junho 27, 2014

Raskólnikov e eu

Quando li Crime e castigo a primeira vez, estava absorvido por múltiplas e desordenadas leituras, tinha uma compreensão maniqueísta da existência, Vladimir Ilitch Lenin acabara de surgir no meu horizonte como a figura perfeita do herói, a desagregação existencial que Antonio Callado mostra em Quarup parecia-me inata à condição humana e, meses mais tarde, eu me aventuraria numa viagem confusa e decepcionante à Bahia, disposto a recomeçar minha vida em alguma comunidade paupérrima que, acreditava, me apresentaria o verdadeiro Brasil.

Como descobri muito tempo depois, todos nós temos o pleno direito de sermos idiotas aos dezessete, vinte anos. E exerci esse direito plenamente, inclusive no que se refere às minhas leituras.

É uma pena que eu não tenha mais aquela edição de Crime e castigo, na qual anotei com sofreguidão, nas últimas páginas, elaboradas ofensas a Dostoiévski, criticando-o por permitir que seu personagem alcançasse a redenção. E como detestei Raskólnikov quando ele se lançou aos pés de Sônia, derrotado pelo amor. “Não, não, não!” – meu cérebro gritava, apegando-se a um niilismo infantil.

Duas décadas se passaram até que eu relesse o romance, agora de maneira quase febril, exaltado pela narrativa, negando-me, desde a primeira página, a qualquer tipo de distanciamento crítico. Eu desejava ler pelo prazer de ler.

Se havia algum resquício do jovem da primeira leitura, ele morreu ali, página a página, até chegar ao Epílogo, quando foi definitivamente sepultado. Nunca agradeci tanto a um escritor. A redenção de Raskólnikov era a minha redenção. Se aquele assassino podia zerar o passado e reiniciar a vida, então também para mim – e para todos – o recomeço seria possível. E a pena de sete anos, diante da paz interior finalmente encontrada, era uma insignificância.

Em abril de 2013 – ou seja, quase duas décadas depois dessa última leitura –, uma amiga, Lorena Miranda Cutlak, analisou com agudeza o Epílogo do romance. Ali está tudo o que eu gostaria de escrever. Ali está, esmiuçada, a dívida que temos com Raskólnikov.

junho 24, 2014

Karl Kraus, grande ironista

Leiam as duas cartas a seguir. Do lado esquerdo, o semanário moscovita Krassnaia Niva pergunta a Kraus quais os efeitos e conseqüências da Revolução Russa para a cultura mundial. Mas a resposta não pode ultrapassar vinte linhas. O tom burocrático e repetitivo da carta – que sugere, claro, um teor encomiástico para a resposta – recebe o merecido sarcasmo de Kraus (à direita): de fato, o que a revolução fez pela literatura cabe em dez ou vinte linhas. 

junho 10, 2014

Camões e Flaubert: amor mais longo que a vida

O tempo que o amor exige não conhece medida. O soneto de Camões evoca a inesgotabilidade do amor verdadeiro – e a consequente resignação ao objeto desejado, a paciência que supera limites. Não importa que Raquel almejamos. Muito menos, que forma assume Labão em nossa história.

Relemos a correspondência de Flaubert e lá está Jacó, debatendo-se por Raquel, servindo Labão como infatigável operário. “É preciso uma vontade sobre-humana para escrever e eu sou apenas um homem”, ele diz, trabalhando sete horas por dia; e, ao fim de um mês, enganado, produz apenas vinte páginas.

Não é o amor de Jacó, disposto a servir mais sete anos, que Flaubert carrega? “Eu gosto do meu trabalho com um amor frenético e pervertido, como um asceta do cilício que lhe arranha o ventre.” E não se sujeitou a sacrifícios, não se humilharia ainda mais, “ se não fora para tão longo amor tão curta a vida”?

Tal amor, sempre a um passo da obsessão, mostra-se, o soneto não conta, às vezes infértil. Em maio de 1852, Flaubert diz sentir-se “estéril como uma pedra”. Na história de Raquel e Jacó, o filho nasce depois de longa insistência. Será o favorito, José, mas a fala de Raquel não esconde o alívio: “Deus tirou o meu opróbrio”. Flaubert, contudo, não se permitiu o contentamento – sabia que “a palavra humana é como um caldeirão rachado, no qual batemos melodias próprias para fazer dançar os ursos, quando desejaríamos enternecer as estrelas”.

No fim, diante da obra terminada ou do filho, o que resta, senão amor? Amor que Camões adivinhou sob a plenitude, a totalidade do número 7. Amor mais longo que a vida.

junho 07, 2014

Hoje, lançamento de “Esquecidos & Superestimados” em Santos

Espero os amigos santistas hoje, às 17h, na Livraria Realejo, para o lançamento do meu novo livro, Esquecidos & Superestimados. A Realejo fica no Gonzaga, na Rua Marechal Deodoro, nº 2. Também participarei, com a mediação do jornalista e editor Rodrigo Simonsen, de um bate-papo sobre literatura e crítica literária. Até lá!

junho 04, 2014

Mediocridade e valor — o caso “A marquesa de Santos”, de Paulo Setúbal

Otto Maria Carpeaux estava certo: “Não existe relação entre os valores literários e os efeitos sociais: o sucesso não é prova de valor; a mediocridade não exclui consequências benéficas”. É o que mostro no ensaio que escrevi para a edição deste mês do jornal Rascunho, em que analiso o romance A marquesa de Santos, de Paulo Setúbal, um best-seller da literatura brasileira.