julho 30, 2012

Números ruins numa pesquisa do faz de conta


O lead da matéria sobre a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil chama para o que é menos importante. Trata-se de curiosa aula de antijornalismo. A questão dramática, o fato realmente central, começa a aparecer só no quarto parágrafo, quando ficamos sabendo que “apenas 50% dos brasileiros podem ser considerados leitores”.

Quando li o trecho, pensei: “Melhoramos muito!”. De fato, 50% até poderia ser um número alvissareiro... Mas logo me deparei com a triste verdade: a metodologia escolhida pelos pesquisadores é uma ferramenta de criar ficção, pois define como “leitor” pessoas que “leram pelo menos um livro nos três meses precedentes ao questionário da pesquisa”.

Ora, quem leu “pelo menos um livro” três meses antes de responder ao tal questionário não é e nunca foi leitor. Esse pobre infeliz pode receber qualquer outro nome, mas o fato de ter aberto um livro – à força ou por acaso – não passa de um acidente.  

Contudo, estamos no Brasil – e aqui, mesmo partindo de critérios duvidosos, uma pesquisa sobre leitura revela números desalentadores. Saliento dois:

1) No último quatriênio, o número de livros lidos por ano (por pessoa) caiu de 4,7 para 4;

2) 75% da população não frequenta bibliotecas.

Fico pensando como seriam os resultados se a pesquisa tivesse trabalhado com critérios que de fato buscassem a verdade... É um exercício que, desgraçadamente, não exige muita imaginação.

julho 28, 2012

Rémi Brague e os “rasgos monstruosos do laicismo”

O filósofo Rémi Brague, um dos ganhadores do Prêmio Ratzinger deste ano, fala, na entrevista abaixo, em espanhol, sobre a “tentação permanente que há no laicismo, a de se transformar numa religião secular e reivindicar uma outra forma de sagrado – sagrado que terá, então, rasgos monstruosos”. E completa: “Pensemos, por exemplo, nas religiões seculares do século XX; o nazismo, por exemplo, para o qual o sagrado não era Deus, mas a raça”. Brague também coloca os pingos nos is no que se refere à herança muçulmana para o Ocidente, citando, com ironia, o “mítico Al-Andalus” e a falsa tolerância religiosa ali existente. Além de criticar o “suicídio cultural da Europa” nos dias de hoje, Brague responde a Edward W. Said, refutando sua tese sobre a questão do chamado “orientalismo”. No fecho da entrevista, magnífico, o filósofo mostra como as raízes da democracia ocidental podem ser encontradas não na Grécia, mas, sim, na Idade Média.

julho 25, 2012

Infinito


Desta janela, emoldurada por lombadas coloridas, meu olhar não alcança a nitidez do horizonte, linha líquida onde as cores se assemelham e sublima-se o relevo.

Não sei se amanhece. Mas pouco importa. Volto-me para o salão imenso – e a luz revela, além de fios brancos, migalhas de caspa sobre meus ombros.

Meus passos ecoam sobre o piso de mosaico e reverberam lá no alto, contra abóbadas e arcos paralelos. Só há livros. Livros e escadas de ferro que conduzem de um mezanino a outro. Livros. E mesas. E cadeiras onde se empilham livros – in-fólios, miniaturas, encadernações de mestres esquecidos.

Não sinto calor ou frio. De um salão a outro, em linha reta, a arquitetura se repete, janelas altas, luz refletindo sobre as lombadas, escadas ligando um patamar a outro, uma sequência de estantes a outra.

Janela após janela, brilham as lombadas desiguais. Salão após salão, as abóbadas aprisionam o olhar.

Um mordomo sonâmbulo introduziu-me aqui e pediu que eu aguardasse. Agora, até mesmo a direção da entrada é uma dúvida. Olho para trás e vejo o corredor que se afunila, cortado por centenas de fachos de luz. Viro-me, e a mesma imagem se desenha, transformando a arquitetura na dimensão da impossibilidade.

Onde estão meus anfitriões? Por que o mordomo não traz um chá, uma palavra? Aguardo o toque de uma sineta, de uma campainha – ou da porta que, ao abrir-se, fará ranger as dobradiças.

Retiro os livros de uma poltrona e sento-me. Abro ao acaso o volume que mais se encontra à mão. A luz imutável acorda as páginas amarelecidas, cujo folhear desprende perfume e som apaziguador.

