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outubro 31, 2014

Dicas de leitura no Dia Nacional do Livro (com atraso)

Se há um Dia Nacional do Livro — sim, eu sei, estou atrasado —, ele deve servir, principalmente, para honrar quem dá vida ao livro: o leitor. Só ele garante a sobrevivência, não só da obra, não só da memória do autor, mas também do frágil objeto que, esquecido ou maltratado, tende a desaparecer.

Assim, homenageando os leitores, minhas dez sugestões de livros, para hoje e sempre:

1. “A morte de Virgílio” (Hermann Broch) — Numa prosa soberba, o retrato das últimas horas de vida do escritor que encarna os principais valores da civilização ocidental.

2. “Filoctetes” (Sófocles) — As qualidades de um homem jamais podem ser separadas de seus tormentos e de sua mágoa. [Complemento indispensável: o ensaio “Filoctetes: a ferida e o arco”, de Edmund Wilson.]

3. “O condenado” (Graham Greene) — O mal contamina tudo; e pode se propagar para além da morte.

4. “Berlim” (Joseph Roth) — Crônicas, que também são ensaios, geniais.

5. “A provação de Gilbert Pinfold” (Evelyn Waugh) — Ironia e demência num texto divertidíssimo.

6. “O Agente Secreto” (Joseph Conrad) — Cinismo e canalhice, quando se trata dos esquerdistas, não têm limite.

7. “A fera na selva” (Henry James) — O perigo de não tomar decisões e de se recusar a viver.

8. “Sob o sol de Satã” (Georges Bernanos) — A terrível materialidade do mal.

9. “O bom soldado”, Ford Madox Ford — Um narrador-protagonista que, em meio à confusão e à ruína moral, procura a verdade.

10. “Aspiração”, um poema, de Carlos Drummond de Andrade, que os jovens não costumam entender.

junho 21, 2011

Romantismo autodestrutivo

A afirmação de que José de Alencar é o primeiro grande prosador da literatura brasileira tornou-se consenso. E há, inclusive, quem ache o seu Iracema verdadeira obra-prima – o que, em minha opinião, não passa de um despautério. O que não se fala – e raramente se ensina – é que a obra alencariana, quando comparada aos grandes nomes do romantismo alemão ou inglês, transforma-se num fato estético insignificante, cujo único valor se resume ao que afirmamos no início deste parágrafo: fenômeno de importância restrita ao Brasil – e nunca, jamais universal.

No entanto, a maioria dos professores – principalmente no ensino médio – acostumou-se a mostrar o romantismo brasileiro como uma consequência natural do romantismo europeu. Lê-se o capítulo dedicado ao tema, no livro didático, e fica-se com a impressão de que as características das obras fundadoras desse movimento passaram de maneira automática para os autores brasileiros, havendo, entre os dois grupos, uma correspondência absoluta. Nada pode ser mais mentiroso, contudo.

Jamais encontraremos nos românticos nacionais, apenas para citar um exemplo, a genialidade de Friedrich Schlegel, profundo estudioso de Shakespeare e Goethe, crítico literário excepcional. Schlegel recuperou os valores clássicos da poesia grega, defendeu a necessidade de uma literatura universal e, convertido ao catolicismo e apontado, em política, como reacionário, deixou um romance incompleto – Lucinde –, obra contraditória, odiada por Schiller, na qual se faz a apologia do amor livre. Não satisfeito, Schlegel libertou a ironia do seu caráter de mero chiste ou travessura linguística, elevando-a à condição de comportamento filosófico diante da arte e da vida, pois, em sua opinião, só a ironia pode redimir um mundo baseado em falsas verdades.

Os nacionalistas certamente retrucarão que, se seguirmos esse raciocínio, teremos de jogar no lixo grande parte da literatura brasileira, não apenas a romântica, e que, agindo dessa forma, desvalorizaremos nosso patrimônio cultural. Tais afirmações, no entanto, são sofismas. Trata-se, isso sim, de colocarmos os românticos brasileiros onde realmente devem estar – e não utilizarmos, em nome do ufanismo, critérios condescendentes de julgamento; prática, aliás, que se torna cada vez mais comum entre nós.

