agosto 29, 2011

Corpus Christi

O silêncio sobranceia a rua. O céu, massa cinzenta, recobre as casas. Apenas um eco surdo ressoa pelo quarteirão: passos, não de soldadesca, mas no ritmo manso, tímido, que dignifica o silêncio. Primeiro, vejo filas de mulheres vestidas de negro, trazendo ao pescoço fitas azuis ou vermelhas, das quais pendem medalhas, cruzes, não me lembro. Depois, homens trajando, sobre os ternos escuros, vestes longas, sem mangas, entre o escarlate e o vinho, abertas na frente. Carregam lanças de madeira, em cujas pontas, protegidas pelo vidro no formato de lírio, ardem velas. Há compenetração em cada fisionomia. O olhar cinza de minha bisavó, alta e digna em seu luto eterno, lança um derradeiro brilho, antes que as pálpebras se fechem lentamente. Então, sem que eu entenda por que, todos – homens, mulheres, crianças – se ajoelham nas calçadas, enquanto as filas seguem pela rua. Acima dos passos, escuto o som de uma bandeira que se desfralda e olho: bela tenda, cintilante, erguida por quatro varas que os homens de vinho seguram; sob ela, altivo, coberto pelo manto dourado, um homem carrega seu tesouro, objeto que imita o sol. À minha frente, o idoso trêmulo tira o chapéu e se inclina ainda mais. O silêncio me invade – é dilacerante, sob o céu plúmbeo, o mutismo respeitoso dos adultos, tão pequenos agora, sérios mas estranhamente tranquilos, enquanto os passos ressoam e os lábios de minhas tias se movem, repetindo, mais tarde descobri, uma oração.

agosto 24, 2011

A pior das respostas

No Rascunho deste mês, meu ensaio sobre Dom Casmurro, de Machado de Assis. Leiam um trecho:

O leitor maduro tem consciência de que a vida é uma luta entre a aparência de verdade e o realmente verdadeiro, luta surda, em que o real é vítima de constantes refrações — maneira sutil de dizer que o homem se acostumou a defraudar a verdade. Assim, o romance, sob o comando de Bento, espelha parcialmente a vida: seu tema central não é o adultério, mas o uso obstinado de subterfúgios, de instrumentos que, a cada capítulo, enganem o leitor, levando-o por um labirinto cujo final é a decepção, pois todas as possíveis certezas foram corrompidas.

agosto 22, 2011

Este homem era um profeta


“A sociedade está entulhada, cegada e ensurdecida por uma inundação de exteriorizações vulgares e de mau gosto que paralisa intelectualmente o homem e não lhe deixa tempo livre para o ócio, o pensamento ou a criação a partir do seu próprio interior.”

Gilbert Keith Chesterton, em 1930

agosto 18, 2011

“A Retirada da Laguna” – épico às avessas

Alfredo Maria Adriano d'Escragnolle Taunay, o visconde de Taunay, sobre quem falei no último post, ao analisar seu romance Inocência, foi um dândi. Filho de uma das mais ilustres famílias instaladas no Rio de Janeiro durante o Segundo Império, na qual se uniram artistas e descendentes da aristocracia francesa, ele protagonizou dois episódios, dentre outros, que muito revelam da sua personalidade, ambos salientados por Sergio Medeiros na introdução que escreveu para sua tradução de A Retirada da Laguna (Editora Cia. das Letras) e nos excertos, das Memórias do visconde, que selecionou para o Apêndice do mesmo volume. No primeiro episódio, depois de entrar para o Exército, em 1861, Taunay se recusa a cortar os cabelos à escovinha, preferindo mantê-los longos e encaracolados, no que foi protegido por um superior. Anos mais tarde, durante a tomada de Peribebuí, no final da Guerra do Paraguai – quando ocupava o posto de secretário do estado-maior do conde d’Eu, substituto de Caxias no comando das forças brasileiras –, ao invadirem uma das residências de Solano López, o escritor é avisado de que há um piano no local. Descoberto o instrumento, nada o impede de gozar seu prazer:

Achei, com efeito, o desejado instrumento, bastante bom e afinado até, e pus-me logo a tocar, embora triste espetáculo ao lado me ficasse: o cadáver de infeliz paraguaio, morto durante o bombardeio da manhã, por uma granada que furara o teto da casa e lhe arrebentara bem em cima.

O desgraçado estava sem cabeça. Não foi senão depois de bastante tempo que pude fazer remover dali, aquela fúnebre [companhia], tocando, diletante, com grande ardor, talvez mais de duas horas seguidamente.

Assim festejei a tomada de Peribebuí.

Foi esse janota, contudo – em meio aos ataques dos paraguaios, preocupava-se apenas com a possibilidade de uma bala lhe arrancar um braço, o que o impediria de tocar piano, ou marcar seu rosto com uma cicatriz “honrosa, decerto, mas contrária às regras da plástica” –, quem escreveu A Retirada da Laguna, belo e instigante relato de guerra, obra bem superior ao seu mais famoso romance, Inocência, e que se iguala à melhor prosa surgida no Brasil até hoje.

Pergunto-me, aliás, por qual motivo A Retirada da Laguna não é lido na maioria das escolas. Será porque a obra foi escrita em francês? Ora, a língua, neste caso, revelou-se uma escolha feliz, pois libertou Taunay da necessidade, que muitos autores desgraçadamente impõem a si mesmos, de só escrever como literatos em dia com as influências estéticas de seu tempo. Assim, livre dessas injunções estúpidas, o escritor libertou-se também do pernosticismo e da verbosidade – fartamente encontrados em Inocência –, transformando sua narrativa de guerra numa obra magnífica, retrato da campanha militar fadada desde o início ao fracasso, mas empreendida com aquele patriotismo típico “dos crimes e das loucuras das nacionalidades”, apenas para lembrar Euclides da Cunha, ele também denunciante dos abusos cometidos pelo Estado brasileiro.

