julho 25, 2007


Encontros no limbo


'[...] Da iungere dextram,
da, genitor, teque amplexu ne subtrahe nostro.'
Sic memorans, largo fletu simul ora rigabat.
Ter conatus ibi collo dare brachia circum,
ter frustra comprensa manus effugit imago,
[par levibus ventis volucrique simillima somno.]

'[...] Permite, ó pai, permite que eu aperte tua mão direita,
E não te esquives do meu abraço.'
Enquanto assim falava, regava o rosto com copiosas lágrimas.
Três vezes tentou ali cingir o pescoço (do pai) com os braços,
três vezes a imagem em vão agarrada fugiu-lhe das mãos,
[igual aos leves ventos e mui semelhante ao sono volúvel.]

Eneida, Livro VI – Virgílio (tradução de Herbert Caro)


Há mais de vinte anos, quando meu pai, depois de prolongada doença e várias cirurgias, preparava-se para uma nova operação, comecei a ter sonhos nos quais ele era a figura central.

O primeiro deles, ocorrido horas antes daquela que seria sua última intervenção cirúrgica, nasceu impregnado por pressentimentos. Encontrei meu pai em um lugar indefinido e, logo de início, me surpreendi com sua nudez. – O que o senhor está fazendo? – perguntei. E ele me respondeu, usando seu meio sorriso, que lhe retorcia delicadamente o canto direito da boca, concedendo-lhe às vezes um ar infantil, às vezes irônico: – Eu? Estou indo embora – e simplesmente me deu as costas, caminhando em direção ao nada. Permaneci atônito durante alguns segundos, mas consegui exclamar: – Mas e eu?! – Ao que ele respondeu, apenas virando um pouco o rosto: – Você? Depois a gente se encontra... – e logo a seguir acordei.

A operação estava marcada para aquela manhã e ele permanecia internado em São Paulo. Eu ainda morava em Jundiaí, com minha avó paterna, e, assim que acordei, fiz um telefonema para o hospital, sendo informado de que tudo corria bem. Horas depois, contudo, terminada a cirurgia, ele sofreu uma parada cardíaca e entrou em coma.

Seguiram-se quinze dias de visitas à UTI, com todo o desgaste emocional a que essas situações nos submetem. Quinze dias de inútil sofrimento para a família, enganada pelas falsas esperanças dos médicos, pois semanas mais tarde, um cirurgião nosso amigo, ao saber das reações mínimas que meu pai apresentava durante o coma, explicou-me claramente as diferenças entre os tipos de reflexos, mostrando-me que o quadro era, desde o primeiro momento, irreversível.

Uma semana após o enterro, quando, pouco a pouco, minha família e eu começávamos a superar a dor não só da morte, mas dos longos meses acompanhando a derrocada daquele obstinado hedonista, voltei a sonhar com ele. E agora os sonhos apresentavam estranhas características.

Não eram, digamos, sonhos clássicos, mas visitas, encontros quase palpáveis. Tenho a impressão de que ele chegava nas primeiras horas da manhã, mas não podia vê-lo. Sabia que estava lá, oculto numa espécie de limbo, separado de mim por uma zona escura, pois era possível ouvir as aspirações e expirações curtas, rápidas, ofegantes. E o mais terrível: seu cheiro – o mesmo odor azedo que, tarde após tarde, sentira ao me debruçar sobre sua cama, na UTI – recendia de maneira tão penetrante que eu começava a chorar, perdido entre o sonho e a vigília, entre a presença onírica e o contato de meu corpo com os lençóis ou o travesseiro. Ouvindo meus próprios soluços, lutando para acordar, eu me libertava por fim, mas subjugado pela angústia.

Sete dias seguidos acordei desse modo, com aquele cheiro tão presente que parecia ser possível estender a mão, transpor a sombra e tocar meu pai. Uma semana inteira ouvindo-o agonizar.