Nossos românticos têm papel fundamental na formação da literatura e da língua portuguesa característica do Brasil – e Alencar foi um dos que mais defendeu a importância de uma expressão genuinamente brasileira, ainda que tal matéria seja, em minha opinião, secundária (*) –, mas, em termos estéticos, a ficção romântica permaneceu presa ao pitoresco, à idealização exagerada do elemento indígena. Ou seja, trata-se de um romantismo que, ao contrário do que fizeram alguns dos principais escritores alemães e ingleses, não cultua a autoconsciência, não se sente superior pela sua própria excepcionalidade. Entre nós, a supervalorização da sensibilidade ocorreu quase sempre de maneira negativa, assumindo a forma de um recalque ou substituída por qualquer solução apaziguadora, conciliatória (como ocorre no segundo mais importante romance de Alencar, Senhora); e se surgem pulsões libertadoras, estas acabam por se congelar na forma de patologias melancólicas, encerradas entre quatro paredes. Quanto à linguagem, o romantismo brasileiro é, bem sabemos, o império do adjetivo, da hipérbole, do arroubo grandiloquente.

A lama no tanque

No caso específico de Lucíola, publicado em 1862 – em minha opinião, o melhor romance de Alencar, ainda que seja uma releitura de A Dama das Camélias –, o que primeiro chama nossa atenção é o problema do narrador. O romance inicia com uma “Nota ao autor”, escrita pela destinatária das cartas que, enviadas pelo narrador, foram reunidas e, sem que este soubesse, transformadas em livro. O que era, portanto, para ser um relato particular, ganha o caráter de narrativa pública. O motivo desse contorcionismo parece-me evidente: se Lúcia, a protagonista, é a prostituta que se transforma em “musa cristã” – e que “trilha o pó com os olhos no céu” –, nada melhor que outra mulher para referendar, perante os leitores, a história dessa purificação. De maneira medrosa, mas hábil, o narrador/autor, tenta se abster de qualquer responsabilidade.

Essa forma de fugir às consequências de um relato que, apesar de todas as concessões feitas à religião e à moral, causou escândalo ao ser publicado, confirma-se logo no início do primeiro capítulo, quando o narrador, justificando o envio das cartas, nas quais pretende traçar o perfil de Lúcia, afirma sua “excessiva indulgência pelas criaturas infelizes”. A pretensão do narrador não é, portanto, contar a história de uma paixão mútua, abrasadora, mas, principalmente, descrever o objeto de seu relato como um espécime curioso.   

Estamos diante de um narrador, Paulo, que se mostra imaturo para a vida na Corte, ou, como ele mesmo se define, um “profano na difícil ciência das banalidades sociais”. Impressionado pela beleza de Lúcia – que ele encontra de maneira fortuita, mal havia chegado ao Rio de Janeiro –, o narrador descobre que por trás da “serenidade do olhar” se escondia uma prostituta. Passado o choque inevitável, inicia-se um jogo de insinuações durante o qual Paulo afirma não amar tal mulher, mas ter “apenas sede de prazer”. O problema é que o jovem não interpreta os sinais que Lúcia lhe dá; provinciano, parvo em alguns momentos, ele se engana em relação às reações da meretriz. Na confusão de sentimentos que ocorre – da qual temos apenas o ponto de vista de Paulo, que confessa não possuir perspicácia suficiente para entender os fatos –, Lúcia acaba por conduzir o narrador a sensações de prazer inusitadas.

Mas Paulo deseja algo além do sexo? Quando vê, em certos momentos, a mulher abandonar seu “modo singelo e modesto” para expressar-se por meio da “frase ríspida, incisiva e levemente embebida em ironia”, ele afirma sentir desvanecer dentro de si uma “doce ilusão, que, por mais transparente que seja, nubla o espírito crédulo, quando procura no fundo do prazer um átomo sequer de amor”. Essas divagações, contudo, não passam de retórica. O leitor não deve se enganar: Lúcia será, do começo ao fim do romance, o obscuro objeto do desejo de Paulo – apenas do desejo. E aqui faço uma referência precisa: ela será a fêmea inalcançável a que Paulo se submeterá, semelhante à personagem da novela de Pierre Louÿs que Buñuel imortalizou em seu último filme.