Mas talvez haja outra razão para A Retirada da Laguna não ser adotado nos colégios: na opinião de muitos, o fato de o livro não ser obra de ficção justifica o desprezo. À parte a obscenidade desse critério – que, se obedecido ao pé da letra, repeliria também Os sertões –, típico da nossa época confusa, na qual há um evidente deficit de discernimento entre os educadores, devemos salientar que o livro de Taunay – apesar de ele o considerar uma “narrativa que não aspira a outros méritos senão aqueles dos próprios fatos relatados” – está longe de se prender exclusivamente à verdade histórica: rápida leitura da bibliografia mais atualizada sobre a Guerra do Paraguai mostra que sobram licenças poéticas na obra.        
     
Haveria, ainda, um terceiro motivo? Creio que sim. Por que mostrar aos jovens um acontecimento da história nacional destituído de glória? Por que lembrar a página que só não está esquecida graças a Taunay? O silêncio não seria um comportamento mais adequado? E, quem sabe, a vergonha?

É exatamente a partir dessas perguntas que devemos começar nossa análise de A Retirada da Laguna.

Limites físicos e éticos

Que ninguém espere de Taunay um livro semelhante ao Servidão e grandeza militares, de Alfred de Vigny, ou ao Anábase, de Xenofonte. Nosso autor não está interessado em novelar fatos da campanha contra o Paraguai – e, muito menos, em escrever um épico no qual ele próprio ocupe papel predominante. Não. O jovem engenheiro militar e futuro visconde não organiza as forças do exército brasileiro, não assume o comando da retaguarda na expedição de volta ao Brasil, não propõe rotas, não pratica gestos de coragem – e não ouviremos os soldados gritando, com alegria, “Thálassa! Thálassa!” (“O mar! O mar!”, palavras imortalizadas por Xenofonte, ao descrever a reação dos gregos quando, depois de longa peregrinação, chegam ao Ponto Euxino).

Em A Retirada da Laguna, não estamos no mundo dos heróis. Os soldados brasileiros tornam-se sombras quando comparados a Aquiles ou Ájax – e jamais obedecem, portanto, à breve e perfeita definição do herói que Emil Staiger nos deixou: “A honra o obriga e o prazer da luta o atrai”. As cenas de nobreza são raras; a possibilidade de realizar gestos marcantes, heroicos, nem sempre é aproveitada; e se há grandeza de caráter ou audácia, essas qualidades estão restritas praticamente a um só personagem: o guia José Francisco Lopes.  

Épico às avessas, narrativa em permanente tensão, A Retirada da Laguna desmistifica a guerra, pois vencer, nesse caso, significou apenas continuar vivendo. Salvo as primeiras e inexpressivas escaramuças contra os paraguaios, não há conquistas a exaltar. Depois de 35 dias de recuo da tropa, a glória alcançada pelos que restaram – apenas setecentos sobreviveram, dos 1.680 que haviam invadido o Paraguai – resume-se à resistência contra os ataques do inimigo e ao prêmio de não terem sucumbido à fome, aos sucessivos incêndios provocados pelos paraguaios e ao cólera.

Ninguém disputa o prestígio do comando nessa história. Nenhum soldado merecerá um epíteto capaz de imortalizá-lo. E se nos basearmos no depoimento de Taunay, Carlos de Moraes Camisão, o comandante da coluna, deveria ser lembrado como Camisão, o Indeciso – ou, se preferirem um qualificativo mais literário, Camisão, o Perplexo.

De fato, é surpreendente que Taunay, apesar de jovem e fiel às tradições de sua família, merecedora da amizade pessoal de Pedro II, não tenha se vergado ao patriotismo cego ou à exaltação de uma campanha na qual os principais personagens são os pântanos, as doenças, a estafa e a escassez de víveres. Ao preferir nos deixar um relato intenso sobre os limites físicos e éticos do homem posto à prova em situações extremas, e sobre a perturbadora forma de loucura que se repete em todas as guerras, tomou uma decisão digna de ser celebrada.

Ironia e sobriedade

Os augúrios não se mostraram bons desde o começo. Quando as Memórias de Taunay foram publicadas – postumamente, em 1948, cinquenta anos após sua morte, conforme o que determinara –, ficamos conhecendo esta passagem, ocorrida enquanto a tropa, a caminho do Mato Grosso, permaneceu dois meses em Campinas, no Estado de São Paulo:

Findo o banquete, às onze horas da noite, déramos um passeio [...], e os ditos de espírito mais ou menos felizes não cessavam, sobrelevando a todos o velho Prudente Pires Monteiro, cuja verve era inesgotável.

Nisso cruzou os céus brilhantíssimo bólide, que iluminou de repente todos os espaços. Houve um instante de estupefação.

– Lá vai a expedição de Mato Grosso! – gritou o Rosen com o seu entusiasmo escandinavo.

Palavras não eram ditas, e o bólide arrebentou com um jato de luz enorme, a que sucederam intensíssimas trevas, deixando a todos nós conturbados e apreensivos.

A desorganização, somada ao completo desconhecimento das características geográficas das regiões a serem percorridas, fizeram com que as piores profecias se cumprissem. Antes mesmo de adentrar território paraguaio, quase dois anos depois da partida do Rio de Janeiro, percorridos mais de 2 mil quilômetros a pé, com as peças de artilharia puxadas por bois, um terço dos homens já estava morto:

Destituído de qualquer valor estratégico, o acampamento de Coxim encontrava-se pelo menos a uma altitude que lhe garantia salubridade. Contudo, quando a enchente tomou os arredores e o isolou, a tropa sofreu ali cruéis privações, inclusive fome.

