frase, diante dos nossos olhos, o tenor amigo de Bento que, “quando andava, apesar de velho, parecia cortejar uma princesa de Babilônia”?  

Para revelar a pobreza da família de Capitu, ele dissemina breves informações entre os capítulos, de maneira que só o leitor atento formará um quadro completo. O relato da penúria receberá ares sarcásticos quando se trata de Pádua, pai de Capitu, mas sempre que a jovem for o eixo da narrativa, os elementos que denunciam a miséria material surgirão camuflados pelo lirismo:

Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor, não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos.

Pouco antes do primeiro beijo, depois que Bento penteia os cabelos de Capitu – “desejei penteá-los por todos os séculos dos séculos, tecer duas tranças que pudessem envolver o infinito por um número inominável de vezes” –, ele procura com que prender as pontas das tranças; e rapidamente encontra, “em cima da mesa, um triste pedaço de fita enxovalhada”, elemento que não sombreia a cena, mas a sublima como um gesto de piedade onde, se não fosse Machado de Assis, só existiria arrebatamento, paixão.
 
E o que dizer das “curiosidades de Capitu”, tema ao qual ele dedica o Capítulo XXXI? Tudo a interessa, principalmente aquelas informações que possam distanciá-la de sua realidade. A “pérola de César”, no “valor de seis milhões de sestércios”, sobre a qual José Dias fala, e que o imperador teria dado a certa mulher, “acende” os olhos da jovem. No capítulo seguinte, de maneira a reforçar, delicadamente, a ambição antes descrita, quando Bento entra na casa de sua amada, encontra-a penteando-se num “espelhinho de pataca (perdoai a barateza), comprado a um mascate italiano, moldura tosca, argolinha de latão [...]”.

Entre os raros trechos de nossa literatura que merecem ser chamados de antológicos está o Capítulo CXXIII. É o momento de fechar o caixão em que se encontra o corpo de Escobar, melhor amigo do narrador, suposto amante de Capitu e pai de Ezequiel, a criança que Bento acredita, de início, ser seu filho:

Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do marido, e o desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens choravam também, as mulheres todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...

As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã.  

Para o leitor compreender os vetores que se entrelaçam nas últimas linhas é preciso ler o livro, no qual as figuras marítimas estão presentes formando um sedimento metafórico furtivo e aliciante, a começar pelos olhos de Capitu, “olhos de ressaca”, pois “traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca”. O “nadador da manhã” é o próprio Escobar, que, não por acaso, morrera afogado. E lembrando-se de tudo com amargura – do amigo que ele supõe comborço e da esposa que acredita adúltera –, o próprio Bento se refere a si mesmo “como um marujo” a narrar “o seu naufrágio”.

Se Capitu foi, de fato, essa Eva capaz de engolfar todos na sua volubilidade ardilosa... Bem, há os que se dispõem a perder tempo com tal discussão. Mas diante da estrutura subjacente à trama, aos liames que, a cada leitura, vamos descobrindo, o enredo perde importância.     

Machadismos

Mas Machado às vezes cansa – e por esse motivo prefiro seus contos, nos quais, graças à necessidade de síntese, está impedido de fazer tantos gracejos, tantas paródias ao estilo de Laurence Sterne, outra de suas influências. Ele também abusa da ironia, dos capitulozinhos explicativos, de certo eruditismo repleto de amor pelas citações – um vezo de odor quiçá brasileiro, subdesenvolvido – e das digressões, algumas bobas, como a que abre o Capítulo CXVIII:

Tudo acaba, leitor; é um velho truísmo, a que se pode acrescentar que nem tudo o que dura dura muito tempo. Esta segunda parte não acha crentes fáceis, ao contrário, a ideia de que um castelo de vento dura mais que o mesmo vento de que é feito, dificilmente se despegará da cabeça, e é bom que seja assim, para que se não perca o costume daquelas construções quase eternas.

Esses machadismos – presentes não só em Dom Casmurro –, incluindo a falsa naturalidade com que se refere ao leitor, dão à obra, por vezes, um tom pernóstico. E é decepcionante que, no caso de Dom Casmurro, ele não tenha resistido à tentação de fazer seu protagonista assistir a Otelo, de Shakespeare, criando um paralelismo extremamente batido.   

Mas esqueçamos o Machado de Assis que aprecia perguntas de algibeira, cujo texto pode desprender, aqui e ali, um odor de naftalina e nos concentremos naquilo que ele tem de excepcional.

A interrogação

A síntese do narrador de Dom Casmurro é oferecida no Capítulo II. Bento, já idoso, relata a construção da casa onde mora, réplica minuciosa da que habitou quando jovem: “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência”. Mas confessa sua derrota: “[...] Não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e essa lacuna é tudo”.

Nascida de fatos reais ou de sua imaginação, a amargura de Bento se espraia pelo romance. Ela está por trás de suas gozações, do ciúme incontrolável – que o obriga a abafar “os soluços com a ponta do lençol” –, da sua persistente, doentia relação monetária com Deus, dos seus acessos de ódio, nos quais se rebaixa a uma frieza demoníaca – ao saber da morte do filho, não se emociona, mas consulta a Bíblia para ver, semelhante a um burocrata, se a citação colocada na tumba está correta; e depois de jantar parte para o teatro –, e no egoísmo que chega a ser atroz.      

Mas, não nos enganemos: Bento nos escapa. Quando diz a verdade? Ao afirmar que as mulheres o achavam lindo e não o deixavam em paz, no Capítulo XCVII, ou quando confessa, no Capítulo CXLVI, como todas se enfadavam rapidamente dele? O certo é que Bento conta sempre a sua verdade; e ela pode variar ao sabor dos seus humores, das suas quimeras. Um homem assim está fadado à desilusão, pois condena os que o circundam a estarem aquém dos seus sonhos.

Não é possível termos sentimentos imutáveis em relação a ele ou a qualquer uma das outras personagens. Ou melhor, há uma que merece nosso carinho da primeira à última página: Dona Glória, a mãe do protagonista. E gostamos dela graças à condescendência de seu filho, o narrador, que não nos contou seus defeitos – mas a presenteou, ao enterrá-la, com uma lápide sem nome, na qual escreveu somente “Uma santa”, expressão tão elogiosa quanto vaga.

Bento, o homem que diz bastar-lhe “um sono quieto e apagado”, é o mesmo que remói suas decepções com mórbido prazer – e ri do começo ao fim do livro. Seu riso, entretanto, é o que Machado nega ao protagonista do conto “A causa secreta”: não o riso “jovial e franco” de Fortunato, mas o “riso da dobrez”. Evasivo e oblíquo, seu sarcasmo é, no fundo, triste. Sua exclamação final assemelha-se a uma interjeição de agonia, o grito de desespero do solitário que não suporta a si mesmo.  