A questão central do romance, portanto, não é só, como se costuma repetir, a da mulher que, por ser prostituta, considera-se moralmente corrompida para o amor e tenta, desesperadamente, purificar-se, até alcançar a autodestruição. Há essa passionalidade, sem dúvida – e nesse sentido, o livro caminha na contramão do romantismo, pois a heroína não se liberta das amarras sociais, escravizando-se a elas, certa de que o fato de ser uma cortesã a impede de viver seu grande amor. Mas, de maneira paralela a esse drama, há o outro eixo de Lucíola, mais instigante, do narrador/personagem que embarca numa aventura duvidosa, abrindo mão dos prazeres sexuais em troca de uma experiência de aflitiva castidade, na qual se torna um fantoche, espectador do conflito que a cortesã vive – e sem jamais expressar seu amor por Lúcia, pois realmente não a ama, somente a endeusa, mantendo com ela uma relação nitidamente edipiana. À desagregação mental de Lúcia, que vemos crescer na exata medida em que a jovem se conscientiza de seu amor por Paulo, corresponde a obediência do rapaz inexperiente, satisfeito em seu papel acessório, admirando o escapismo de sua companheira, incentivador excêntrico do que move Lúcia: negar, a si mesma, a possibilidade de unir prazer e amor.

A jovem prostituta acredita que deve seguir repetindo o que fez por seus familiares: tornar-se o cordeiro imolado, mas agora num ritual em que ela assume, ao mesmo tempo, o papel de vítima e de sacrificante – e, o mais terrível, em nome de um amor que não é recíproco. Seu masoquismo chega às raias da promiscuidade quando ela propõe a Paulo que ame sua irmã caçula, sugerindo que Ana lhe daria “os castos prazeres” que ela não podia dar – “e recebendo-os dela, ainda os receberias de mim”. Delirando em sua histeria, Lúcia conclui: “Que podia eu mais desejar neste mundo? Que vida mais doce do que viver da ventura de ambos? Ana se parece comigo; amarias nela minha imagem purificada, beijarias nela os meus lábios virgens; e minha alma entre a sua boca e a tua gozaria dos beijos de ambos”. Ou, um pouco antes, anunciando a morbidez de seus pensamentos: “Quero uni-la ao santo consórcio de nossas almas. Formaremos uma só família; os filhos que ela te der, serão meus filhos também; as carícias que lhe fizeres, eu as receberei na pessoa dela. Seremos duas para amar-te; uma só para o teu amor”.

O desvio é nítido: o desejo não realizado tornou-se neurose. Mas essa é a única proposta que Paulo recusa. Às outras, obedecerá sempre, resignando-se a um único prazer sexual, o ato de, arrastando-se pela relva, beijar as pontas das botinas de Lúcia, que surgem sob “a orla do vestido” (numa clara alusão ao fetiche que Alencar exploraria em A pata da gazela, de 1870).

Lúcia hipnotiza e submete esse elemento masculino dócil; e à medida que o romance se aproxima do fim, enquanto ela abandona a antiga personalidade, chegando a adotar um novo nome, não por acaso “Maria”, a ex-cortesã passa a controlar, ordenar, exigir – e será obedecida nas menores vontades. Paulo descreve o “gesto imperativo” que o faz obedecer ou que o “obriga” a, por exemplo, ajudá-la a pentear a irmã e, principalmente, beijar as pontas dos anéis de “cabelos finos e sutis”. Diante do que ele conclui: “O que ela exigiria de mim que eu não fizesse para vê-la feliz do seu desejo satisfeito?”. E mesmo antes, quando a transformação de Lúcia, mal iniciada, já nega a Paulo os arroubos da libido, ele confessa: “Contudo, ou por um doce hábito, ou por uma misteriosa influência do passado, preferia a frieza dessa mulher aos transportes de qualquer beleza; guardava-lhe sem sacrifício, como sem intenção, uma fidelidade exemplar”.