Página após página, cresce a certeza de que o mordomo não voltará. Ninguém poderá encerrar esta visita. Nenhum som, nenhuma brisa.


Flocos de caspa caem, lentamente, enquanto o olhar percorre as linhas. Minhas costas arqueiam. A biblioteca espera.

julho 20, 2012

Nunca vi nada mais profundo

“Fui encerrar, na Escola de Comunicações e Artes da USP, um curso de pós-graduação sobre o meu teatro e depois li os trabalhos dos alunos. Fiquei besta. Nunca vi nada mais profundo, de não se entender uma frase.” 
Nelson Rodrigues

julho 11, 2012

Olavo de Carvalho e a busca da sabedoria


Por motivos de espaço, o texto que escrevi para a orelha do mais recente livro de Olavo de Carvalho – A filosofia e seu inverso – teve de ser cortado. A seguir, publico a apresentação original, não só maior, mas, do ponto de vista estilístico e de exposição do pensamento do meu caro professor, mais completa:

Contra a Weltanschauung pós-moderna

O que é pensar? Há diferença entre adquirir cultura filosófica e filosofar? O que separa a filosofia do ato, às vezes necessário, de discutir com o antifilósofo? O que une Kant às decisões da ONU em favor de um governo global? Por que o culto da ciência “começa na ignorância do que seja a razão e culmina no apelo explícito à autoridade do irracional”?

Essas e outras questões são respondidas por Olavo de Carvalho em A filosofia e seu inverso, que reúne alguns de seus artigos e ensaios produzidos nos últimos anos.

Mas devemos ler Olavo de Carvalho? Há duas respostas possíveis: a dos seus detratores, melíflua ou estrondosa, mas sempre negativa. E a dos que se recusam a aceitar o doutrinamento da Weltanschauung pós-moderna, que, amealhando adeptos entre liberais e esquerdistas, baseia-se num tripé corruptor: relativismo, hedonismo e ateísmo.

Quem responde de maneira afirmativa à última pergunta sabe que Olavo de Carvalho não usa meias palavras. E o faz não apenas pelo deleite de tratar o idioma com rigor, mas principalmente por saber que, para uma efetiva resistência cultural, quem deseja se manter lúcido deve possuir um corpo teórico consistente, capaz de apresentar respostas persuasivas ao mundo de falso desvanecimento do homem contemporâneo e de advogar em defesa da verdade, o valor mais vilipendiado nos dias que correm.

Frente aos ideólogos de plantão, cujo objetivo é nos convencer de que princípios, crenças, convicções e valores são obstáculos à liberdade, Olavo de Carvalho denuncia a ditadura do relativismo – a arma que restou aos marxistas-leninistas diante do fracasso de seu projeto original: a ditadura do proletariado. E o faz com seu estilo tão característico, que lhe permite, como ele mesmo diz, “transitar livremente entre o discurso acadêmico e a voz do coração, sem desprezar o primeiro mas submetendo-o às exigências da segunda”, movido por seu “objetivo constante, único, quase obsessivo: a busca do Supremo Bem”.

Nada é pequeno neste livro. A resposta a certos polemistas transforma-se nos degraus que Olavo de Carvalho transpõe para ensinar arquitetura gótica ou recolocar a lógica como elemento acessório da produção filosófica. Desmonta o método de Martial Guéroult, presta tributo à inesquecível figura do jesuíta Stanislavs Ladusãns – de quem tive a honra de ser aluno na década de 1980 –, rebate Alan Badiou, Peter Singer, Richard Dawkins e outros pseudoluminares. E o faz seguindo o método que propõe a seus alunos: espantar-se frente à realidade da experiência.


Mas não só. Olavo de Carvalho leva-nos mais longe na busca pela sabedoria, salientando que não esquecer nossa condição mortal é o ponto de partida da investigação metafísica. Aqui, ele ultrapassa a filosofia – e assemelha-se aos mestres da espiritualidade monástica, que recomendam a reflexão sobre a própria morte para curar uma das mais nocivas doenças da alma: a acídia.

julho 09, 2012

“O problema é que não se faz nada em relação à educação no Brasil”


Ótima, lúcida entrevista – hoje, no Estadão – com a editora e agente literária Luciana Villas-Boas. Com ampla experiência no mercado brasileiro, responsável pelo lançamento de alguns dos melhores nomes da nossa literatura contemporânea, Luciana enfrenta bem todas as perguntas.