Depois da morte da mãe, ao visitar a casa em que morara na juventude, Bento vai ao quintal; observa cada pormenor, cada árvore – e tudo parece desconhecê-lo. O tronco da casuarina, antes reto, agora sugere um ponto de interrogação. O narrador vasculha o ar, busca uma resposta, “um pensamento que ali deixasse”, mas nada encontra. Então a ramagem sussurra algo, ele imagina que seja “a cantiga das manhãs novas”, mas “ao pé dessa música sonora e jovial”, escuta “o grunhir dos porcos, espécie de troça concentrada e filosófica”. Esse é o autêntico desenlace de Dom Casmurro, escondido no Capítulo CXLIV: talvez não nos agrade – como o próprio livro desagrada a tantos –, mas o romance que recusa a solução óbvia das tragédias, ressuma fel e despreza a verdade só poderia terminar assim, com seu mofino narrador acorrentado à natureza: ele a interroga – e ela, por ser finita, limitada, oferece-lhe a pior das respostas.

junho 25, 2012

Nelson Rodrigues: tragédia, obsessão e liberdade


Em sua última entrevista, concedida à Revista Visão em fevereiro de 1974, Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, que viria a falecer poucos meses depois, diz que “conquistar a tragédia é [...] a postura mais popular que existe: em nome do povo brasileiro, a conquista, a descoberta da tragédia, você conseguir fazer uma tragédia, olhar nos olhos da tragédia e fazer com que ela seja dominada”. Ele próprio explica melhor sua ideia, ao afirmar, de maneira alegórica, que, diante da primeira tragédia, “o povo grego devia sair em passeata, em carnaval”, conclamando: “finalmente temos a nossa tragédia, descobrimos, olhamos, estamos olhando nos olhos os grandes problemas da nossa vida, da nossa existência, da condição humana”. 

Sem desmerecer a dramaturgia de Vianinha, esses comentários representam perfeita introdução à obra de Nelson Rodrigues, seu contemporâneo, com quem, aliás, se antagonizou no início da década de 1960. E não me refiro apenas às peças teatrais de Nelson, mas também aos romances e às crônicas, relançados pela Editora Agir. No volume O reacionário – memórias e confissões há exemplos do que afirmo, a começar de uma constatação facilmente observável: Nelson pode ser lírico, dramático ou histriônico, pode ser corrosivo ou meigo, mas é sempre desmesurado, chegando a paroxismos. Tal busca do excessivo é não só dramática, mas trágica. Não importa se o texto tem a acrimônia das suas posições antiesquerditas, a sagacidade de sua psicologia social, ou nasce carregado de lancinante autobiografia – Nelson Rodrigues é sempre trágico. E não há qualquer exagero em afirmar que, ao ler seus textos, muitas vezes temos a impressão de reencontrar Édipo, cego, conduzido por Creonte, enquanto o corifeu proclama: “Até o dia fatal de cerrarmos os olhos / não devemos dizer que um mortal foi feliz de verdade / antes dele cruzar as fronteiras da vida inconstante / sem jamais ter provado o sabor de qualquer sofrimento!”.

Essa plena expressão do trágico não é apenas fruto de leituras escolhidas ou de algumas qualidades literárias. Não. Nelson viveu a tragédia, foi seu personagem, embriagou-se dela. Vejamos o que ele fala ao recordar o assassinato de seu irmão, na crônica “Memória nº 25”:

Três anos depois, descobri o teatro. De repente, descobri o teatro. Fui ver, com uns outros, um vaudeville. Durante os três atos, houve, ali, uma loucura de gargalhadas. Só um espectador não ria: – eu. Depois da morte de Roberto, aprendera a quase não rir; o meu próprio riso me feria e  envergonhava. E, no teatro, para não rir, eu comecei a pensar em Roberto e na nudez violada da autópsia. Mas no segundo ato, eu já achava que ninguém deve rir no teatro. Liguei as duas coisas: – teatro e martírio, teatro e desespero. No terceiro ato, ou no intervalo do segundo para o último, eu imaginei uma igreja. De repente, em tal igreja, o padre começa a engolir espadas, os coroinhas a plantar bananeiras, os santos a equilibrar laranjas no nariz como focas amestradas. Ao sair do vaudeville, eu levava, comigo, todo um projeto dramático definitivo. Acabava de tocar o mistério profundíssimo do teatro. Eis a verdade súbita que eu descobrira: – a peça para rir, com essa destinação específica, é tão obscena e idiota como o seria uma missa cômica.   

Descontada a afirmação de que ali, em poucos minutos, assistindo àquela comédia, ele elaborara seu “projeto dramático”, fica evidente o processo intuitivo que norteou a obra rodriguiana.  

Em uma de suas crônicas mais clássicas, “A menina”, a pungência da tragédia se instala lentamente. O leitmotiv da cegueira se propaga desde a primeira linha, contaminando o texto até o último momento, quando a condenação do herói cai sobre o leitor num impacto avassalante. Em doze parágrafos, Nelson Rodrigues sintetiza e explora todos os elementos da tragédia: o sofrimento que provoca, ao mesmo tempo, terror e compaixão; a condição humana, vítima do engano ou de um estranho magnetismo que, muitas vezes, nos atrai para a ruína; a dor imerecida. E apesar da destruição, da queda que lança o protagonista da segurança à desgraça, a dignidade intocável do herói: ele observa o drama no qual está enredado, reconhece, num átimo, os caminhos que o levaram até o destino atroz, mas segue adiante, sofrendo conscientemente, aguardando que Deus volte a abençoá-lo. “A menina” é um texto que deveríamos ler de joelhos.      

E como poderíamos definir a crônica “Paulo Rodrigues”? É um altar erigido em memória daqueles que amamos e, infelizmente, morreram antes de nós. A lamentação fúnebre nos surpreende no meio da noite, quando estamos indefesos, certos de que tudo está bem. Trata-se de um exemplo da ampla coleção de crônicas autobiográficas nas quais Nelson se coloca no papel do herói trágico: personagem e narrador; paciente e testemunha – mas submetido aos desígnios do destino.

Os trágicos nunca olham a morte como algo fortuito ou previsível, mas como a força que, inerente ao homem, o condena à fragilidade. “Na hora de morrer, e quando sabe que está morrendo – o homem tem um olhar súplice e insuportável de criança batida. Não, não, um olhar de contínuo. Sempre imagino que o arquiduque austríaco, com os intestinos de fora, morreu como o último dos contínuos”, diz Nelson Rodrigues.