Após longas hesitações, foi necessário, enfim, aventurarmo-nos pelos pântanos pestilentos situados ao pé da serra; a coluna ficou exposta inicialmente às febres, e uma das primeiras vítimas foi seu infeliz chefe, que expirou às margens do rio Negro; em seguida, arrastou-se depois penosamente até o povoado de Miranda.

Ali, uma epidemia climatérica de um novo tipo, a paralisia reflexa [beribéri], continuou a dizimar a tropa.

O que avulta, portanto, desde o início, são as decisões sempre contrárias ao bom senso.

Quando o coronel Carlos de Moraes Camisão assume o comando, as procrastinações ganham características dramáticas, pois o militar carrega o estigma da covardia. Além do falatório que colocava em dúvida sua capacidade de iniciativa, um soneto circulara à época da invasão paraguaia de Corumbá, denunciando a pusilanimidade não apenas de Camisão, mas de todos os chefes militares. O coronel, portanto, guiava-se não só pelo dever, mas pelo desejo de, a qualquer custo, limpar sua honra. Sem recursos para a ofensiva, pressionado pelas ordens superiores, dividido, estrangulado pelos dilemas que, ao invés de reforçarem as possíveis qualidades do estrategista, transformam-no numa figura hesitante e angustiada, Camisão é o próprio anti-herói:

Um comentário depreciativo feito a seu respeito, e que lhe tinha sido imprudentemente repetido, contribuiu mais ainda para torná-lo inflexível e surdo a tudo que parecesse desviá-lo do projeto de invasão. Certamente não ignorava as dificuldades, mas via os soldados cheios de entusiasmo e prontos para a luta; gabava-se de estar realizando com eles grandes feitos; adestrava-os nas manobras com exercícios assíduos; sob seu comando, eram realizados combates simulados nos quais a artilharia desempenhava seu ruidoso papel, e desta agitação geral resultava um arrebatamento de que ele próprio compartilhava; contudo, às vezes também se mostrava consciente de que só dispunha da vanguarda de um exército em operação; era obrigado a aceitar este fato. Suas hesitações ressurgiam então, e, quando chegava o dia fixado por ele próprio para a partida, encontrava sempre algum pretexto para adiá-la, mesmo que devesse invocar razões que rejeitara na véspera. Ora afirmava, em ofício ao ministro, que nada poderia empreender sem cavalaria, ora afirmava que podia dispensá-la: dolorosos combates entre a autoridade da razão serena e as aspirações de seu orgulho ferido.

Com esse estilo sóbrio, Taunay nos mostrará não apenas suas habilidades de psicologista, mas como os governos, sob o manto do patriotismo, podem conduzir seus cidadãos à humilhação e à morte. De fato, a lógica será derrotada do começo ao fim da campanha. Quando se anuncia a partida para Nioaque, a tropa não dispõe de gado suficiente para se alimentar. Transposta uma légua, novamente acampados, Camisão acorda de seu torpor e mostra-se “agitado”, pois, como previsto, não há carne para as refeições. Poucos dias depois, advertidos pela retaguarda de que esta não teria como garantir o abastecimento da coluna, a crise se instala. Reunida a comissão de engenheiros, três membros descrevem a grave situação em que se encontram e vaticinam a retirada; outros dois invocam a glória e o devotamento de “filhos do Brasil”. Contudo, enquanto as partes discutem, o inesperado ocorre:

Neste instante sobreveio um daqueles incidentes que, intrometendo-se no arranjo das coisas humanas, determinam-lhes o curso.

Instado por nosso comandante, o infatigável Lopes tinha ido buscar em sua fazenda um novo rebanho, que adentrou o acampamento não sem tumulto, respondendo o mugido dos animais aos clamores dos peões e vaqueiros.

A decisão, enfim, estava tomada, tal como outrora em Roma suspendiam-se ou aceleravam-se expedições militares de acordo com os gemidos das vítimas ou os gritos dos frangos sagrados.

A ironia do último parágrafo não se resume a uma saborosa decisão de estilo, mas personifica a censura tardia de Taunay, pois, a partir daquele momento, graças aos berros de algumas reses, centenas de homens estavam condenados à morte.

Os absurdos, entretanto, não param por aí. No primeiro encontro com o inimigo, quando a tropa acredita que investirá sobre os paraguaios, Camisão não dá a ordem, e os dois exércitos ficam se observando a pouca distância. A cavalaria paraguaia, depois de alguns minutos, desmonta e senta-se à sombra de algumas árvores. A narrativa de Taunay, irônica, é plena de justificada indignação, principalmente depois que o autor conhece o motivo da paralisia brasileira:

Provinha de seus [de Camisão] próprios escrúpulos: estávamos na Sexta-Feira Santa, e a iniciativa de uma ação sangrenta no dia da morte do Salvador repugnava a um coração religioso como o do nosso chefe, escravo de todos os nobres sentimentos e propenso a exagerá-los até a contradição [...].