Tal é o amor antirromântico de Alencar, processo de sublimação que condena Lúcia a se autodestruir e Paulo a um prazer frio – paixões pervertidas por preconceitos, por psicopatologias e pela culpa. E por um cristianismo deformado, que Alencar transforma em mero misticismo, religiosidade que acorrenta a protagonista ao pecado – situação, por sinal, descrita muito bem, ao fazer Lúcia comentar, quando vê que Paulo joga pedrinhas em um pequeno tanque natural, de águas a princípio cristalinas: “– A lama deste tanque é meu corpo: enquanto a deixam no fundo e em repouso, a água está pura e límpida”.

Ao introjetarem, de maneira errônea, os valores de sua época, os personagens de Alencar se cobrem de uma estranha vestidura, de um romantismo que ou nasce distorcido pela moral, pelas regras sociais e por um falso cristianismo, ou exige do leitor que volte a ser criança e acredite na ilusão das novelas de cavalaria – como propôs, aliás, seriamente, Augusto Meyer num ensaio publicado em 1964 (no volume A chave e a máscara), chamando de “degenerados leitores” aqueles que não conseguiam olhar sem desagrado o “clima de intemperança fantasista” de O guarani.

Bons e maus resultados

No que se refere à linguagem, também não podemos pedir muito de Alencar. Se pensarmos de quais matrizes saíram seus romances, nossa primeira reação será a da indulgência: os folhetins abundavam na Corte, traduzidos ou escritos por autores nacionais, e ele se acostumou a produzir essa forma literária bem pouco exigente; além disso, uma das suas principais inspirações, François-Auguste-René, visconde de Chateaubriand, é, segundo Otto Maria Carpeaux, pleno de “eloquência ornada”.

A desenvoltura do pensamento de Lúcia, sua agilidade mental, domina a primeira parte do romance graças aos diálogos de frases breves e incisivas. E mesmo nos capítulos finais, quando nossa anti-heroína já se encontra destituída de vigor, da febre que manifestava ao se entregar a Paulo, ela ainda expressará uma lógica que, passível de ser contestada, é impecável.

O árduo trabalho de Alencar com a língua – Araripe Júnior conta que, quando jovem estudante em São Paulo, o escritor perdia horas “copiando trechos de João de Barros e Damião de Góes, decompondo os períodos monumentais destes escritores, diluindo frases, compondo de novo, buscando com parcimônia beneditina descobrir o segredo da originalidade dos seus dizeres tão pitorescos” – produziu frutos. O movimento insinuante da cortesã ganha vida não só graças à construção da frase, mas ao rumorejar que nasce da aliteração: “Ao sair, dobrou o seu talhe flexível inclinando-se vivamente para o meu lado, enquanto a mão ligeira roçava os amplos folhos da seda que rugia arrastando”. E quando o escritor faz uso equilibrado dos adjetivos, seu texto se liberta do romantismo sentimentaloide, mesmo se ele nos apresenta Lúcia na forma de um animalzinho casto: “Passei-lhe o braço pela cintura e apertei-a ao peito; eu estava sentado, ela em pé; meus lábios encontraram naturalmente o seu colo e se embeberam sequiosos na covinha que formavam nascendo os dois seios modestamente ocultos pela cambraia. Com um primeiro movimento, Lúcia cobriu-se de ardente rubor; e deixou-se ir sem a menor resistência, com um modo de tímida resignação”. Mas pode chegar a uma linguagem quase realista, como no trecho a seguir, em que vemos a personalidade da cortesã, agradavelmente pendular desde o início, explodir num paroxismo de concupiscência: “Enquanto a admirava, a sua mão ágil e sôfrega desfazia ou antes despedaçava os frágeis laços que prendiam-lhe as vestes. À mais leve resistência dobrava-se sobre si mesmo como uma cobra, e os dentes de pérola talhavam mais rápidos do que a tesoura o cadarço de seda que lhe opunha obstáculos. [...] Há mulheres gastas, máquinas de prazer que vendem, autômatos só movidos por molas de ouro. Mas Lúcia sentia; sentia sim com tal acrimônia e desespero, que o prazer a estorcia em cãibras pungentes. Seu olhar queimava; e às vezes parecia que ela ia estrangular-me nos seus braços, ou asfixiar-me com seus beijos”. Ou, ainda, esta bela descrição, em que Paulo, enciumado, quase desfaz a imagem que temos dele: “Estava excessivamente pálida, e a cor escarlate do vestido ainda lhe aumentava o desmaio; os olhos luziam com ardor febril que incomodava, e os lábios se contraíam num movimento que não era riso nem ânsia, mas uma e outra coisa. Entretanto nunca essa mulher me pareceu tão bela; e a ideia de que ela se enfeitava para outro homem irritava-me a ponto que estive de precipitar-me e espedaçar, arrancando-lhe do corpo, as galas que a cobriam”.