Foi no oitavo dia que tudo se resolveu, mas de uma forma ainda mais perturbadora. Preso àqueles momentos imprecisos, entre o sono e o despertar, senti que ele se aproximava novamente, pois o odor ganhava força a cada segundo. E quando previa a audição dos estertores, ouvi sua voz, límpida, apesar de cansada. Daquele espaço imaterial, ele disse pausadamente, semelhando uma antiga gravação: – Avise a todos que agora estou bem. Agora pude descansar – e o sonho nunca mais se repetiu.

Já escutei várias explicações para esses encontros – dos psicanalistas freudianos aos espiritualistas de diferentes facções –, mas nenhuma delas me importa. Eles representam minha cota da herança paterna, completada por alguns livros e certas lições de ética. Nossa separação não poderia ser diferente, precisava estar marcada por esse rito de passagem, sucessivas revivescências daquele fim sempre inaceitável, até que descansássemos: ele, tornando-se uma lembrança; eu, lentamente aprendendo a viver sem suas certezas.

Um ou dois meses mais tarde, voltei a sonhar com meu pai. Em algum ponto no teto de um túnel revestido por azulejos brancos, na posição de um observador privilegiado, eu o vi passar lá embaixo, caminhando solitário, ereto, nu, vagarosamente, mas sorrindo.

(Agradeço ao Marco Polli, que, numa conversa informal, via e-mail, me fez recordar desses sonhos.)

julho 18, 2007


A busca


Dentre os sonhos recorrentes que tenho, principalmente um me coloca em estado de perplexidade logo no primeiro momento da vigília, quando retorno ao inevitável cotidiano, onde nenhuma das possibilidades do mundo onírico se realiza.

Nesse sonho, estou na entrada do porão da casa de minha bisavó paterna. A cena começa exatamente ali, repetindo os gestos que cansei de fazer durante a infância: retiro a chave dependurada no batente, coloco-a na fechadura e, com um único giro, a porta se abre. Imediatamente, sinto o cheiro adocicado de BHC, um odor úmido, e o ar levemente pegajoso que vem do ambiente escuro.

O segundo movimento é localizar, na parede à esquerda, entre a estante e o batente, o interruptor de luz. E a seguir, entrar. A lâmpada, fraca, mal ilumina as porcelanas e os vidros nas prateleiras, além dos caixotes empilhados e recobertos de pó. No entanto, o que procuro não está ali, mas no cômodo ao lado, que ainda permanece escuro.

Não sinto calor ou frio, apenas uma expectativa controlável, pois estou certo de que ele se esconde no quarto vizinho, sob a escuridão. Então penetro naquele lugar ainda mais úmido, e é difícil descobrir o interruptor, que não passa de uma delicada corrente presa à lâmpada, no centro do cômodo. A mão cega apalpa a escuridão. Por um segundo, a ansiedade transforma-se numa espécie de medo, talvez o receio de que minha busca – e o encontro certo – não se concretizem, somente pelo fato de eu não conseguir acender a luz. Mas encontro a correntinha e puxo-a – e imediatamente vejo os caixotes de livros no chão.

Sei exatamente o que venho buscar: o livro acima de todos os livros: um manual completo sobre a existência e, ao mesmo tempo, um guia para a difícil, emaranhada tarefa de viver. Tenho certeza de que está ali, aguardando-me. Não uma obra mágica, mas apenas um conjunto de páginas recoberto por duas capas envelhecidas, no qual se esconde a síntese da experiência humana.

Vasculho os caixotes lentamente, retirando os livros, um a um. Não sei o título da obra e, muito menos, seu autor. Estou certo, apenas, de que está ali. O tempo da busca dura a eternidade do sonho. Não há pressa. Sinto-me seguro naquele porão, repetindo os gestos que fiz centenas de vezes. Sei que os adultos estão na parte de cima da casa, principalmente minha bisavó, vestida no seu luto perpétuo, desde a morte prematura de meu tio-avô, mas sem nunca se abandonar à tristeza, com seu porte altivo, a redinha prendendo os cabelos, os olhinhos atentos a tudo e a língua ferina, quando se trata de falar dos políticos. Assim, trata-se apenas de não desistir. Encontrarei o livro-chave, o livro-totalidade, graças a essa busca estranha, durante a qual experimento, antecipadamente, o prazer de encontrar o que procuro, tamanha é a minha certeza.