As relações de Taunay com Camisão, apesar de cordiais, foram decepcionantes para o jovem. Ao chegarem ao rio Apa, fronteira entre Brasil e Paraguai, o superior decide fazer o gesto que, acredita, marcará a campanha. Taunay, implacável, não só descreve a cena como se risse à socapa, mas omite dos leitores, afirmando o contrário, exatamente o que Camisão pretendia deixar gravado nos anais da história:

O coronel, ao chegar, pediu que lhe dessem um pouco de água, da própria água do Apa, e, ou porque vagas reminiscências históricas a respeito de rios famosos despertassem em sua memória, ou porque, após seu espírito passar por tantas agitações, experimentasse ele uma espécie de excitação febril, disse sorrindo: “Vejamos a que horas provamos a água deste rio”. Olhou o relógio, bebeu e acrescentou num tom jovial: “Gostaria que este incidente ficasse consignado na história da expedição, se algum dia ela for escrita”. Parecia desejar que lhe prometêssemos isto; em nome de todos, o próprio autor deste relato comprometeu-se a assim proceder, e o cumpre hoje com uma exatidão religiosa, pois a morte, da qual nosso chefe estava tão próximo, sabe, por sua própria natureza enigmática, enobrecer tudo, absolver tudo e tudo consagrar.

Sim, o período termina com o perdão de Taunay ao superior que falhou – e seguirá falhando – inúmeras vezes, mas ao início jocoso ele acrescenta um ludíbrio, sua delicada vingança: afinal, a que horas o coronel provou a água do seu Rubicão?

Quando dizemos que o estilo de Taunay é sóbrio, queremos salientar seu surpreendente desprezo da retórica, dos floreios, dos atavios da linguagem, tão comuns nos seus romances e em toda a literatura brasileira. Compare-se, por exemplo, o primeiro capítulo de Inocência, no qual nosso autor se desdobra em tecer ornamentos vazios para descrever a natureza, com a narração desta tempestade:

A causa do atraso foi uma horrível tempestade que caiu naquela mesma noite, às nove horas. As torrentes de chuva logo transformaram o solo em pântanos lamacentos. Estes fenômenos terríveis não são raros no Paraguai, mas até então não havíamos presenciado nada parecido. Os relâmpagos que se cruzavam sem cessar, os raios que caíam de todos os lados, o vento furioso que arrancava tendas e barracas, compunham um caos de horrores a que se mesclavam de quando em quando os tiros de fuzil de nossas sentinelas contra os diabólicos inimigos, que não deixavam, mesmo naquele momento, de nos assediar: noite interminável em que para nós tudo era imagem de destruição. À mercê de todas as cóleras da natureza, sem abrigo nem refúgios, os soldados seminus, escorrendo água, imersos até a cintura em correntes capazes de arrastá-los, ainda se preocupavam em não deixar molhar os cartuchos. A manhã encontrou-nos nesta situação.

Nada escapa à observação de Taunay. Ele poderia ter deixado à posteridade um relatório frio e impessoal, em que os homens fossem peças desprezíveis na estratégia comandada por um monarca sapientíssimo, mas preferiu entregar-se, com equilíbrio, à emoção inspirada pelo desastre:

Caía a noite; havia um magnífico luar, cuja calma contrastava com os clarões sinistros de alguns finais de incêndios que erravam pelo campo. Quando nossos clarins deram afinal o toque de descansar, também os dos paraguaios soaram ao longe, como um eco zombeteiro. Tudo parecia insultar nossas mazelas: a fome trouxe-nos todas as suas torturas, e seu triste prelúdio é um desânimo que aniquila coragem e vontade. Carecíamos de tudo, o despojamento era completo: vestíamos todos farrapos, oficiais e soldados, mas a privação de calçados era, em razão do hábito, muito menos penosa a estes do que aos primeiros, cujos pés estavam inchados e feridos.

A este trecho de lirismo e derrota podemos acrescentar vários outros, cada um com sua simetria – ou seu horror – particular:

[...] Ia-se abater um boi estafado, quase moribundo: ao redor do infeliz animal um círculo já se formara, cada qual aguardando com ansiedade os jatos de sangue, alguns para recolhê-lo numa vasilha e levá-lo, outros para bebê-lo ali mesmo, e, no momento oportuno, todos se lançaram a um só tempo, os mais distantes disputando com os mais próximos. Isto sucedia todos os dias. O açougueiro mal tinha tempo de cortar o animal e de certo modo já era preciso arrancar-lhes os pedaços das mãos para levá-los ao local de distribuição. Os restos, as vísceras, o próprio couro, tudo era despedaçado no ato e prontamente devorado, mal assado ou mal cozido [...].

Mas Taunay também sabe descrever cenas menos grandiosas, menos dramáticas, nas quais alguns poucos gestos, contidos, podem exprimir toda uma tradição familiar. A esposa e os filhos do guia José Francisco Lopes haviam sido sequestrados pelos paraguaios. Um dos jovens, contudo, escapa e chega ao acampamento brasileiro. Horas mais tarde, quando o pai retorna com um dos batalhões, o encontro acontece:

Nosso guia havia sido informado da grande novidade ao passar pelas sentinelas avançadas. Pálido, olhos úmidos, aproximou-se do filho, que o aguardava respeitosamente, o chapéu na mão. Sem descer do cavalo, o velho estendeu-lhe a mão direita, que o filho beijou; depois, abençoou-o e seguiu sem dizer uma única palavra.

Esse fazendeiro austero – que Taunay compara ao personagem Olho de Falcão, do romance O último dos moicanos –, verdadeiro patriarca, desempenha papel-chave na narrativa. Herói falível, movido mais pelo desejo de libertar seus familiares do que pelo patriotismo, sem ele a tropa jamais concluiria a retirada. Atacado pelo cólera, Lopes agarra-se à vida até cumprir o que prometera: levar a coluna de volta ao território brasileiro e abrigá-la em segurança na sua própria fazenda. Assim que se aproximam da sede da propriedade, o velho guia, seguindo os antigos guerreiros épicos, parte rumo ao Hades.     