A experiência da tragédia não se resume, no entanto, às mortes familiares. A tuberculose também se encarregou de moldar a forma de Nelson ver a existência. Os meses que viveu em contato íntimo com a morte – ouvindo as tosses que se repetiam noite adentro, compartilhando as frustrações de um tratamento que em nada se assemelha aos métodos da medicina contemporânea, podendo testemunhar a decadência física e moral dos companheiros de enfermaria – estão relatados em inúmeras crônicas. Mas “A casa dos mortos” guarda elementos peculiares: há nesse texto a síntese da técnica rodriguiana. O começo despretensioso engana o leitor. Segundos depois, percebemos que adentramos um túnel povoado de lembranças infelizes. Então, talvez desejando nos despistar mais uma vez, Nelson torna-se tragicômico. Mas há um tom grotesco que sibila por trás da narrativa, como se a tragédia não aceitasse ser destronada pela comédia. Até que, três parágrafos antes do fim, a primeira vence, qualquer possibilidade de riso desaparece, e a derrota humana surge na sua forma mais abjeta: espelhando-se na derrota animal. O escritor se lembraria para sempre daquele primeiro período em que lutou contra a doença, em Campos de Jordão: “No Sanatorinho, aprendi a olhar no fundo da nossa brutal e indefesa fragilidade. Ninguém é forte”.

Igualmente trágica é a sinceridade de Nelson. Seus relatos sobre como pedia aos colegas para que escrevessem elogiando suas peças, ou a confissão de ter escrito artigos furiosos contra o crítico Álvaro Lins, que repugnara Álbum de família, mas assinando-os, pusilânime, com os nomes dos amigos, colocam-no na condição do herói que busca purgar a própria culpa. Herói solitário, cujo isolamento ganha uma dolorosa concretude no contraponto da crônica “O autor sem apoteose”: de um lado, a fama, o sucesso brilhando nas “cintilações delirantes do lustre do Municipal”; de outro, a fria realidade do bife com fritas, na solidão depois da primeira apresentação de Vestido de noiva.

As coisas ditas uma vez

O estilo de Nelson Rodrigues é uma prova de que os manuais nem sempre estão certos. Ele caminha, por exemplo, na contramão do ideário poundiano, incansavelmente disseminado no Brasil, e não se preocupa em condensar a mensagem num mínimo pouco inteligível de palavras, como as novíssimas gerações gostam de fazer. Ao contrário, sua adjetivação desconhece barragens e os superlativos são usados sem pudor.

A composição de sua frase ganha, assim, uma potência que reanima os substantivos; e suas metáforas, ainda que paguem, algumas vezes, o preço da grandiloquência, guardam certa brutalidade, certa carga muitas vezes quase indecorosa, que coloca a língua em um surpreendente patamar. A psicanálise é a “joia da ociosidade”, a “flor do lazer”. Um amigo “tinha a tal voz fininha de criança que baixa em centro espírita”. Ao falar de sua própria ingenuidade, trata-a como “crassa e espessa”. Há “homens fluviais”, aqueles que fertilizam várias gerações com suas ideias. E há também as “verdades totais”, o “extrovertido ululante” (“ululante” é um dos seus qualificativos prediletos), a “polidez hedionda”. A dignidade de Quintino Bocaiuva torna-se incontestável diante da afirmativa: “Saía da redação como uma estátua que volta ao seu monumento”. “No centro de Londres, com um sol de rachar catedrais”, um amigo vê “um inglês, de casaca e cartola, deslizando como um cisne”. Os suspensórios que trazem desenhos de vaquinhas, carneirinhos, etc., são definidos como “um presépio liliputiano”. E falando de si próprio, ele diz, “eu era pequenino e cabeçudo como um anão de Velásquez”.

Somemos essa linguagem aos personagens recorrentes – o milionário paulista, a estagiária de calcanhar sujo, o padre e a freira de passeata, etc. –, aos temas que ele ataca de maneira obsessiva – Nelson confessaria: “eu sou uma flor de obsessão” –, e teremos um todo multifacetado e coerente, centenas de crônicas que, enfeixadas, poderiam ser um vasto romance, o grande romance brasileiro, o panorama de uma época. E não nos enganemos: tudo é intencional nessa obra. O próprio Nelson nos diz: “Aprendi que as coisas ditas uma vez e só uma vez, morrem inéditas”.

Rei dos oximoros, Nelson também é o cultor por excelência das contradições. Moralista ao estilo de La Rochefoucauld, ele pode desacreditar dos homens e, ao mesmo tempo, endeusar aqueles que escolhe. Defende o amor eterno, o amor predestinado de almas supostamente gêmeas, mas também afirma que “sem um mínimo de morbidez, ninguém consegue gostar de ninguém. O amor ou é puro desejo ou, menos do que isso, a posse sem desejo”. Em “A mulher da gargalhada”, faz um estudo antropológico sobre a decadência da civilidade e do pudor, mas páginas depois se deixa arrebatar por alguma vulgaridade, estarrecendo seus leitores, que não sabem quanto do seu discurso é puro sarcasmo. Na crônica “O milionário não sabe comer”, revela-se um refinado psicólogo social, mas nega-se a aceitar ou compreender os movimentos sociais que se opõem à ditadura, a chamada “opinião pública”, para ele, “uma doente mental”.

Vaticínios

Carlos Heitor Cony acertou em grande parte do que escreveu no prefácio que abre O reacionário – memórias e confissões, mas erra ao dizer que “as crônicas de Nelson são datadas”.

Na verdade, Nelson Rodrigues foi profético. Se as críticas que fazia aos regimes comunistas, entre as décadas de 1960 e 70, pareciam reacionárias, o tempo as transformou em peças de clarividência e sensatez. Não é magnífico ler essas crônicas e ver as tolices que já foram escritas neste país? Imaginem Alceu de Amoroso Lima defendendo a Revolução Cultural chinesa. Devia provocar orgasmos na esquerda de 1971. Mas, hoje, quem se atreveria a tal disparate, a não ser – outro adorado personagem de Nelson – o eterno “débil mental por simples pose ideológica”?