E então, do fundo de um caixote de madeira, sob a pilha de livros inúteis, retiro aquele que me revelará o segredo de viver. Nem pesado nem leve, segurá-lo guarda o mesmo prazer que sinto ao encontrar, em um sebo, a obra há vários anos desejada. O papel marmorizado da capa é repleto de círculos pequenos cor de vinho, dispostos aleatoriamente sobre um fundo amarronzado. O cheiro de BHC torna-se ainda mais intenso quando aproximo o volume dos olhos, estou pronto a abri-lo, toco a ponta da capa com os dedos e começo o gesto de erguê-la – mas acordo.

Despertar, ver-me em meu quarto, ser arrojado para fora do sonho, sem dúvida é frustrante. Mas não há qualquer angústia. Naquele primeiro momento da vigília – ainda atônito por ter percorrido novamente as etapas conhecidas do sonho e, mais uma vez, acordado antes de abrir o volume –, tenho certeza de que outra oportunidade surgirá, de que, de alguma maneira, aquele menino permanece preso à sua vida onírica, pronto a repetir os mesmos gestos e encontrar outra vez o livro. E, quem sabe, algum dia permitir que eu leia ao menos o título, talvez a primeira linha.

julho 06, 2007


Festa para o romance policial


Enquanto, no Brasil, acontece a Flip, na Espanha, na cidade de Gijón, realiza-se a XX Semana Negra, dedicada à celebração do romance policial. Só hoje descobri a existência desse evento, graças ao blog La cavalera bajo la piel. São vinte anos comemorando a existência do gênero literário que, para alguns, deve ser considerado como menor. De minha parte, um leitor que se inclina respeitosamente diante de Georges Simenon (foto), gostaria muito de estar lá, participando de todas as atividades. Mas tentarei acompanhar o dia-a-dia da festa, lendo o boletim diário, A Quemarropa.

julho 04, 2007


"Ningún escritor es bueno hasta que no aprende a corregir"


Acabo de ler o último número da Revista Narrativas, cuja epígrafe já é um convite à leitura: "Ningún escritor es bueno hasta que no aprende a corregir", de Enrique Vila-Matas.

A publicação, em pdf, oferece resenhas, contos, entrevistas, ensaios e informações diversas sobre o mercado editorial de língua hispânica. E procura "no cerrar espacio a nadie, ni a los nombres consagrados ni a los todavía desconocidos".

Gostei, principalmente, do ensaio "Onetti refunda Santa María: cuando ya no importe", escrito por Daniel Orizaga, no qual o autor apresenta as características voláteis da cidade imaginária de Onetti, mostrando-nos que "Santa María, como universo diegético es autoanulante, esto es, metaficcionalmente pone en duda su validez como espacio de enunciación mimética. Como hemos dejado entrever, esta posibilidad ya está desde su fundación narrativa, aunque se acentúa progresivamente".

Dentre os contos, chamou-me a atenção "Nunca aprendí a escribir", da jornalista mexicana Graciela Barrera. A história da menina que se apaixona pelas letras e decide jamais aprender a escrever, mas tornar-se apenas uma leitora, possui um final algo melancólico, mas que considero perfeito, principalmente pela idéia de unir, de maneira irremediável, o ato de ler e o corpo da narradora.

Dentre as resenhas, chamo a atenção para "Demonios familiares", na qual José María Ariño Colás analisa o romance La fortuna de Matilda Turpin (Editorial Planeta), de Álvaro Pombo.