Morte em nada semelhante à do coronel Camisão, melancólica, destituída de proeza ou enlevo:

Em 29 de maio ficou evidente que chegara o fim do coronel. Várias vezes o sofrimento vencera a dignidade que ele tanto prezava: “Como dizem que a água é mortal”, exclamava, “deem-me um pouco, porque estou morrendo logo!”. E caiu num estado de torpor e sonolência; seu corpo cobriu-se de manchas violáceas. Às sete e meia, num esforço supremo, levantou-se do couro em que estava deitado, apoiou-se no capitão Lago e perguntou-lhe onde estava a coluna, repetindo mais uma vez que a salvara; depois, voltando os olhos já vidrados para seu ordenança, exclamou em tom de comando: “Salvador, dê-me a espada e o revólver”. Tentou afivelar o cinturão, mas, caindo, murmurou: “Que as forças prossigam; irei descansar”. E expirou.

Desalento e esperança

Voltemos, por um instante, às perguntas que deixamos sem resposta. Se não há glória n’A Retirada da Laguna, por que sua leitura seria proveitosa? Porque a desdita é o fado dos homens na Terra e, os gregos nos ensinaram, há algo de essencialmente positivo em toda tragédia: quando a vida nos coloca frente à frente com sua face mais terrível, acordamos para a nossa própria insignificância, o que não nos deve levar à resignação, mas à consciência, infelizmente muitas vezes fortuita, de que o mal não deve prevalecer sobre o bem, ainda que este pareça ser o costume. Como disse Virgílio, fiel leitor de Homero,

Felix qui potuit rerum cognoscere causas,
atque metus omnis et inexorabile fatum
subiecit pedibus strepitumque Acherontis avari.

[Feliz aquele que pôde conhecer as causas das coisas e sujeitou aos seus pés os medos todos e o fado inexorável e o estrépito do voraz Aqueronte.]

Em termos de literatura, não, não se trata de uma catarse – experiência sempre duvidosa –, mas de acordar para a realidade na qual vivemos: em meio à perfídia e à loucura, se há lugar para o desalento, há também – e principalmente – para a esperança. E não pode haver maior e melhor ambiguidade do que esta, a de um jovem escritor, testemunha de ódios, misérias e desacertos, que utiliza as piores características humanas para criar um clássico da literatura.

agosto 15, 2011

“Inocência”, de Taunay: valioso – mas desigual

Sejamos claros: Inocência, de Alfredo Maria Adriano d’Escragnolle Taunay, mais conhecido como visconde de Taunay, é um romancinho sentimental, contaminado daquele sentimentalismo – tão próprio dos românticos brasileiros – que dá vida a Romeus e Julietas apartados do gênio shakespeariano. Neste caso, a filha dos Capuletos é uma jovem de atrativos duvidosos, agradáveis aos que nascem e vivem na rudeza do sertão – “Vinha vestida de uma saia de algodão grosseiro e, à cabeça, trazia uma grande manta da mesma fazenda, cujas dobras as suas mãos prendiam junto ao corpo. Estava descalça, e a firmeza com que pisava o chão coberto de seixinhos e gravetos, mostrava que o hábito lhe havia endurecido a planta dos pés, sem lhes alterar, contudo, a primitiva elegância e pequenez” – ou aos que, semelhantes a Taunay, forçado a passar longo tempo sob situações adversas, encontram maneiras censuráveis de satisfazer as pulsões sexuais: em suas Memórias, ele recorda o período durante o qual, ocupando o posto de engenheiro do exército na Guerra do Paraguai, enfurnado no sertão mato-grossense, comprou de certo homem, hábil negociante, a posse da filha, uma indiazinha chané, por “um saco de feijão, outro de milho, dois alqueires de arroz, uma vaca para o corte e um boi de montaria”, valores aos quais teve de acrescentar, a fim de conseguir a plena anuência da jovem, “um colar de contas de ouro, que, em Uberaba, me havia custado quarenta ou cinquenta mil-réis”. Participando de uma guerra, estacionado nesta ou naquela vila, Taunay, dócil à lei da necessidade, certamente idealizou os pés grosseiros da indiazinha – além de outros detalhes, inarráveis –, a ponto de, anos mais tarde, escrever:

[...] Em tudo lhe achava graça, especialmente no modo ingênuo de dizer as coisas e na elegância inata dos gestos e movimentos. Embelezei-me de todo por esta amável rapariga e, sem resistência, me entreguei ao sentimento forte, demasiado forte, que em mim nasceu. Passei, pois, ao seu lado dias descuidosos e bem felizes, desejando de coração que muito tempo decorresse antes que me visse constrangido a voltar às agitações do mundo, de que me achava tão separado e alheio.

Pensando por vezes e sempre com sinceras saudades daquela época, quer parecer-me que essa ingênua índia foi das mulheres a quem mais amei.

Sentimentos que inspiraram um conto, “Ierecê a Guaná”, e, sem dúvida, Inocência.

De volta à realidade e às “agitações do mundo” – que lhe conferiram, até a queda do Império, honrarias próprias de um respeitável homem público, merecedor da confiança de Pedro II –, Taunay casou-se com Cristina Teixeira Leite, filha e neta de barões. Como disse G. K. Chesterton, “a sentimentalidade, a que é de bom gosto chamar de doentia, é de todas as coisas a mais natural e saudável; é a verdadeira extravagância da saúde juvenil”.

Verbosidade

Questões biográficas à parte, Inocência tem recebido encômios dos principais críticos brasileiros, algumas vezes com evidente exagero. Trata-se de prática rotineira entre nós, infelizmente, chamar de genial o apenas razoável, como se o país, destituído de um número de gênios que corresponda ao tamanho do seu território, se dispusesse a criá-los à força, ainda que, para tanto, fosse obrigado a edulcorar a verdade. E não há exagero em minhas palavras. Leiam os cadernos culturais: aqui, nasce um gênio a cada semana. É pena que a quase absoluta maioria tenha vida efêmera – muitos não resistem à primeira troca de fraldas; poucos, cujos amigos estão nos postos certos, ganham sobrevida de uma década.