Fiel às suas contradições, Nelson Rodrigues, censurado diversas vezes, tripudia sobre a esquerda em nome da liberdade – “Eu sou um homem que põe a liberdade acima do pão”, ele diz –, e, vivendo sob a ditadura militar, chega a tecer elogios ao general-presidente Garrastazu Médici. Mas ninguém pode acusá-lo de ser tímido ou hipócrita. Ele jamais teceu um discurso melífluo, que se autodesculpa a cada parágrafo ou faz contorcionismos retóricos para edulcorar o que deseja dizer e, assim, agradar igrejinhas, manter-se amigo de todos. A seu modo, permaneceu coerente até o fim, ironizando os que defendiam “a marcha irreversível para o socialismo”: “Acho admirável a simplicidade com que o mestre [Alceu Amoroso Lima] administra a História, sem dar satisfações a ninguém, e muito menos à própria História. Não lhe faria mal um pouco mais de modéstia”.

Hoje, quando as utopias mostraram-se falsas e inexequíveis, quando o pensamento anti-histórico foi derrotado, a arte de Nelson Rodrigues permanece atual e incólume. E se, como ele bem anteviu, a “ascensão dos idiotas” prossegue, voltar à sua obra representa – neste império de filisteus – um exercício de prazer e lucidez.

maio 08, 2012

À espera de justiça


Este mês, no jornal Rascunho, falo sobre o esquecido romance A falência, de Júlia Lopes de Almeida:

No tecido da literatura brasileira há um vigor que não cansa de pulsar. São os autores esquecidos, sobranceados pelos que, injustamente, se tornaram famosos. Traídos pelas convenções estéticas, pelas panelinhas que controlam os cadernos culturais e pelos críticos obedientes a modismos, esses menosprezados cumprem, no entanto, digno papel: o de aguilhoar o establishment e comprovar que, andando na contramão, também é possível produzir boa literatura. Silentes, preenchendo as prateleiras dos sebos ou o canto úmido das bibliotecas, tais obras sussurram aos novos escritores: “Não receiem tomar emprestados meus acertos e melhores lições”.

abril 03, 2012

Puro pedantismo

No Rascunho deste mês, minha análise do romance Canaã, de Graça Aranha: “Jamais entendi por qual motivo afirma-se que Canaã é um romance nacionalista — e, consequentemente, teria sido uma das obras que anteciparam as ideias da Semana de 22. A bem da verdade, se há exaltação dos valores nacionais nesse livro, estão descritos às avessas — ou foram encontrados por algum crítico fantasioso. [...] A cada página, reaparece o fel do naturalismo, pretensamente científico, de Aluísio Azevedo. Eco da escola evolucionista e do germanismo de Tobias Barreto, de quem Graça Aranha foi discípulo, Canaã também apresenta respingos da lama frenologista e preconceituosa de Mestiçagem, degenerescência e crime, de Nina Rodrigues”.

fevereiro 07, 2012

Murilo Rubião e suas respostas à vida agonizante


          A reduzida obra de Murilo Rubião pode ser qualificada como extemporânea, se a analisamos no âmbito estrito da literatura brasileira. Contudo, quando observados sob um ângulo mais abrangente, o da produção literária latino-americana, os contos do escritor mineiro passam a dialogar com o realismo mágico de, por exemplo, Borges e Cortázar.

Alguns preferem utilizar a expressão “realismo fantástico” para designar esse subgênero que foi renovado durante o famoso boom da literatura latino-americana de língua hispânica e alcançou importância medular na literatura mundial, mas o qualificativo “mágico” reflete melhor essa ficção aparentemente realista, na qual fantasia e realidade confundem-se a ponto de ser impossível, algumas vezes, discerni-las com precisão. Os elementos extraordinários ou maravilhosos encontram-se inseridos na normalidade, nunca obscurecidos pelo corriqueiro, mas despontando aqui e ali, de maneira a provocar guinadas no enredo, extasiar ou confundir o leitor, ou simplesmente inocular desconsolo, espanto, estranheza. Trata-se de uma literatura que privilegia o insólito, mas sem ferir a congruência interna das narrativas, criando, sob a aparência de absoluta naturalidade, uma verossimilhança cuja lógica está fundada no irreal, mas não necessariamente no fantasmagórico ou no terror.

Em sua tentativa de rastrear as origens do realismo mágico, o filósofo mexicano Ramón Xirau, no ensaio “Crisis del realismo” (América Latina en su literatura), procura “os diversos sintomas e diversos caminhos de uma busca literária que não se conforma com um realismo relativo aos fatos”, e os encontra nas primeiras narrativas da literatura espanhola, como o Cantar del Mío Cid: “[...] Nesta literatura real e de vulto, às vezes exposta brutalmente, sem paliativos, está muitas vezes presente uma maneira de violentar a realidade e transcendê-la. El Cid é real e concreto; não esqueçamos que ganha sua última batalha, já herói mítico, depois de morto”.

Com certeza, não são essas as raízes do realismo mágico de Rubião, mas talvez remontem àquela primeira narrativa da descoberta, quando, sob o olhar de Pero Vaz de Caminha, os índios tornam-se “tão limpos e tão gordos e tão fremosos que não pode ser mais!”, sem esquecer das descrições sobre o Éden enfim reencontrado, que conformam um relato nitidamente onírico, no qual já se anunciava, segundo a observação de Luciana Stegagno Picchio (História da literatura brasileira), “o mito sempre colimado [...] do eldorado edênico, ‘visão do paraíso’, na feliz expressão de Sérgio Buarque de Holanda [...]”.

Decepções irremediáveis

No entanto, se de fato forem essas as raízes do realismo mágico brasileiro, Murilo Rubião utiliza tal herança de maneira felizmente adversa, destruindo qualquer possibilidade de esperança, subvertendo o ideal do paraíso à crua realidade, na qual o tédio, a amargura, o amor irrealizado, o desespero irremediável e as buscas decepcionantes são intensificados pelo elemento de delírio que, ao invés de oferecer uma possibilidade de escape ou de superação metafísica, massacra ainda mais os personagens aflitos, quase sempre medíocres, escravizados às suas familiazinhas pequeno-burguesas – ou tentando inutilmente fugir delas – e ao cotidiano mesquinho.