Em outros momentos, contudo, o escritor não consegue se livrar do ranço folhetinesco, estragando sua narrativa com adereços melosos: “O meu pensamento impregnado de desejos lascivos se depurava de repente, como o ar se depura com as brisas do mar que lavam as exalações da terra” – ou “duas lágrimas em fio, duas lágrimas longas e sentidas, como dizem que chora a corça expirando, pareciam cristalizadas sobre as faces, de tão lentas que rolavam” [grifos nossos]. Esses artifícios, essas concessões ao público da época, estragam às vezes longos trechos.

Êxtase final

Que Alencar tenha condenado seu narrador à subserviência e à timidez de caráter, e Lúcia à exacerbação da culpa, são escolhas que não podem ser perdoadas. Mas as palavras finais da cortesã negam a purificação doentia a que se entregou. Seu êxtase final é semelhante a um clímax em que a pobre vítima de si mesma implora para ser tomada não pela divindade, mas por seu submisso: “– Recebe-me... Paulo!”. Assim permanecem, ao fecharmos o livro, as duas Lúcias: a meretriz e o anjo que, coberto de preto, caminha rumo à igreja, pedindo clemência à sociedade e a Deus – mas que, por não aceitar o perdão, jamais provará o amor.

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(*) A presença de um vocabulário de forte influência portuguesa em Memórias de um sargento milícias – publicado, na forma de folhetim, três anos antes de surgir O guarani – em nada diminui a vivacidade do romance de Manuel Antônio de Almeida, demonstrando o quanto não era essencial a campanha de Alencar para dar vida a uma linguagem verdadeiramente brasileira.

abril 30, 2011

Subliteratura e vingança

Este mês, no jornal Rascunho, analiso o romance Bom Crioulo, de Adolfo Caminha. E minha conclusão é muito simples: encontrar quem elogie tal subliteratura é uma evidência de quanto a nossa episteme se encontra deteriorada, submetida à mais ordinária doxa.

setembro 30, 2010

A arte da leitura

"É preciso ler num estado de espera, como se acompanha com os olhos, na saída de uma estação ferroviária, a leva de passageiros em que se funde um amigo."

- A vida intelectual - seu espírito, suas condições, seus métodos, de Antonin-Dalmace Sertillanges (É Realizações Editora).

"Leio de tudo e, seguindo o conselho básico de Nabokov, também releio"

Colhi no sempre ótimo Não gosto de plágio esta entrevista com Jorio Dauster, um dos nossos principais tradutores. Um trechinho:

Eu tenho amor às letras. Ao contrário de Castro Alves, que num poema afirmou “eu sinto em mim o borbulhar do gênio”, nunca me subiu das entranhas a ânsia de dizer algo novo ou de forma diferente, a meu juízo a única boa razão para alguém desejar ser escritor. Sendo assim, adotei com muito orgulho o prazer vicário de trazer para o vernáculo aquilo que alguém produzira de modo notável em outro idioma – gente como Vladimir Nabokov, J.D. Salinger, Thomas Pynchon, Philip Roth e Ian McEwan, que devem figurar em qualquer seleção dos maiores das últimas décadas.