Coloco abaixo um dos trechos de que mais gostei, no qual ela aponta o servilismo de parcela do mercado editorial à visão errônea, realmente distorcida dos departamentos de Letras e da crítica literária:  

Livro é mesmo caro aqui?

Não acho que preço seja fundamental, é uma outra problemática. O profissional liberal que tem dinheiro para comprar um best-seller internacional não compra de um autor brasileiro. É um preconceito que talvez até se justifique.

Por quê?

Porque os editores, talvez influenciados pelos departamentos de Letras das universidades, passaram a publicar, principalmente, autores brasileiros extremamente “difíceis”. Ao mesmo tempo, pegue o Philip Roth, Complô contra a América. Eu achei bom, mas, se fosse publicado no Brasil, não dariam bola. Porque não se trata de um livro de grandes experimentações linguísticas. Aqui, a tendência da crítica seria não levá-lo muito em conta.

julho 06, 2012

Quando paramos de sonhar com a eternidade


Do legendário sir Francis Drake, herói para os ingleses e carrasco para os espanhóis, este belo poema, pujante, revelador da alma desse incrível corsário, figura central do Período Elisabetano:

Disturb us, Lord, when
We are too well pleased with ourselves,
When our dreams have come true
Because we have dreamed too little,
When we arrived safely
Because we sailed too close to the shore.

Disturb us, Lord, when
With the abundance of things we possess
We have lost our thirst
For the waters of life;
Having fallen in love with life,
We have ceased to dream of eternity
And in our efforts to build a new earth,
We have allowed our vision
Of the new Heaven to dim.

Disturb us, Lord, to dare more boldly,
To venture on wilder seas
Where storms will show your mastery;
Where losing sight of land,
We shall find the stars.

We ask You to push back
The horizons of our hopes;
And to push into the future
In strength, courage, hope, and love.
This we ask in the name of our Captain,
Who is Jesus Christ.

julho 05, 2012

“A todo transe!...”, de Emanuel Guimarães – esquecido e desprezado


Este mês, no jornal Rascunho, analiso o romance A todo transe!..., de Emanuel Guimarães. A seguir, coloco os três primeiros parágrafos do meu ensaio:

A todo transe!… é um tipo peculiar de roman à clef: à parte o fato de pertencer a certo elogiável grupo — no qual encontramos, por exemplo, Os Buddenbrooks ou O sol também se levanta —, a obra de Emanuel Guimarães, publicada em 1902, permanece atual não apenas graças às qualidades literárias, mas porque sua “chave”, passados mais de cem anos, pode ser encontrada em Brasília ou nas assembleias estaduais, como se os políticos encobertos pelas personagens ainda estivessem vivos, cadáveres embalsamados por meio de alguma técnica miraculosa, capaz de mantê-los respirando e, principalmente, cometendo os mesmos delitos.

De fato, a semelhança entre o romance e as piores páginas do noticiário político chega a ser assustadora, mas não devemos nos prender a tal característica, pois ela apequena as virtudes desse livro injustamente esquecido, que nos ensina como a ficção pode descrever não só uma época, mas, partindo de fatos mesquinhos, retratar a índole duradoura da classe dirigente e a feliz alienação do povo.

Não por outro motivo, aliás, A todo transe!… foi expulso das nossas histórias literárias, escorraçado das antologias e banido das livrarias: o brasileiro é condicionado, sempre e cada vez mais, a enganar-se quanto a seus defeitos e qualidades, travestindo-os por meio do sentimentalismo, da farra, da autocomiseração ou do comportamento ufanista. O que é o Carnaval, senão a exasperação da tristeza e da derrota? E a crescente hegemonia do marxismo — inclusive, é claro, na crítica literária — só agravou o problema: para a esquerda, o brasileiro, olhando-se ao espelho, deve ver não a realidade, mas a utopia — a ideia benévola que faz de si mesmo.

julho 03, 2012

Machado de Assis – a pior das respostas


Machado de Assis é o continuador da tradição iniciada, na literatura brasileira, por Manuel Antônio de Almeida. Os dois escritores tornaram-se amigos depois que o autor de Memórias de um sargento de milícias passou a proteger Machado na Imprensa Nacional, onde este, aprendiz de tipógrafo, subalterno de Almeida, era considerado um preguiçoso. Trata-se de um dos inúmeros casos em que o aluno se mostra maior que o mestre, é verdade. Contudo, o influenciado permanece devedor de quem lhe indicou o caminho a seguir, ainda que, no caso do autor de Dom Casmurro, este tenha preferido, por austeridade ou imodéstia, não comentar sobre a dívida – que, portanto, continua ativa, ou melhor, ativíssima, como diria o agregado José Dias, um dos melhores personagens de Dom Casmurro.