Mas a fama de Taunay não se deve ao empenho de pistolões. Somaram-se alguns fatores para conceder à ficção do visconde a importância de que desfruta ainda hoje: Inocência é o primeiro sopro, razoavelmente feliz, do realismo; o sinal de que, enfim, a temática dos nossos escritores começava a mudar e, lentamente, afastava-se da estética romântica. Acrescentemos a isso o ímpeto de se agarrar a qualquer tábua de salvação – afinal, precisamos de bons escritores! –, as poucas e inegáveis qualidades do livro, a recepção positiva da obra no exterior e a vocação repetitória de parcela da nossa crítica – e entenderemos como Taunay chegou ao panteão da literatura brasileira.

O texto que mais se aproxima do equilíbrio, quando se trata de analisar a ficção de Taunay, é o capítulo “Ecos românticos, veleidades realistas” do livro Prosa de ficção, escrito por Lúcia Miguel-Pereira. A autora capta os matizes do período de passagem do romantismo à obra madura de Machado de Assis – e quando chega a Taunay, não deixa, apesar das contemporizações, de apontar problemas. Lúcia cita qualidades do escritor – “o íntimo sentimento da língua, a graça da narrativa, o poder de animar as personagens, a arte de criar ressonâncias” – mas ressalta que ele as possuía “sem grande relevo”. Aponta também sua falta de “dotes para os conflitos psicológicos”; salienta o pernosticismo de suas personagens femininas; e, ao falar de Inocência, acrescenta ao último senão a simplicidade esquemática das personagens e o caráter “bastante prolixo” de seu narrador.

De fato, Taunay sofre de uma tendência irrefreável à verbosidade. Estilo, aliás, que contaminou Euclides da Cunha, cujos ritmo da frase e organização dos parágrafos assemelham-se aos do visconde. O leitor que cotejar trechos de Os Sertões com o primeiro capítulo de Inocência ficará desagradavelmente surpreso. Assim escreve Taunay:

Através da atmosfera enublada mal pode então coar a luz do sol. A incineração é completa, o calor intenso; e nos ares revoltos volitam palhinhas carboretadas, detritos, argueiros e grânulos de carvão que redemoinham, sobem, descem e se emaranham nos sorvedouros e adelgaçadas trombas, caprichosamente formadas pelas aragens, ao embaterem umas de encontro às outras.

Por toda a parte melancolia; de todos os lados tétricas perspectivas.

É cair, porém, daí a dias copiosa chuva, e parece que uma varinha de fada andou por aqueles sombrios recantos a traçar às pressas jardins encantados e nunca vistos. Entra tudo num trabalho íntimo de espantosa atividade. Transborda a vida. Não há ponto em que não brote capim, em que não desabrochem rebentões com o olhar sôfrego de quem espreita azada ocasião para buscar a liberdade, despedaçando as prisões da penosa clausura.

Àquela instantânea ressurreição nada, nada pode pôr peias.

E ele segue, adicionando adjetivos sobre adjetivos, a ponto de causar entojo:

Basta uma noite, para que formosa alfombra verde, verde-claro, verde-gaio, acetinado, cubra todas as tristezas de há pouco. Aprimoram-se depois os esforços; rompem as flores do campo que desabotoam às carícias da brisa as delicadas corolas e lhes entregam as primícias dos seus cândidos perfumes.

Quando Taunay narra, a enumeração detalhada significa, principalmente, adjetivar. Antes dos trechos acima, ao descrever o princípio do incêndio, as chamas são “esguias”, “trêmulas”, “medrosas”, “vacilantes” e “sôfregas” – e isso num espaço de três ou quatro linhas. Mais à frente, o leitor desavisado pode sofrer engulhos diante do texto piegas, que exibe as piores características do romantismo brasileiro:

Se falham essas chuvas vivificadoras, então por muitos e muitos meses, aí ficam aquelas campinas, devastadas pelo fogo, lugrubemente iluminadas por avermelhados clarões sem uma sombra, um sorriso, uma esperança de vida, com todas as suas opulências e verdejantes pimpolhos ocultos, como que raladas de dor e mudo desespero por não poderem ostentar as riquezas e galas encerradas no ubertoso seio.

Problemas que se repetem no transcorrer do romance, como nesta aula de empolamento, no Capítulo XXIII, em que aprendemos a descrever com exagero ou enfadar leitores:

Aquela hora dava a lua de minguante alguma claridade à terra; entretanto, como que se pressentia outra luz a preparar-se no céu para irradiar com súbito esplendor e infundir animação e alegria à natureza adormecida. Nos galhos das laranjeiras, ouvia-se o pipilar de pássaros prestes a despertar, um gorjeio íntimo e aveludado de ave que cochila; e ao longe um sabiá mais madrugador desfiava melodias que o silêncio harmoniosamente repercutia. Riscava-se o oriente de dúbias linhas vermelhas, prenúncio mal percebível da manhã; nos espaços pestanejavam as estrelas com brilho bastante amortecido, ao passo que fina e amarelada névoa empalecia o tênue segmento iluminado do argênteo astro.