setembro 03, 2010

Recado de Borges aos críticos e escritores herméticos

Quando comecei a escrever, pensei que tudo devia ser definido pelo escritor. Dizer, por exemplo, «a lua» era estritamente proibido; era necessário encontrar um adjectivo, um epíteto para a lua. (Claro que eu estou a simplificar as coisas. Sei disso porque escrevi por diversas vezes La luna, mas isto é uma espécie de símbolo que eu fazia.) Bem, eu pensava que tudo tinha de ser definido e que não podiam ser usadas frases com fórmulas comuns. Eu nunca teria dito; fulano de tal entrou e sentou-se, porque isso era demasiado simples e demasiado fácil. Pensei que tinha de encontrar uma forma interessante de o dizer. Agora, descobri que esse tipo de coisas, em geral, é um aborrecimento para o leitor. Mas julgo que a raiz da questão reside no facto de que quando um escritor é jovem sente, de certa forma, que aquilo que vai dizer é bastante tolo ou óbvio, um lugar-comum, e por isso tenta escondê-lo sob uma ornamentação barroca; ou, se não for isso, caso ele se mostre moderno, faz o contrário: põe-se permanentemente a inventar palavras ou a referir-se a aviões, a comboios ou ao telégrafo e ao telefone porque está a fazer tudo o que pode para ser moderno. Depois, à medida que o tempo passa, sentimos que as nossas ideias, boas ou más, devem tentar passar essa ideia ou esse sentimento ou esse estado de espírito para o leitor. Se, ao mesmo tempo, estamos a tentar ser, digamos, um Sir Thomas Browne ou um Ezra Pound, então é impossível. Por isso acho que um escritor começa sempre por ser demasiado complicado – está a jogar diversas partidas em simultâneo. Quer proporcionar um determinado estado de espírito; ao mesmo tempo tem de ser contemporâneo, e se não for contemporâneo, então é um reaccionário e um clássico. Quanto ao vocabulário, a primeira coisa que um jovem escritor decide fazer, pelo menos neste país, é mostrar aos seus leitores que possui um dicionário, que conhece todos os sinónimos de uma palavra […]

Jorge Luis Borges em Entrevistas da Paris Review

(Do ótimo Pó dos Livros.)

dezembro 01, 2009

Senso comum e arte

Voltando às minhas leituras de William Hazlitt, coloco a seguir um dos bons trechos do ensaio “Por que as artes não evoluem?”, de 1814. Temo que minha tradução não seja exemplar, mas certamente permitirá aos interessados descobrir um pouco desse crítico infelizmente nunca divulgado no Brasil:

“O princípio do sufrágio universal, por mais aplicável que seja a questões de governo, que têm a ver com os sentimentos e os interesses comuns da sociedade, não é aplicável, de modo algum, aos assuntos do gosto, pois, estes, só podem julgá-los os espíritos mais refinados. A humanidade nunca pôde entender completamente os maiores esforços do gênio, em qualquer uma das artes. Há uma infinidade de belezas e verdades muito além da sua compreensão, que chegam a ser comuns no mundo porque o refinamento e a sublimidade se misturam com outras qualidades, de natureza mais óbvia e vulgar. O gosto constitui o grau mais elevado da sensibilidade, assim como a impressão que atua sobre as mentes mais refinadas, da mesma forma que o gênio é o resultado da força do sentimento e da invenção. Pode-se dizer, no entanto, que o gosto público é suscetível de uma melhora gradual, pois o povo termina fazendo justiça às obras de maior mérito. Semelhante ideia é um erro. A reputação que, ao final, e quase sempre lentamente, se concede às obras de gênio provém da autoridade, não do assentimento popular nem do senso comum do mundo.”

julho 27, 2009

De volta ao final de As Benevolentes

As questões não resolvidas sempre voltam. Por este ou aquele motivo, de vez em quando o cérebro as reapresenta ao nosso espírito. O final farsesco de As Benevolentes, de Jonathan Littell, é uma dessas interrogações para as quais busco resposta há algum tempo. Por que o escritor capaz de fazer uma obra de arte em 882 páginas escolhe destruir seu trabalho nas 14 restantes? Supor mera incompetência é uma solução pueril, fácil demais, e também incongruente. E a falta de coragem? O autor não teria sido capaz de ousar até o final? Mas se faltou ousadia, há uma causa no substrato dessa fraqueza.