A geração espontânea, teoria desprezada em ciência, merece igual tratamento na literatura. Gênios não nascem do nada. No caso de Machado de Assis, a leitura meticulosa de Memórias de um sargento de milícias, quando ele revisa o livro para a edição definitiva de 1862/1863, representou a culminância dos ensinamentos que Manuel Antônio de Almeida lhe transmitira desde os dezessete anos. Aquele que se tornaria o Bruxo do Cosme Velho teve, sem dúvida, várias outras influências, mas seu salto sobre o abismo da retórica nacional recebeu impulso significativo desse amigo e protetor. Dele, Machado aprendeu que a grandiloquência e o sentimentalismo exacerbado dos românticos eram superfluidades – e dele herdou, como já afirmei neste Rascunho (em agosto de 2010), a sutileza da frase, a habilidade para construir narradores irônicos e o hábito – transformado em verdadeira mania – de se dirigir ao leitor como se este fosse seu cúmplice.

Há quem não goste de Machado – e eu próprio sou um admirador comedido dos seus romances –, mas é inegável que, a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), sua obra enfrentou com bravura a recepção tortuosa e arrevesada – leiam-se, por exemplo, as análises de Sílvio Romero –, pisoteou a maioria dos ficcionistas, compreendendo seus antecedentes, contemporâneos e pósteros, e conseguiu reafirmar a lição de Manuel Antônio de Almeida, agora de maneira irretorquível: literatura e eloquência são forças antagônicas.

Miragens

Dom Casmurro, publicado em 1899, representa a síntese das qualidades – e também dos defeitos – machadianos. Narrada pelo protagonista, Bento Santiago, cuja alcunha dá nome ao romance, a história é um curioso flashback, que rememora certo possível adultério. Na verdade, “casmurro” é um eufemismo no que se refere a Bento – seus detratores foram magnânimos ou polidos. Já no primeiro capítulo temos uma amostra da sua arrogância, sempre mascarada pela ironia: oferece a um jovem poetastro – que, por não receber a atenção do narrador, dera-lhe o apelido de “casmurro” – o livro iniciado, sugerindo-lhe considerar a obra como sua, pois o título lhe pertencia, e concluindo: “Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto” – uma ampliação da ironia, agora dirigida a todos os escritores medíocres, e por meio da qual o narrador afirma, de maneira oblíqua, a superioridade da sua própria escrita.

Bento é um narrador peculiar, consciente de que “a verossimilhança [...] é muita vez toda a verdade”, mas nebuloso a ponto de concluir que sua vida “se casa bem à definição”. Esta poderia ser a tão ansiada chave para Dom Casmurro, solução, no entanto, somente cabível se Bento não se desdissesse o tempo todo ou se descrevesse os demais personagens de maneira plana, o que, no caso de Machado, bem sabemos, é impossível.

O leitor maduro tem consciência de que a vida é uma luta entre a aparência de verdade e o realmente verdadeiro, luta surda, em que o real é vítima de constantes refrações – maneira sutil de dizer que o homem se acostumou a defraudar a verdade. Assim, o romance, sob o comando de Bento, espelha parcialmente a vida: seu tema central não é o adultério, mas o uso obstinado de subterfúgios, de instrumentos que, a cada capítulo, enganem o leitor, levando-o por um labirinto cujo final é a decepção, pois todas as possíveis certezas foram corrompidas.

Não há inocência em Bento. E quanto mais o romance avança, mais temos certeza – a única – de que ele é sardônico. Jamais saberemos se Capitu, sua mulher, realmente o traiu, mas ele é claro ao afirmar suas intenções: “Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda o não disse, fica. Se disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição”. A primeira parte da citação é discurso vazio, rodeio, no qual, aliás, Bento é especialista; mas a última frase não deixa dúvidas: ele tem um plano, quer levar seus leitores ingênuos à confusão, a conclusões erradas, ou seja, a simplesmente acreditar no que diz.

