abril 30, 2013

O idílio de Antônio Candido e a realidade

As melhores respostas às lucubrações românticas e aos devaneios idealistas de Antônio Candido em relação ao socialismo podem ser encontradas em dois ensaios magistrais: “De Profundis”, de George Steiner, publicado em George Steiner at The New Yorker (no Brasil, Tigres no espelho e outros textos da revista New Yorker, Editora Globo); e “Menos que um”, de Joseph Brodsky (em livro homônimo, publicado pela Cia. das Letras em 1994).

Esses dois ensaios mostram o que Antônio Candido insiste em não recordar, pois certamente não desconhece a verdade: retratam a vida concreta dos que lutaram para sobreviver sob um regime utopista, controlado pelos defensores do que Candido trata como “doutrina triunfante”.

Se há algo que triunfa sob regimes socialistas – sob o socialismo que Candido chama de “grande visão do homem, que não foi ainda superada, de tratar o homem realmente como ser humano” –, esse algo é a corrupção das consciências em nome da igualdade mentirosa, que concede poder, dinheiro, benesses e honrarias apenas aos bajuladores do governo.

O que prevalece sob regimes pretensamente igualitários é a fraude. E também o servilismo. Como disse Brodsky, ao recordar sua juventude na União Soviética, “os quatro anos de Exército (para o qual os homens eram convocados aos dezenove anos) completavam o processo de rendição total ao Estado. A obediência se transformava numa primeira e também numa segunda natureza”.

O que triunfa sob os regimes que Antônio Candido defende confortavelmente, sem ter experimentado um único dia de luta pela sobrevivência nos cárceres cubanos ou poucos minutos de tortura em algum Gulag, é sempre a morte. Moral ou física, mas sempre a morte.
 
Uma aula sobre “paralaxe cognitiva” não faria mal a Antônio Candido.

abril 29, 2013

Breves lições de Fernando Vallejo

“O gênio de Cervantes descobriu que a literatura, mais que na vida, inspira-se na literatura.”

“A eufonia, acima do próprio sentido, é a grande razão da literatura.”

“A má literatura abunda em clichês, mas também a boa.”

“A língua, com sua fugacidade e seus caprichos, escapa das mais engenhosas categorias em que os gramáticos pretendem aprisioná-la.”
 
“Dizia Aristóteles, em sua Retórica (III, II, 2 e 3), que o desvio do ordinário era o que fazia a linguagem da oratória parecer mais nobre. E que, já que o homem ama o insólito, o orador devia dar um ar estranho às suas palavras; algo que assombrasse aos seus ouvintes, fazendo com que se sentissem diante de um estrangeiro e não como se estivessem frente a um concidadão. Hoje, essa constatação de Aristóteles segue sendo uma grande verdade da linguística: a prosa é como uma língua estrangeira oposta à língua cotidiana.”

abril 27, 2013

A luta contra a mesmice

Vozes dissonantes são sempre bem-vindas neste mar de bajulações, hermetismos e lugares-comuns em que se transformou a crítica literária brasileira.

Neste mês de abril, ao ler, no Rascunho, “Sobraram apenas os óculos e o bigode”, ensaio no qual Marcos Pasche desconstrói Paulo Leminski, percebi, com alegria, que as coisas realmente começam a mudar. Sentimento, aliás, que já havia experimentado com Cristiano Ramos, que, no ensaio “O curioso caso de José Lins do Rego” (partes 1 e 2), rebate com vigor a injusta depreciação crítica do romancista paraibano.

Sucede que, em meio a trabalhos e leituras, passei por cima da coletânea de críticas que Marcos Pasche publicou – De pedra e de carne (Editora Confraria do Vento) – e teve a gentileza de me enviar. Só hoje uni o sanguinário autor do ensaio sobre Leminski ao nome que está na capa do livro. E, numa passada de olhos, encontrei no volume, para minha alegria, ao menos dois outros textos que recomendo a leitura: “Na vitrine do shopping” e “Com rigor e com afeto”. O primeiro, publicado no Rascunho sob o título de “Perto do tempo, longe da arte”, demole a poesia de Fabrício Corsaletti – confirmando o que Luis Dolhnikoff (outra boa voz dissonante) já havia percebido e eu próprio afirmara, mas referindo-me à prosa desse que é mais um dos tenros queridinhos da literatura nacional.