Há muito mais em Narrativas, contudo. Vale uma leitura atenta.

julho 02, 2007


Delicada Ivanira


Ela entrou na classe usando roupas sóbrias, quase impessoais, de cores suaves, sondando cada um de nós com seus olhos castanhos, sempre iluminados. Era pequena, frágil, quebradiça, as unhas bem-feitas; e quando se apresentou, ouvimos a voz branda, leve, cuja melodia compôs, somando-se ao sorriso e às outras características, a figura daquela que, com o passar dos meses, tornou-se para mim a personificação da literatura – e com tal exagero, com tal permanência, que até hoje, passados mais de trinta anos, não vivo um único dia sem ler, escrever ou pensar, e ao mesmo tempo recordar-me dela, seqüestrando-a daquela zona cinzenta, reservada pela memória a tudo que merece ser esquecido, ou seja, a maioria dos fatos e das pessoas. Conservo-a ao meu lado, lendo comigo, falando-me sobre os escritores que me ensinou a amar, ou simplesmente acompanhando-me como uma sombra inspiradora, reconfortante.

Em meu caderno de capa verde, uma brochura nova que resistia a ser aberta, anotei a primeira aula, quando ela nos explicou a diferença entre conotação e denotação. E entre esses dois eixos, no espaço de infinitas possibilidades que se abre, cada vez maior, ela fez surgir, afastando de maneira crescente os vetores, a mais amada das ciências, a mais prazerosa das artes, e também a mais aflitiva: a literatura. Aula após aula, sem que suspeitássemos, e apesar do seu jeito terno, ela obrigava Zeus a possuir novamente Mnemósine, mas para gerar apenas Calíope, Euterpe, Melpômene e Tália. E o resultado foi esta intoxicação para a qual recuso todas as possíveis curas, foi esta biblioteca que não pára de crescer, estes livros que se amontoam pelo apartamento, esta pilha que se avoluma, vigiando-me, sobre o criado-mudo, esta compulsão que me faz saltar de um universo a outro, mas sempre em busca de mim mesmo, encontrando-me retalhado pelos mais diferentes livros, perguntando-me, atônito, como uma parte de mim pode estar entre os judeus trágicos de Bernard Malamud, outra no torpor aconchegante que Conceição destila pouco antes da Missa do Galo, outra no soldado morto – um “higrômetro singular” – e mumificado sob uma quixabeira, nas cercanias de Canudos, e também com Diego de Zama, exilado num país latino-americano incerto, com Lorde Jim, lutando silenciosa e desesperadamente para encontrar a coragem, e na fera escondida na selva de Henry James, e na pergunta encravada na imodéstia bestial de Damázio, dos Siqueiras: “fasmisgerado?... faz-me-gerado?... falmisgerado?... familhas-gerado?”.

A cada nova página, descubro-me, graças a ela, para um encontro com parte do meu íntimo: fracionado, decepado, cindido, e ainda assim lúcido, vasculhando os livros infinitos e lembrando-me dessa mulher doce, algo enigmática, caminhando silente e pensativa sob as arcadas do Colégio Romeiro Pereira, exatamente como imagino que Shikibu Murasaki deveria caminhar, envolta nos seus múltiplos quimonos, na corte do Japão do século XI, sobraçando os originais do “Genji Monogatari”.

Como a vida pôde me separar de Ivanira Dadalt? De alguém cuja influência se encontra, sob diferentes aspectos, acima até mesmo do que minha própria família me ensinou? Mas talvez seja exatamente esse o papel dos verdadeiros mestres. Eles inoculam em nós idéias de beleza, de liberdade, de poesia, e depois se afastam, pois sabem que esses princípios vingarão apenas se o terreno for fértil, conscientes de que, em seu limitado poder, fizeram o melhor.

Imagino a delicada Ivanira sentada entre seus livros, talvez folheando um daqueles volumezinhos de capa cinza, da Coleção Nossos Clássicos, que ela algumas vezes me emprestou. Talvez releia um romance de Camilo ou, quem sabe, um poema de Cesário Verde. Ela fecha o livro, ergue os olhos, levanta-se, aproxima-se da janela e conclui, sem tristeza, que nossa existência é semelhante ao soneto de Camões: passamos a vida na esperança de um só dia – servindo Labão anos a fio, desejando ardentemente Raquel, mas recebendo apenas Lia.