Mas não mereceria nosso crédito o narrador que revela o desejo de, num arroubo, ver a própria mãe morta ou assassinar o filho inocente? Ou que afirma: “Eu confessarei tudo o que importar à minha história”? Esse é o problema de Bento: ele confessará apenas o que importar não à verdade, mas à sua história. E no mesmo capítulo, ironicamente denominado “Adiemos a virtude”, dá um exemplo esclarecedor: “[...] Agora que contei um pecado, diria com muito gosto alguma bela ação contemporânea, se me lembrasse, mas não me lembra; fica transferida a melhor oportunidade”. Que tipo de homem é esse, que não tem uma só “bela ação” para relatar? Linhas abaixo, ele nos esclarece, destrinçando sua obscura moral: na opinião de Bento, virtudes e pecados estão “aliados por matrimônio para se compensarem na vida”, e “a regra é dar-se a prática simultânea dos dois, com vantagem do portador de ambos”. Ora, se bem e mal são equivalentes, e se tal equilíbrio é um benefício, então só nos resta perguntar, do começo ao fim do romance: onde está o bem? E o mal? E que suposta igualdade de forças é essa, construída por um discurso aliciador, bem arquitetado, mas permissivo? Que ele seja um homem dividido entre o bem e o mal, até aí não há novidade – o problema é não nos oferecer nenhuma prova fidedigna de bondade ou de maldade, sua ou de outrem, mas apenas o discurso repleto de ironia.

O riso à socapa de Bento não perdoa nem mesmo o ato de escrever, de narrar. No longo capítulo “Um soneto” – longo para os padrões machadianos –, mostra-se digressivo, mas termina com uma receita, em sua opinião infalível, para compor o poema: “Tudo é dar-lhe uma ideia e encher o centro que falta”. Ou seja, escrever não passaria de mera banalização.

Mas Bento não recheia sua almofada de qualquer modo. Se ele fosse coerente, não leríamos sua história, nem se o livro trouxesse, na capa, o nome de Machado de Assis... São exatamente suas incongruências que nos atraem, principalmente quando descobrimos com que disposição devaneia. Ele próprio, depois de recordar o dia, na adolescência, em que imaginou receber a visita de Pedro II, conclui: “[...] A imaginação de Ariosto não é mais fértil que a das crianças e dos namorados, nem a visão do impossível precisa mais que de um recanto de ônibus”.

Nosso narrador está sempre a um passo de fantasiar. Minutos depois de beijar Capitu a primeira vez, volta a procurá-la, ainda excitado: “Fui ter com ela, e perguntei se a mãe havia dito alguma coisa; respondeu-me que não. A boca com que respondeu era tal que cuida haver-me provocado um gesto de aproximação”. E conclui, recordando melhor: “Certo é que Capitu recuou um pouco”. Assim, há delírios de todos os tipos: breves e longos, detalhados ou sintéticos. Certa mulher leva um tombo na rua e Bento entrevê as meias “muito lavadas” e as ligas de seda azul: é o que basta. Da manhã daquela segunda-feira até o dia seguinte só pensará nisso, seus pensamentos e sonhos confluirão para as meias, que imagina esticadas, e para as ligas, certamente justas. Ao final, sua sofreguidão é tamanha, que já não saberá ao certo o que viu, e se viu, mas a miragem se prolonga por dias.

Tal é o narrador que jura ser afligido por um “escrúpulo de exatidão”... E poucas páginas depois, ao fim do trecho no qual confessa os poderosos dotes de sua imaginação, com que preenche as lacunas deixadas pelos “livros omissos”, convida o leitor a agir da mesma forma – confissão indireta das reticências propositais de sua obra.