Quanto ao segundo ensaio, “Com rigor e com afeto”, trata-se da entusiasmada análise de um livro que deveria ser leitura obrigatória em todas as nossas faculdades de Letras: A literatura em perigo, no qual Tzvetan Todorov faz a síntese do que começou a perceber em Critique de la critique, de 1984, não por acaso nunca traduzido no Brasil, onde os acadêmicos preferem acreditar – comportamento, aliás, bem cômodo, para não dizer desonesto – que Todorov parou de escrever em 1971, ao publicar A poética da prosa, obra ultrapassada e, sob vários aspectos, renegada pelo autor.
 
Este post, contudo, não pretende assumir, nas últimas linhas, um tom pessimista. Não. O objetivo é exatamente o de comemorar as vozes críticas que começam a surgir – aliadas, cada uma a seu modo, na luta contra a mesmice.

abril 23, 2013

Literatura, ideologia e mundo empírico

O que acontece quando certa figura de estilo deixa de ser um recurso para ampliar a capacidade expressiva da linguagem e passa a obscurecer diferentes aspectos da realidade, da experiência humana?

A resposta a esse problema esquecido nos dias de hoje – quando alguns teóricos e escritores pretendem desvincular a literatura da realidade – encontra-se no artigo “Inversão retórica e realidade invertida”, que Olavo de Carvalho publicou em 2009.
 
Partindo de François Villon e Jean-Jacques Rousseau, Olavo analisa os perigos decorrentes da figura de linguagem que, transformada em ideologia, incorpora-se à psique – e, de forma indireta, denuncia a falácia de se acreditar que a literatura é autossuficiente ou está desligada do mundo empírico.

abril 19, 2013

O encadeamento da vida humana

“O que conta em uma vida humana não são os acontecimentos que a dominam através dos anos – ou inclusive dos meses – ou inclusive dos dias. É o modo como cada minuto se encadeia ao seguinte, e o que isso custa a cada um em seu corpo, em seu coração, em sua alma – e, sobretudo, no exercício da sua faculdade de atenção – para efetuar minuto por minuto esse encadeamento.”
 
Simone Weil, La condition ouvrière

abril 16, 2013

Muito mais que linguagem

Um curso sobre prática de leitura e formação do estilo pode ter inúmeras utilidades. É o que experimentamos, meus alunos e eu, nas últimas semanas, dialogando com Homero, W. B. Yeats, Italo Calvino, Paul Valéry e tantos outros autores. Contudo, a lição que mais nos estimula é perceber, a cada aula, como Roland Barthes estava errado: numa narração não há apenas “a aventura da linguagem”, ainda que a retórica barthesiana, sempre pronta a querer nos iludir, insista, subindo o tom: “a incessante celebração do advento da linguagem”. Belas palavras, mas, como em todo exercício de retórica, no fundo não refletem a realidade, são apenas um adereço que busca seduzir, convencer sem provar.
 
Na verdade, a cada aula redescobrimos que a literatura é “o dispositivo mais importante da civilização para aprender o que deve ser afirmado e o que deve ser negado”, como disse John Gardner, pois não há literatura desvinculada do real, apartada do contexto das nossas escolhas pessoais, da nossa vida. Ou, nas claríssimas palavras de Matthew Arnold: “A vida diária de um homem, em sua solidez e valor, depende de se ele lê nesse dia; e ainda muito mais do que ele lê durante esse dia”.

abril 09, 2013

Otimismo insano e desintegração da ideia de autoridade

Trecho de uma carta do historiador Jacob Burckhardt a seu amigo, Friedrich von Preen:

“[...] O grande dano teve início no século passado, principalmente através de Rousseau, com sua doutrina da bondade da natureza humana. Com base nisso, os plebeus e as pessoas educadas destilaram a doutrina da idade do ouro que viria infalivelmente, desde que as pessoas fossem deixadas por sua conta. O resultado, como qualquer criança sabe, foi a completa desintegração da ideia de autoridade da cabeça dos mortais, e é claro que, em consequência, periodicamente somos vítimas do poder absoluto. Enquanto isso, a ideia da bondade natural do homem transformou-se, entre o estrato inteligente da Europa, na ideia de progresso, isto é, fazer dinheiro e desfrutar de confortos modernos sem perturbação, com a filantropia para acalmar a consciência. [...]