Não basta a Taunay listar os sinais do amanhecer; ele é magnetizado pelo circunlóquio: a cena pegajosa está colocada diante do leitor, os adjetivos encharcam a página, mas o visconde precisa adicionar ainda mais retórica e dizer “prenúncio mal percebível da manhã”. Reencontraremos esse vício, em diferentes proporções. Quase no final, quando Cirino conhece o sertanejo a quem Inocência está prometida, pensa: “– Enfim, conheci o Manecão! [...] E para esse é que reservam a minha gentil Inocência?!... Bonito homem para qualquer... para mim, para ela, horrendo monstro!... E como é forte!”. Não satisfeito, o narrador se intromete, a fim de completar o que não necessita de complemento: “Digamo-lo, sem por isso amesquinhar o nosso herói, a ideia de força do rival acabrunhava-o”. E de maneira a comprovar a superfluidade da intromissão, volta a permitir que seu personagem reflita: “– Se eu pudesse... esmagava-o!... E que ar sombrio e desconfiado!... Meu Deus, daí-me coragem... [...]”. Outras vezes, ele opta pela construção pleonástica evidente e pode deixar escapulir uma “carniça putrefata”.

Apesar de nascido no Brasil, Taunay era descendente de nobres franceses. Em família, aprendeu, desde cedo, a fidelidade ao sistema monárquico e às raízes aristocráticas. Dedicado ao país – sua digna carreira política só foi cerceada pelo advento da República –, parecia, no entanto, escrever para deleite dos europeus. Em Inocência, o narrador interrompe seu relato a fim de explicar a esses hipotéticos leitores o comportamento dos personagens e os costumes da região; e o faz com estranho distanciamento, assumindo a voz do etnógrafo que narra a estrangeiros os traços exóticos de certo povo.

No Capítulo V, Pereira, o pai de Inocência, verbaliza sua opinião sobre as mulheres:

– Esta obrigação de casar as mulheres é o diabo!... Se não tomam estado, ficam jururus e fanadinhas...; se casam podem cair nas mãos de algum marido malvado... E depois, as histórias!... Ih, meu Deus, mulheres numa casa, é coisa de meter medo... São redomas de vidro que tudo pode quebrar... Enfim, minha filha, enquanto solteira, honrou o nome de meus pais... O Manecão que se aguente, quando a tiver por sua... Com gente de saia não há que fiar... Cruz! botam famílias inteiras a perder, enquanto o demo esfrega um olho.

Preconceituosas, as palavras refletem o pensamento típico do homem rude ou interiorano, transmitido boca a boca até hoje, e recuperam a saborosa forma de falar da gente simples. Taunay, contudo, se encarrega de enfraquecer a naturalidade do parágrafo, acrescentando:

Esta opinião injuriosa sobre as mulheres é, em geral, corrente nos nossos sertões e traz como consequência imediata e prática, além da rigorosa clausura em que são mantidas, não só o casamento convencionado entre parentes muito chegados para filhos de menor idade, mas sobretudo os numerosos crimes cometidos, mal se suspeita possibilidade de qualquer intriga amorosa entre pessoa da família e algum estranho.

Passamos, assim, da ficção ao relatório de excentricidades, o que talvez justifique as inúmeras traduções do livro na Europa. Pari passu, várias notas de rodapé servem a igual propósito. No Capítulo XVI, a divertida negociação entre o curandeiro Cirino e um paciente sovina, que regateia o preço do tratamento, estabelecido em “cem mil réis”, é ilustrada pela nota de rodapé que o visconde deve ter considerado importantíssima: “É o preço por que um curandeiro queria curar um empalamado, por cuja fazendola passamos em julho de 1867, nesse mesmo sertão de Sant’Ana”.

Voltando aos adjetivos, muitas vezes a imaginação de Taunay torna-se febril – e no afã de encontrar o qualificativo correto, acaba fazendo péssimas escolhas. Assim, os buritis começam a “ciciar a modo de harpas eólias”, os cocos são vestidos de “escamas romboidais”, a vila de Sant’Ana do Parnaíba é “sezonática e decadente”, um personagem apresenta respiração “isocrônica e ruidosa”... A infantilização também ronda o livro: um “lepidóptero” pode ser azul “como cerúleo cantinho do céu”.

São inaceitáveis e incompreensíveis, portanto, os juízos a respeito do livro que se consolidaram e continuam a ser repetidos. Os pródigos elogios de José Veríssimo fazem-nos pensar se ele, de fato, leu o livro: “Não havia em Inocência os arrebiques e enfeites com que ainda os melhores dos nossos romances presumiam embelezar-nos a vida e os costumes e a si mesmos sublimarem-se. E com rara simplicidade de meios, língua chã e até comum, estilo natural de quase nenhum lavor literário, composição sóbria, desartificiosa, quase ingênua, e, relativamente à então vigente, original e nova, saía uma obra-prima”. Alfredo Bosi, peremptório e desmedido, diz que, “no âmbito de nosso regionalismo, romântico ou realista, nada há que supere Inocência em simplicidade e bom gosto”. E apenas para citar mais um exemplo, fiquemos com o destempero de João Luiz Lafetá: “[...] A narrativa de Inocência tem a graça das coisas simples, e por isso é que nos atinge de modo tão direto em nossa sensibilidade. Uma história de juventude e amor, contada sem afetação e sem pretensões de grandeza, despida de idealizações eloquentes, tem a exemplaridade dos fatos paradigmáticos, representa com exatidão um dos grandes momentos da vida de cada um de nós”.