Naufrágio

No entanto, se Dom Casmurro fosse apenas o vaivém de um narrador que aparenta viver entre a melancolia, a alucinação e a desonestidade, não conseguiria prender nossa atenção. É preciso mais para compor um grande livro. E Machado domina os instrumentos necessários. Vejam, na descrição desta cena algo cômica, o uso perfeito da pontuação, o vocabulário preciso, o período composto de maneira a, num crescendo, não só reconstruir os gestos do Tio Cosme, mas, no fim, dar-nos a viva imagem da massa descomunal que derreia a montaria:

Era gordo e pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos. Uma das minhas recordações mais antigas era vê-lo montar todas as manhãs a besta que minha mãe lhe deu e que o levava ao escritório. O preto que a tinha ido buscar à cocheira segurava o freio, enquanto ele erguia o pé e pousava no estribo – a isto seguia-se um minuto de descanso ou reflexão. Depois, dava um impulso, o primeiro, o corpo ameaçava subir, mas não subia; segundo impulso, igual efeito. Enfim, após alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava todas as forças físicas e morais, dava o último surto da terra, e desta vez caía em cima do selim. Raramente a besta deixava de mostrar por um gesto que acabava de receber o mundo. Tio Cosme acomodava as carnes, e a besta partia a trote.

Ele também exibe perícia ao criar descrições cuja economia de recursos nos transmite a impressão palpável do personagem. Não está todo nesta frase, diante dos nossos olhos, o tenor amigo de Bento que, “quando andava, apesar de velho, parecia cortejar uma princesa de Babilônia”?  

Para revelar a pobreza da família de Capitu, ele dissemina breves informações entre os capítulos, de maneira que só o leitor atento formará um quadro completo. O relato da penúria receberá ares sarcásticos quando se trata de Pádua, pai de Capitu, mas sempre que a jovem for o eixo da narrativa, os elementos que denunciam a miséria material surgirão camuflados pelo lirismo:

Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor, não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos.

Pouco antes do primeiro beijo, depois que Bento penteia os cabelos de Capitu – “desejei penteá-los por todos os séculos dos séculos, tecer duas tranças que pudessem envolver o infinito por um número inominável de vezes” –, ele procura com que prender as pontas das tranças; e rapidamente encontra, “em cima da mesa, um triste pedaço de fita enxovalhada”, elemento que não sombreia a cena, mas a sublima como um gesto de piedade onde, se não fosse Machado de Assis, só existiria arrebatamento, paixão.
 
E o que dizer das “curiosidades de Capitu”, tema ao qual ele dedica o Capítulo XXXI? Tudo a interessa, principalmente aquelas informações que possam distanciá-la de sua realidade. A “pérola de César”, no “valor de seis milhões de sestércios”, sobre a qual José Dias fala, e que o imperador teria dado a certa mulher, “acende” os olhos da jovem. No capítulo seguinte, de maneira a reforçar, delicadamente, a ambição antes descrita, quando Bento entra na casa de sua amada, encontra-a penteando-se num “espelhinho de pataca (perdoai a barateza), comprado a um mascate italiano, moldura tosca, argolinha de latão [...]”.

Entre os raros trechos de nossa literatura que merecem ser chamados de antológicos está o Capítulo CXXIII. É o momento de fechar o caixão em que se encontra o corpo de Escobar, melhor amigo do narrador, suposto amante de Capitu e pai de Ezequiel, a criança que Bento acredita, de início, ser seu filho:

Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do marido, e o desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens choravam também, as mulheres todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...

As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã.  

Para o leitor compreender os vetores que se entrelaçam nas últimas linhas é preciso ler o livro, no qual as figuras marítimas estão presentes formando um sedimento metafórico furtivo e aliciante, a começar pelos olhos de Capitu, “olhos de ressaca”, pois “traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca”. O “nadador da manhã” é o próprio Escobar, que, não por acaso, morrera afogado. E lembrando-se de tudo com amargura – do amigo que ele supõe comborço e da esposa que acredita adúltera –, o próprio Bento se refere a si mesmo “como um marujo” a narrar “o seu naufrágio”.

Se Capitu foi, de fato, essa Eva capaz de engolfar todos na sua volubilidade ardilosa... Bem, há os que se dispõem a perder tempo com tal discussão. Mas diante da estrutura subjacente à trama, aos liames que, a cada leitura, vamos descobrindo, o enredo perde importância.     

Machadismos

Mas Machado às vezes cansa – e por esse motivo prefiro seus contos, nos quais, graças à necessidade de síntese, está impedido de fazer tantos gracejos, tantas paródias ao estilo de Laurence Sterne, outra de suas influências. Ele também abusa da ironia, dos capitulozinhos explicativos, de certo eruditismo repleto de amor pelas citações – um vezo de odor quiçá brasileiro, subdesenvolvido – e das digressões, algumas bobas, como a que abre o Capítulo CXVIII:

Tudo acaba, leitor; é um velho truísmo, a que se pode acrescentar que nem tudo o que dura dura muito tempo. Esta segunda parte não acha crentes fáceis, ao contrário, a ideia de que um castelo de vento dura mais que o mesmo vento de que é feito, dificilmente se despegará da cabeça, e é bom que seja assim, para que se não perca o costume daquelas construções quase eternas.