         Em “A casa do girassol vermelho”, por exemplo, no livro de mesmo título, a narrativa começa sob um clima de alegria sensual. O êxtase físico marca as páginas iniciais com ânimos inflamados pelo sentimento de libertação. “[...] Naquela manhã quente, queimada por um sol violento, a Casa do Girassol Vermelho, com os seus imensos jardins, longe da cidade e do mundo, respirava uma alegria desvairada”, diz o narrador. Pouco a pouco, a sombra do velho Simeão, “porco imundo” e “puritano hipócrita”, pai adotivo de todos os personagens, falecido subitamente, retorna ao convívio dos filhos, pois suas agressões são inesquecíveis. Então, a atmosfera de entusiasmo se arrefece, não só por causa das lembranças opressivas, mas também pela morte de um dos irmãos, o desbocado Xixiu, que submerge nas águas da represa. A partir desse ponto, é como se o velho Simeão jamais tivesse morrido. “Olhavam-me mudos”, diz o narrador, “os rostos sem esperança. [...] Tudo se quebrara.” Eles viviam “o último dia”, sem nada que pudesse amenizar a existência, contaminados pela morte e pelas dores que toda a euforia inicial não conseguira abrandar. Assim, sem qualquer explicação, os personagens se entregam a um fado de silencioso desespero, enquanto o narrador vê nascer, no ventre de uma das irmãs, “as primeiras pétalas de um minúsculo girassol vermelho”.

A mesma irrecuperabilidade encontra-se em “O lodo” (in O pirotécnico Zacarias). Os desencontros marcam, desde o começo, a relação entre Galateu e o psicanalista Pink da Silva e Glória, a quem o primeiro procura, motivado por “uma depressão ocasional”. O diagnóstico surge antes mesmo do término da primeira consulta: “[...] Repreensivo, assegurou que o paciente carregava dentro de si imenso lodaçal”. Sem nada entender, o paciente se recusa a continuar o tratamento. Perseguido por Pink, que insiste em curá-lo, Galateu se debate em um delírio crescente e angustiante. Depois de ter um pesadelo – “uma faca penetrava-lhe a carne, escarafunchava os tecidos, à procura de um segredo. Sua irmã Epsila e o analista, debruçados sobre seu corpo, acompanhavam atentos os movimentos irregulares da lâmina” –, ele acorda e, ao se olhar no espelho, vê que, no lugar do mamilo esquerdo, “despontara uma ferida sangrenta, aberta em pétalas escarlates”. O pesadelo deixara sua marca. O espanto, contudo, é superado. Passados dois meses de aparente tranqüilidade, a intuição de que voltaria a ser perseguido pelo médico faz a ferida reabrir. E, realmente, tudo recomeça. Sob intensa pressão, Galateu não resiste e adoece. Inesperadamente, a irmã surge para cuidar dele, acompanhada do filho “retardado mental”. A partir desse ponto, tudo se precipita e o horror se instala, até chegarmos ao final, quando a cena do pesadelo se concretiza, com Pink e Epsila debruçando-se “sobre o corpo moribundo”.

Desde os primeiros parágrafos, uma culpa apenas presumível se introduz no relato, como se o animal libertado durante a primeira sessão de análise não pudesse mais ser contido. Finalmente, a culpa explode a carne, mas só depois se revela na confirmação do incesto entre os irmãos, levando a uma sucessão de acontecimentos que acabam por condenar Galateu. Quando não há mais espaço para qualquer atitude lúcida, quando tudo é invadido pela incoerência, resta apenas a ferida aberta ao sadismo dos algozes.

Essa narrativa atroz não pretende, no entanto, comunicar qualquer moral. Não se trata de uma parábola nos moldes bíblicos e tampouco de uma alegoria. Mais do que a pretensão de transmitir valores sob uma forma figurada, o conto objetiva criar um microcosmo terrível, sufocante, no qual o narrador fornece apenas os elementos essenciais para manter a lógica do enredo. A história fecha-se em si mesma de tal maneira, que o desvendamento de alguns supostos símbolos seria um exercício fútil.

Sarcasmo e zombaria

Mas Rubião tem momentos de bom humor. No conto “O ex-mágico da Taberna Minhota” (in O pirotécnico Zacarias), apesar do desconsolo que acompanha toda a narrativa, o mágico – suspenso em uma existência sem passado e desejando um fim impossível, enfastiado de viver – decide tornar-se um burocrata, pois “ouvira de um homem triste que ser funcionário público era suicidar-se aos poucos”. Meses depois, quando volta a precisar de seus dotes de ilusionista, descobre que “a faculdade de fazer mágicas [...] fora anulada pela burocracia”. Uma evidente crítica mordaz, na qual o serviço público aniquila inclusive o que é fabuloso ou incomum.

Em “Ofélia, meu cachimbo e o mar”, presente na mesma coletânea de “O ex-mágico da Taberna Minhota”, a irrisão reaparece. O narrador nos conduz por memórias tortuosas, marcadas de evidente melancolia, nascida, por sua vez, de uma história de insucessos que atestam a inevitável – e insuperável – distância entre os desejos e a realidade. Durante suas recordações, o narrador reserva à memória do pai dois comentários sarcásticos. O primeiro, de que a última viagem paterna por pouco não havia sido marítima, pois ele “morreu engasgado com uma espinha de peixe”. A seguir – dando seqüência ao relato dos eventos marítimos que distinguem a história da família, apesar de ter nascido em “um vilarejo de Minas, agoniado nas fraldas da Mantiqueira” –, surge a segunda revelação, uma importante referência à higiene do genitor: o pai jamais externara “o desejo de ser navegador, nem tampouco abusou dos banhos”. Ao final, vencida uma série de contradições, tudo se revela falso, incluindo a companheira que o escuta, sua adorável Ofélia, e o leitor percebe, penhorado, que caiu em uma esparrela.

O mesmo tipo de escárnio é encontrado em “Memórias do contabilista Pedro Inácio” (in A casa do girassol vermelho), a começar de uma das epígrafes, retirada de Machado de Assis: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”. A um passo do final da narrativa, o contabilista descobre que, além de todas as suas memórias serem infundadas, ele é filho de uma prostituta. O que abala seu ânimo, entretanto, é pensar em todos os gastos que teve nos estudos genealógicos sobre sua falsa família e, igualmente grave, o fato de que jamais saberá a origem de sua calvície. Mais uma vez, o narrador/personagem encontra-se suspenso em uma situação dúbia e inexplicável, da qual ele se salva, neste caso, graças à sua ilimitada e incontrolável fixação nos cálculos das despesas e dos ganhos que se escondem na realidade. O insólito, distante do sobrenatural, transmuta-se em fatos rotineiros, plenos de banalidade.

Narrador onisciente

“O ex-mágico da Taberna Minhota”, “Ofélia, meu cachimbo e o mar” e “Memórias do contabilista Pedro Inácio” fazem parte de um conjunto formado por doze contos narrados em primeira pessoa, dentre os 22 que compõem os dois volumes lançados, até março de 2007, pela Editora Companhia das Letras. É a característica de Rubião que, depois dos temas extraordinários, mais ressalta. Trata-se de um narrador que se dirige aos leitores às vezes com intimidade, oferecendo descrições eivadas de suposta sabedoria, anunciada pelas epígrafes da Bíblia que abrem todos os contos, mas que acaba sempre por se dissipar, substituída pelo desvario ou pelo erro.