A única salvação concebível seria que esse insano otimismo, em menor ou maior grau, desaparecesse do cérebro das pessoas. Mas, então, nosso atual cristianismo não está à altura da incumbência; ele optou por isso e acabou se misturando ao otimismo nos últimos duzentos anos. Uma mudança terá de vir, mas só Deus sabe à custa de que sofrimentos. Nesse meio tempo você está construindo escolas – pelo menos você pode assumir essa responsabilidade perante Deus; enquanto eu instruo meus alunos e meu público. Não faço grande segredo de minha filosofia a meus alunos; os mais inteligentes me entendem, e, ao mesmo tempo que faço tudo o que posso para honrar a verdadeira felicidade que o estudo e o conhecimento oferecem – por menos que possam ser –, sou capaz de dar a cada um algum grau de consolo.”
 
(2 de Julho de 1871)

abril 08, 2013

Ideias que obscurecem o que somos e sentimos

De um ensaio de T. S. Eliot sobre William Blake:

“Os Songs of innocence and of experience, assim como os poemas do manuscrito Rossetti, são poemas que revelam um profundo interesse pelas emoções humanas e um profundo conhecimento destas. As emoções são expostas sob forma extremamente simplificada e abstrata. Essa forma é uma ilustração da eterna luta da arte contra a educação, do artista literário contra a contínua decomposição da língua.

É importante que o artista deva ser altamente educado em sua própria arte; mas sua educação é aquela que atrapalha mais do que ajuda, pois ele a recebe através do processo comum da sociedade em que se resume a educação do homem comum. É que esse processo consiste amplamente na aquisição de ideias impessoais que obscurecem o que de fato somos e sentimos, o que realmente desejamos e o que na verdade instiga nosso interesse. Não se trata, é claro, da efetiva informação adquirida, mas do conformismo que o acúmulo de conhecimentos será capaz de impor, o que é nocivo. Tennyson nos dá o claríssimo exemplo de um poeta já totalmente incrustado na opinião do público, já completamente incorporado ao seu meio. Blake, por outro lado, sabia o que lhe interessava e, por conseguinte, apresenta apenas o essencial, apenas, na verdade, o que pode ser apresentado, e dispensa explicações. E porque não se perturbou, ou não se apavorou, ou não se ocupou de nada que não fossem concisas afirmações, pôde entender. Ele estava nu, e viu o homem nu, do centro do seu próprio cristal. Para ele não havia nenhuma razão pela qual Swedenborg fosse mais absurdo do que Locke. Ele aceitou Swedenborg, como eventualmente o rejeitou, por razões de estrito foro íntimo. Abordou tudo com a mente alheia às opiniões então vigentes. Não havia nele nada que sugerisse a pessoa superior. E isso o tornou aterrorizante.”
 
(Tradução de Ivan Junqueira)

abril 06, 2013

Como nasceu a literatura?

Vladimir Nabokov, com seu incomparável senso de humor, nos dá a resposta:

“A literatura não nasceu quando um rapaz a gritar ‘Lobo! Lobo!’ saiu a correr do vale de Neanderthal com um grande lobo na sua cola: a literatura nasceu quando um rapaz apareceu a gritar ‘Lobo! Lobo!’ e não havia lobo nenhum a persegui-lo. O fato de o pobre diabo, porque mentiu demasiadas vezes, ter acabado por ser comido por uma fera verdadeira é perfeitamente acidental. Mas eis o que é importante. Entre o lobo no meio do mato e o lobo no conto há um difuso mediador. Esse mediador, esse prisma, é a arte da literatura.
 
[...] A magia da arte estava na sombra do lobo que ele deliberadamente inventou, no seu sonho do lobo; depois a história dos seus truques fez uma boa história. Quando finalmente pereceu, a história dele adquiriu as tonalidades de uma boa lição ao redor da fogueira do acampamento. Mas foi ele o pequeno mago. Foi ele o inventor.”

abril 04, 2013

Qual Nelson Rodrigues?

Escrevi, há alguns meses, um breve ensaio sobre Nelson Rodrigues para a Revista Vila Nova. O texto acaba de ser publicado, na íntegra e no formato original, no Mídia sem Máscara.

abril 02, 2013

Carlos de Laet, o “não eterno”


Esquecido ou menosprezado, Carlos de Laet teve coragem de erguer a voz contra o golpe republicano, em 1889, e contra os governos ditatoriais que se seguiram. Apesar da verbosidade muitas vezes estafante, possui ironia singular, divertidíssima, de rara inteligência, além de ser um crítico feroz dos modernistas. É sobre ele que escrevo, este mês, no jornal Rascunho.