Esses machadismos – presentes não só em Dom Casmurro –, incluindo a falsa naturalidade com que se refere ao leitor, dão à obra, por vezes, um tom pernóstico. E é decepcionante que, no caso de Dom Casmurro, ele não tenha resistido à tentação de fazer seu protagonista assistir a Otelo, de Shakespeare, criando um paralelismo extremamente batido.   

Mas esqueçamos o Machado de Assis que aprecia perguntas de algibeira, cujo texto pode desprender, aqui e ali, um odor de naftalina e nos concentremos naquilo que ele tem de excepcional.

A interrogação

A síntese do narrador de Dom Casmurro é oferecida no Capítulo II. Bento, já idoso, relata a construção da casa onde mora, réplica minuciosa da que habitou quando jovem: “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência”. Mas confessa sua derrota: “[...] Não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e essa lacuna é tudo”.

Nascida de fatos reais ou de sua imaginação, a amargura de Bento se espraia pelo romance. Ela está por trás de suas gozações, do ciúme incontrolável – que o obriga a abafar “os soluços com a ponta do lençol” –, da sua persistente, doentia relação monetária com Deus, dos seus acessos de ódio, nos quais se rebaixa a uma frieza demoníaca – ao saber da morte do filho, não se emociona, mas consulta a Bíblia para ver, semelhante a um burocrata, se a citação colocada na tumba está correta; e depois de jantar parte para o teatro –, e no egoísmo que chega a ser atroz.      

Mas, não nos enganemos: Bento nos escapa. Quando diz a verdade? Ao afirmar que as mulheres o achavam lindo e não o deixavam em paz, no Capítulo XCVII, ou quando confessa, no Capítulo CXLVI, como todas se enfadavam rapidamente dele? O certo é que Bento conta sempre a sua verdade; e ela pode variar ao sabor dos seus humores, das suas quimeras. Um homem assim está fadado à desilusão, pois condena os que o circundam a estarem aquém dos seus sonhos.

Não é possível termos sentimentos imutáveis em relação a ele ou a qualquer uma das outras personagens. Ou melhor, há uma que merece nosso carinho da primeira à última página: Dona Glória, a mãe do protagonista. E gostamos dela graças à condescendência de seu filho, o narrador, que não nos contou seus defeitos – mas a presenteou, ao enterrá-la, com uma lápide sem nome, na qual escreveu somente “Uma santa”, expressão tão elogiosa quanto vaga.

Bento, o homem que diz bastar-lhe “um sono quieto e apagado”, é o mesmo que remói suas decepções com mórbido prazer – e ri do começo ao fim do livro. Seu riso, entretanto, é o que Machado nega ao protagonista do conto “A causa secreta”: não o riso “jovial e franco” de Fortunato, mas o “riso da dobrez”. Evasivo e oblíquo, seu sarcasmo é, no fundo, triste. Sua exclamação final assemelha-se a uma interjeição de agonia, o grito de desespero do solitário que não suporta a si mesmo.  

Depois da morte da mãe, ao visitar a casa em que morara na juventude, Bento vai ao quintal; observa cada pormenor, cada árvore – e tudo parece desconhecê-lo. O tronco da casuarina, antes reto, agora sugere um ponto de interrogação. O narrador vasculha o ar, busca uma resposta, “um pensamento que ali deixasse”, mas nada encontra. Então a ramagem sussurra algo, ele imagina que seja “a cantiga das manhãs novas”, mas “ao pé dessa música sonora e jovial”, escuta “o grunhir dos porcos, espécie de troça concentrada e filosófica”. Esse é o autêntico desenlace de Dom Casmurro, escondido no Capítulo CXLIV: talvez não nos agrade – como o próprio livro desagrada a tantos –, mas o romance que recusa a solução óbvia das tragédias, ressuma fel e despreza a verdade só poderia terminar assim, com seu mofino narrador acorrentado à natureza: ele a interroga – e ela, por ser finita, limitada, oferece-lhe a pior das respostas.