A fórmula se repete tanto, que chega a contrariar. Assim, em um primeiro momento, o tom confessional surge como uma desagradável fragilidade, a chamar a atenção do leitor, insistentemente, para o ato de narrar, como se desejasse lembrar-nos que o texto é apenas ficção. Mais tarde, em uma segunda leitura, ao reencontrarmos o narrador que não só testemunha, mas protagoniza vários relatos, percebemos que esse foco narrativo, necessariamente limitado, é a ferramenta justa, em muitos casos, à construção do universo mágico do autor, no qual o realismo comum se desintegra sob a autoridade onisciente da voz que tudo vê e tudo sabe.


        Murilo Rubião nos deixou apenas 33 histórias, reescritas incansavelmente. A figura desse funcionário público, com seu bigode bem aparado e sua calva, limando anos seguidos as frases que dão vida ao seu mundo fantasioso, é também ela uma personagem mágica, pois esconde dentro de si o bufão e o burocrata entediado, o confidente de um coelhinho chamado Teleco e Godofredo, caminhando em círculos, de uma mulher a outra, somente para reencontrar a mesma figura, a mesma insatisfação. Ou um morto-vivo como o pirotécnico Zacarias, a perguntar-se, sem encontrar resposta, “que acontecimentos o destino reservará a um morto se os vivos respiram uma vida agonizante?”.

outubro 24, 2011

Manuel Antônio de Almeida: talento para recriar a vida

Há uma qualidade indiscutível em Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida: passado mais de um século e meio da sua publicação – de 1852 a 1853, na forma de um folhetim semanal anônimo, no suplemento “Pacotilha” do jornal Correio Mercantil –, o romance não se dobra às classificações da crítica. E a qualidade só aumenta quando lembramos que a obra nasce em pleno romantismo, três anos antes de surgir, também no formato de folhetim, O guarani, de Alencar; e cresce ainda mais pelo fato de a narrativa ser uma contraposição – ao que parece, irrefletida, espontânea – à grandiloquência, à retórica e ao sentimentalismo exacerbado dos românticos.

Aliás, no que se refere à espontaneidade, a obra de Manuel Antônio de Almeida apresenta aos escritores a chance de refletirem sobre o ofício da escrita, pois nosso autor sempre falhou – vejam seus poemas, absolutamente medíocres – quando pretendeu ser literato. Alguns de seus trabalhos são, portanto, um convite à reflexão sobre a fronteira que separa a literariedade do texto artificial, o metaforismo do jogo de palavras vazio, a literatura dos malabarismos verbais, a arte do vanguardismo oco, o que efetivamente permanecerá do que é apenas moda aprovada por uma minoria de supostos mandarins da crítica – que também acabam, com o tempo, esquecidos.

Marques Rebelo, autor de um ótimo livro sobre Manuel Antônio de Almeida – esgotado, infelizmente, há mais de quarenta anos –, conta que o escritor produzia os capítulos do Memórias de forma despretensiosa, enquanto os amigos discutiam política ou literatura, cantavam e tocavam violão: “[...] esticado numa marquesa, com preguiça de mudar a horizontal atitude, punha o chapéu alto sobre o ventre e em cima dele ia enchendo a lápis as suas tiras de papel, indiferente às risadas dos companheiros, sem dar grande importância ao seu trabalho, que nem era assinado [...]”. Comportamento, aliás, que corrobora o testemunho de um amigo do escritor, Francisco Otaviano, segundo o qual Manuel Antônio de Almeida “adivinhava com alguns momentos de atenção tudo o que não estudara e escrevia sobre assuntos examinados de relance, como se de longo espaço os tivesse aprofundado”.

Compadrio e perversões

Surge dessa genial naturalidade o livro escrito por um jovem de 21 anos, obra que, romântica ou não, precursora ou não do realismo, influenciada ou não pela literatura picaresca, narra, por meio de uma voz indulgente e jocosa, o cotidiano de pessoas comuns. O narrador do Memórias flagra os personagens em meio à vida que condena todos, de uma forma ou de outra, ao anonimato, a pequenas e múltiplas mesquinharias – a maior parte das vezes, jamais reveladas – e a insignificantes gestos de heroísmo. Ele se coloca, assim, entre dois outros escritores que, opondo-se ao turbilhão de pieguice do romantismo brasileiro, conseguiram rir: Álvares de Azevedo – infelizmente em raras oportunidades, como no poema “É ela! É ela! É ela! É ela!” – e Martins Pena.

A verdade simples, banal, das relações humanas nasce, a cada página do Memórias, despojada de idealismo ou angústia, e somos levados, desde a primeira linha – “Era no tempo do rei” – a um microcosmo cujo retrato não tem compromisso algum com a crônica histórica ou com a descrição fidedigna dos costumes da época de d. João VI, mundo no qual o que está em jogo é a sobrevivência diária de homens e mulheres que não se perguntam, sombrios, por qual motivo foram jogados na face da Terra ou qual o sentido de suas existências, mas cumprem seu fado usando os meios que têm à mão, não importando se desagregam lares, ferem interesses de outrem ou maculam princípios éticos e religiosos.

Assim, não há um só personagem – favorável ou contrário ao protagonista – que não tenha defeitos ou esconda alguma segunda intenção: Leonardo-Pataca (pai do protagonista homônimo) é um mulherengo carente; a mãe de Leonardo (filho de Leonardo-Pataca), uma adúltera; o padrinho, barbeiro que acolhe o menino quando os pais se separam, enganador e ladrão de heranças. A própria comadre, madrinha do menino, sua fiel protetora, quando surge a oportunidade não hesita em mentir para defender os interesses do afilhado e, insinuante, arranja o casamento de Leonardo-Pataca com sua sobrinha. O padre que ocupa o cargo de mestre-de-cerimônias da Sé, exemplo de moralidade, é amante de uma cigana. E até mesmo o major Vidigal, símbolo irrepreensível da ordem e da lei, acaba vencido por seu calcanhar de Aquiles. O único que vive acima desse gregarismo marcado pelo compadrio e por pequenas perversões – mas sempre usufruindo dele – é Leonardo, que está longe de se mostrar “esvaziado de lastro psicológico”, como afirma Antonio Candido, mas, ao contrário, demonstra o perfil típico de quem é criado, longe dos pais, por um adulto que lhe faz todas as vontades e só o elogia, encontrando méritos nos seus piores comportamentos: será uma eterna criança, acostumada a deixar as decisões a cargo dos que direcionam sua vida; um sonhador que nada faz de útil, vivendo às expensas dos outros, incapaz de lutar pelo que deseja, mesmo quando se trata de uma paixão.