Antevisão do realismo

Se há uma qualidade no texto de Taunay, ela se concentra no perfil e nas vozes de alguns personagens. Cirino e Inocência, o par de apaixonados, ainda que obedeçam a planos esquemáticos – seguem, até o paroxismo, os piores chavões da estética romântica –, demonstram certa complexidade, infelizmente mal aproveitada. Cirino apresenta-se como médico, mas sequer tirou o diploma de farmacêutico; não passa, logo, de um curandeiro. Soma mais acertos que erros à sua prática, mas não hesita em agir como mentiroso e aproveitador quando lhe faltam os remédios certos, passando a receitar mezinhas cujo efeito é incerto – e apesar de se dizer homem de ciência, mostra-se apegado a superstições. Está longe, portanto, de representar o herói romântico de moral inquebrantável. Quanto a Inocência, nada tem de inocente. Pouco aparece no livro, escondida numa espécie de gineceu, mas, quando surge, comporta-se de maneira a ratificar as ideias machistas de Pereira: mal conheceu Cirino, age como sua cúmplice e, instintivamente, finge diante do pai:

– Sente mais febre? Perguntou Cirino muito baixinho.
– Não sei, foi a resposta, e resposta demorada.
– Deixe-me ver o seu pulso.
E tomando-lhe a mão, apertou-a com ardor entre as suas, retendo-a, apesar dos ligeiros esforços que, para a retrair, empregou ela por vezes.
Nisto, entrou Pereira. Inocência fechou com presteza os olhos e Cirino voltou-se rapidamente, levando um dedo aos lábios para recomendar silêncio.
– Está dormindo, avisou com voz sumida.

Depois que os jovens finalmente se declaram, veem-se diante da impossibilidade de ficarem juntos, pois Inocência está prometida a Manecão. Após longa conversa e muitas lágrimas, é dela que parte a ideia de pedir ajuda a seu padrinho, a quem o pai respeita e deve favores e dinheiro. Ladina, mais maliciosa que Cirino – apesar de viver quase enclausurada –, ela insiste:

– Mas, interrompeu Inocência, não lhe fale em mim, ouviu? Não lhe diga que tratou comigo... que comigo mapiou... Estava tudo perdido... Invente umas histórias... faça-se de rico... nem de leve deixe assuntar que foi por meu juízo que mecê bateu à porta dele... Hi! Com gente desconfiada, é preciso saber negaciar...

Num breve trecho, Taunay pode retratar perfeitamente as falas e os gestos típicos, somando-os ao orgulho do pai que, a seu modo, ama a filha:

– Pois bem, o Manecão ficou ansim meio em dúvida; mas quando lhe mostrei a pequena, foi outra cantiga... Ah! Também é uma menina!...
E Pereira, esquecido das primeiras prevenções, deu um muxoxo expressivo, apoiando a palma da mão aberta de encontro aos grossos lábios.
– Agora, ela está um tanto desfeita; mas quando tem saúde é choradinha que nem mangaba do areal. Tem cabelos compridos e finos como seda de paina, um nariz mimoso e uns olhos matadores...
Nem parece filha de quem é...

Um segundo par, formado por personalidades antagônicas, prende nossa atenção: o entomologista alemão Tembel Meyer e seu criado, José. O relacionamento desses dois é marcado por uma tolerância na qual à relativa tensão soma-se perfeita dose de humor, pois o cientista está sempre a corrigir, de maneira paternal, o empregado, enquanto este vive numa indignação permanente, sem compreender o porquê de caçar borboletas e outros insetos, mas resignando-se, pois necessita do emprego. O sábio e o rude unem-se, desse modo, numa relação que, apesar do esquematismo, jamais perde a graça.   
 
À dramaticidade fácil e previsível do embate final, entre Manecão e Cirino, contrapõe-se o comovente Capítulo XVII, em que um morfético busca, desesperado, a ajuda do falso médico para sua doença, àquela época sem cura. É um dos trechos mais bem estruturados do romance, composto basicamente por dois longos diálogos, nos quais seguimos o violento preconceito que até hoje subsiste em relação à lepra e o trágico desamparo do fazendeiro atacado pelo mal.

O grotesco também está presente no romance, na figura do anão Tico, de rosto repleto de rugas e mudo – “uma espécie de cachorro de Nocência”, diz o pai. Será ele, demoníaco em sua propensão a vigiar a protagonista, que alertará Pereira e Manecão, desencadeando o fim do jovem curandeiro. Tico simboliza a própria rudeza do sertão, cujas regras nascem de uma ética funesta, se comparada à do mundo civilizado.

Mas no que se refere aos diálogos plenos de naturalidade, espalhados por todo o romance, Taunay alcança sua melhor forma no Capítulo XXIV, no qual reúne, em torno de Cirino, moradores importantes da vila de Sant’Ana. A epígrafe do capítulo, irônica – repetindo, aliás, o poder sugestivo das demais, sempre bem escolhidas pelo autor –, anuncia: “Debaixo do céu há uma coisa que nunca se viu: é uma cidade pequena sem falatórios, mentiras e bisbilhotices”. O major Taques, o vigário e o coletor crivam Cirino de perguntas, às quais o rapaz responde, às vezes de maneira capenga, pois pretende esconder o real motivo da viagem. Trata-se de um quarteto operístico perfeito, em que cada personalidade assume uma voz própria, intrometendo-se na conversa e fazendo observações paralelas. Logo a seguir, Manecão aparece e a tensão se instala. Quando o grupo se desfaz e os rivais se afastam, tomando rumos opostos, os inevitáveis comentários surgem, dando vida a especulações.

Tais cenas, que merecem elogios, formam uma antevisão do que o melhor realismo e os mais importantes ficcionistas pós-Semana de Arte Moderna produziram em nosso país. É pena que não pertençam a um todo coerente, uniforme, mas sejam o reflexo da personalidade que Wilson Martins sintetizou: “Realista pela inspiração, mas romântico pelo estilo e pelos sentimentos; olhando a realidade bem nos olhos... mas com os olhos ingênuos do menino louro e de cabelos anelados criado junto à saia da mãe [...]”. Voltaremos a Taunay num próximo ensaio. Por enquanto, deixo os leitores com este romancinho valioso, mas desigual.