Império feminino

Sempre considerei incrível que, apesar de suas dificuldades financeiras, Manuel Antônio de Almeida tenha conseguido escrever um romance tão leve, descomprometido com a estética de seu tempo, empenhado na tarefa de apenas contar uma boa e divertida história. A vivacidade desse livro não é obscurecida nem mesmo pela presença do vocabulário, de forte influência portuguesa; e essa característica se contrapõe a outro aspecto do romantismo, pois demonstra o quanto não era essencial a luta de alguns, principalmente de Alencar, para dar vida a uma linguagem verdadeiramente brasileira.

O romance, inclusive, diverge da própria organização social do país, supostamente patriarcal, ao colocar as mulheres no papel de protagonistas. Manuel Antônio de Almeida cria um império feminino, verdadeiro matriarcado, onde os personagens masculinos sempre se submetem – além de raramente tomarem alguma importante iniciativa. Elas não se assemelham às heroínas de Alencar, não almejam pureza, santidade ou o êxtase de um grande amor, mas sabem unir sedução, doçura maternal, tirocínio e desembaraço para os arranjos que podem beneficiar a si mesmas ou aos seus queridos. Sim, têm defeitos – “Espiar a vida alheia, inquirir dos escravos o que se passava no interior das casas, era naquele tempo cousa tão comum e enraizada nos costumes, que ainda hoje, depois de passados tantos anos, restam grandes vestígios desse belo hábito”, ironiza o narrador –, mas se impõem, unidas, certas do que desejam, sem jamais titubear, para proteger seus escolhidos. Até mesmo a tímida, feia e desengonçada Luizinha confirma o protagonismo das mulheres, pois, logo após a morte do marido, é quem se antecipa no jogo de sedução, a fim de casar com Leonardo.

Mas não estamos diante de uma cartilha que faz a apologia do feminismo. Não. Isso seria diminuir um romance cuja pièce de résistance é a ironia. No entanto, por razões desconhecidas – o autor pretendeu agradar ao público leitor da época, formado principalmente por mulheres, ou manifestou uma influência da infância, quando vivia protegido por sua mãe e pelas irmãs? –, são as mulheres que movem a trama e lutam para girar a roda da fortuna. A importância delas avulta inclusive nas personagens secundárias: a mulata Vidinha, com seu sorriso capaz de derrotar qualquer oponente, e seu bordão, “qual”, repetido sempre com extrema graça, e a vizinha do barbeiro, trocista e zombeteira, persistem na imaginação dos leitores.

Críticas e influência

É estranho que tal romance tenha recebido críticas nem sempre positivas. José Veríssimo fala em “trivialidade do assunto, pobreza do enredo e banalidade dos personagens”, chamando atenção para o “estilo incorreto, descosido e solto, de uma simplicidade que é trivial, de um caráter sem feição, nem relevo”. E, entre os modernistas, Mário de Andrade, apesar de considerar Manuel Antônio de Almeida um “vigoroso estilista”, achava “incontestável que o autor das Memórias se exprimia numa linguagem gramaticalmente desleixada”. Mário, aliás, não consegue rir livremente enquanto lê o romance. Na introdução que escreveu para a edição de 1941, põe-se a denunciar o “achincalhe das classes desprotegidas, mais cômodas de ridicularizar por menos capazes de reação”. Logo a seguir, volta à carga: “Se exclui e se diverte caçoando, sem a menor intenção moral, sem a menor lembrança de valorizar as classes ínfimas. Pelo contrário, aristocraticamente as despreza pelo ridículo, lhes carregando acerbamente na invenção, os lados infelizes ou vis”. E, no penúltimo parágrafo, solta mais impropérios: “Das suas angústias materiais, da infância pobre, o artista não guardou nenhuma piedade pela pobreza, nenhuma compreensão carinhosa do sofrimento baixo e dos humildes. Bandeou-se com armas e bagagens para a aristocracia do espírito e, como um São Pedro não arrependido, nega e esquece. Goza. Caçoa. Ri”. Certamente, o autor de Macunaíma se refestelaria nos dias de hoje, quando certa subliteratura politicamente correta, de contestável valor, é guindada ao lugar de honra no pódio construído pela crítica literária de esquerda.

Serão Eugênio Gomes, no ensaio conciso e perfeito de Aspectos do romance brasileiro, e Antonio Candido, no seu “Dialética da malandragem” – do qual deve ser descontado certo esquematismo sociológico –, aqueles que demonstrarão compreender a índole do romance e seu papel central em nossa literatura, inclusive como antecipador da obra machadiana.

A propósito, a influência de Manuel Antônio de Almeida sobre Machado é tema que pede aprofundados estudos. Mário de Andrade escreve de forma injusta ao afirmar existir “algo do estilo espiritual de Machado de Assis” no autor do Memórias, pois a verdade deveria ser dita na ordem inversa: o autor de Dom Casmurro, além de protegido por Manuel Antônio de Almeida na Tipografia Nacional, onde era considerado um preguiçoso, herdou de seu protetor não só a sutileza da frase, mas a habilidade para construir um narrador irônico, que apresenta os homens sem julgá-los e se dirige ao leitor como se este fosse seu cúmplice. Ascendência inevitável, convenhamos, inclusive porque Machado revisou o Memórias, a fim de preparar o livro para a edição de 1862/1863.

Estamos, portanto, diante de um romance cujas influências são maiores do que se imagina – e ainda pobremente detectadas na literatura nacional, já que os influenciados, repetindo o que o próprio Machado fez, mostram-se lacônicos quando se trata de tecer elogios a Manuel Antônio de Almeida.

Ironia e galhofa

No que se refere à ironia, ela está presente do começo ao fim do livro, sugerindo ou implicando conclusões diferentes daquelas que o narrador parece exprimir: o contexto e as contradições dos termos despertam dúvida ou riso, construindo uma narrativa que alguns críticos, erroneamente, supuseram “moralizante”. Na verdade, o narrador não julga, mas, ao discordar de um costume ou de certo comportamento, apenas expressa, de maneira paternal ou jocosa, a sua censura – escarnecendo, jamais sentenciando. É o que ocorre no capítulo da procissão dos ourives, sobre a qual o narrador aponta modismos e desvirtuamentos, mas também descreve os diferentes aspectos do cortejo religioso, incluindo o encanto e a graciosidade do rancho das baianas – sob seu ponto de vista, manifestação completamente fora de lugar. Ou, em outro trecho, ao depreciar a moda da mantilha, transformada em mau gosto: “Este uso da mantilha era um arremedo do uso espanhol; porém a mantilha espanhola, temos ouvido dizer, é uma cousa poética que reveste as mulheres de um certo mistério, e que lhes realça a beleza; as mantilhas das nossas mulheres, não; era a coisa mais prosaica que se pode imaginar, especialmente quando as que as traziam eram baixas e gordas como a comadre. A mais brilhante festa religiosa [...] tomava um aspecto lúgubre logo que a igreja se enchia daqueles vultos negros, que se uniam uns aos outros, que se inclinavam cochichando a cada momento”. Conclusões mais próximas da galhofa do que de uma pretensa moralização.

Nesse romance, cujas histórias se repetem, todos os dias, em qualquer bairro de classe média baixa, há espaço também para a crítica politicamente incorreta, por exemplo, quando o narrador passa a falar mal daqueles que, hoje, poderiam ser considerados mais uma das minorias ditas indefesas: “A poesia de seus costumes [dos ciganos] e de suas crenças, de que muito se fala, deixaram-na da outra banda do oceano; para cá só trouxeram maus hábitos, esperteza e velhacaria [...]”. E não há traço de ufanismo em Manuel Antônio de Almeida: nenhuma virgem – índia, negra, mulata ou branca – tem “lábios de mel”, e os sabiás, se deles tivesse falado, gorjeariam como qualquer outro pássaro, em qualquer lugar do mundo, às vezes incomodando com seu chilreio repetitivo.

Plasticidade

A descrição da casa de um fidalgo, na qual o pó cobre da rótula à palma benta esquecida a um canto, e do próprio morador, “de cara um pouco ingrata”, que se apresenta ao visitante “de tamancos, sem meias, em mangas de camisa, com um capote de lã xadrez sobre os ombros, caixa de rapé e lenço encarnado na mão”, ou os pormenores utilizados para nos apresentar a sala de aula em que Leonardo estudará – “mobiliada por quatro ou cinco longos bancos de pinho sujos já pelo uso, uma mesa pequena que pertencia ao mestre, e outra maior onde escreviam os discípulos, toda cheia de pequenos buracos para os tinteiros; nas paredes e no teto haviam penduradas uma porção enorme de gaiolas de todos os tamanhos e feitios, dentro das quais pulavam e cantavam passarinhos de diversas qualidades” – são alguns dos inúmeros trechos que extrapolam o simples realismo ou a crônica de costumes, passagens talvez inspiradas nos relatos de Antônio César Ramos – funcionário do Correio Mercantil, chegara à patente de sargento nas milícias de d. João VI – ao escritor, mas que, certamente, foram transfigurados por acréscimos e distorções.

Se a força imaginativa desse jovem autor cria cenas de inusitada plasticidade, seus personagens parecem respirar, não devido ao exagero de características, mas à escolha perfeita do que merece ser ressaltado: “Era a comadre uma mulher baixa, excessivamente gorda, bonanchona ingênua ou tola até certo ponto, e finória até outro; vivia do ofício de parteira, que adotara por curiosidade, e benzia de quebranto; todos a conheciam por muito beata e pela mais desabrida papa-missas da cidade. Era a folhinha mais exata de todas as festas religiosas que se faziam”. Descrições nas quais a psicologia nunca é menosprezada, como no trecho a seguir, quando o narrador justifica a atitude tolerante do barbeiro em relação às estripulias de Leonardo: “Era isto natural em um homem de uma vida como a sua; tinha já 50 e tantos anos, nunca tinha tido afeições; passara sempre só, isolado; era verdadeiro partidário do mais decidido celibato. Assim à primeira afeição que fora levado a contrair sua alma expandiu-se toda inteira, e seu amor pelo pequeno subiu ao grau de rematada cegueira”.

Falsificação e verdade

Perguntei-me, enquanto relia o Memórias, quais seriam os defeitos da obra. E encontrei-os, acreditem: no final do Capítulo IX do Tomo II, vemos as dificuldades de um narrador onisciente que, apesar de reter em suas mãos todas as informações – o que não é, de fato, um problema –, parece ter medo de se alongar, por falta de tempo ou espaço, sentindo-se premido a unir os fios soltos do enredo mediante considerações genéricas, inconvincentes. Situação repetida no Capítulo XIII do mesmo tomo, no qual o narrador resume os fatos, dando ao texto um tom superficial, esquemático. Em outros raros momentos, abusa-se de uma solução redentora: no Capítulo X do Tomo II, transcorrem semanas antes que descubram onde Leonardo está, pois abandonou a casa paterna depois de brigar com sua jovem madrasta; mas quando o protagonista se vê acossado por rivais, surge no instante propício, inesperadamente, sua principal defensora, a comadre.

Tais senões, entretanto, são tragados pela absoluta maioria de ótimas cenas. Vejam o Capítulo I do Tomo II, no qual acompanhamos as minúcias de um parto, da preocupação e ansiedade do pai às orações, práticas e mezinhas da boa parteira – e não se trata, aqui, apenas de perfeição da escrita, mas do raro poder de revelar humanidade. Ou, ainda, a descrição dos estados de ânimo do protagonista ao se apaixonar por Luizinha: seu desconforto por desejar reciprocidade imediata, mas só receber, a princípio, falta de jeito e timidez. E sua insegura declaração de amor (Capítulo XXIII, Tomo I), enquanto Luizinha apenas gesticula ou enrubesce, “página que antecipa Machado de Assis em suas melhores realizações de caráter psicológico” – segundo a correta afirmação de Eugênio Gomes –, exemplo vivíssimo de um autor que domina a técnica do diálogo, transmitindo, por meio das reticências, dos silêncios e da brevidade das falas, a carga dramática adequada.

Mesclemos todas essas qualidades à correta adjetivação – às vezes exagerada de maneira proposital, a fim de ridicularizar ou escarnecer –, à capacidade de síntese – uma “equação meirinhal pregada na esquina” (Capítulo I, Tomo I) concentra, em poucas e felizes palavras, tudo que foi descrito antes, com extrema ironia – e ao formidável poder narrativo – quem não consegue enxergar um meirinho depois de ler que “nos seus semblantes transluzia um certo ar de majestade forense. Seus olhares calculados e sagazes significavam chicana”? – e teremos um romance genial, em que a natureza humana está presente sem falsificações; ou exatamente graças a elas, pois foram imaginadas com tal nexo, com tal harmonia, que recriam na ficção a excelência de uma verdade imorredoura.