Hoje, contudo, encontrei uma resposta que me satisfez. Graças ao artigo de Luiz Felipe Pondé, na Folha de S. Paulo, “Pequena sociologia do fungo”, creio que posso traçar ao menos um projeto de solução para minha dúvida.

Por que Littell destrói a weltanschauung do protagonista de seu romance, o jurista e oficial da SS Maximilian Aube? Por que Littell se recusa a afirmar a humanidade de um criminoso nazista? – Humanidade, saliente-se, construída em detalhes durante a maior parte do livro. O fato de ser judeu o impediria moralmente? Não. O problema é mais grave. No fundo, o final farsesco revela uma farsa moral.

Littell apenas repetiu o que a maioria das pessoas faz, e que Luiz Felipe Pondé analisa com mestria: transformar o livro em uma palhaçada foi a forma que o escritor encontrou de, hipocritamente, defender sua imagem de bom, justo, perfeito, incapaz de cometer qualquer mal. Littel não poderia levar até o fim o seu personagem, pois isso significaria não desculpar ou justificar um nazista, mas, como afirma Pondé, “iluminar seu parentesco com ele”. Escrever um final coerente – e grandioso como a maior parte do livro – representaria afirmar a verdade que todos negam: a de que somos, sim, capazes de fazer o mal.

Em literatura – como em toda forma de arte – não basta ter o domínio da técnica. É preciso coragem para ir além do que o senso comum prega. E Jonathan Littell, infelizmente, mostrou-se fraco e hipócrita.

junho 26, 2009

Irresistível

Sofri um acesso de incontrolável identificação ao ver a capa de Veja. A revista fala exatamente o que eu gostaria de repetir, em alto e bom som, à politicalha que comanda este país: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Foi como se o meu rosto estivesse ali, compondo a capa, encimado pelo grito de revolta que, certamente, percute na consciência de todos os que têm um mínimo de capacidade crítica: “Basta de impunidade!”.

Depois, na longa reportagem “À sombra da Constituição”, o texto enxuto, claro, preciso, é acompanhado por dezenas de declarações que, em qualquer democracia civilizada, obrigariam o presidente da República a, no mínimo, ficar de joelhos e proferir um mea-culpa. O que, é evidente, não acontecerá aqui.

Deliciosamente mordaz, a revista também me presenteou com a legenda da página 65, na qual expõe a farsa do esquerdismo e denuncia a parcialidade e a demagogia daqueles que, por muito menos, já tentaram paralisar o país: “RADICAIS CALADOS – mais de 100 000 militantes de movimentos sociais pedem a saída de FHC em 1997. Hoje, MST, CUT e UNE funcionam como braço auxiliar do governo e só promovem manifestações de apoio a Lula”.

Veja ainda me regalou com a radiografia imparcial do movimentículo paredista da USP, a resenha de Nelson Ascher sobre Hammerstein ou a Obstinação, de Hans Magnus Enzensberger, e o artigo “Empregos secretos”, de J. R. Guzzo. Só faltou, para que a leitura fosse absolutamente perfeita, um daqueles bons ensaios do Reinaldo Azevedo.

junho 20, 2009

Shakespeare, Lampedusa e Vila-Matas

Enrique Vila-Matas resenha o Shakespeare de Giuseppe Tomasi di Lampedusa no Babelia deste sábado. O julgamento de Vila-Matas sobre o encontro desses dois escritores nos conduz ao caráter atemporal da leitura; e não poderia ser diferente:

Sus [de Lampedusa] eruditas y a veces alegres líneas sobre Shakespeare no cesan de comunicarnos que la lectura puede hacernos sentir dueños del tiempo y que ya sólo por eso la pasión de leer debería ser considerada como la más envidiable actividad que hay a este lado del paraíso.

junho 15, 2009

“Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.”

Na última edição do Rascunho, escrevi sobre Os desbravadores – uma história mundial da exploração da Terra (Editora Cia. das Letras), do historiador Felipe Fernández-Armesto.

junho 12, 2009

O abismo de Baudelaire

Dentre os textos de Meu coração desnudado, de Charles Baudelaire, que mais me incomodam, estimulam e divertem está o de número LV:

No amor, como em todos os negócios humanos, o entendimento cordial resulta de um mal-entendido. Esse mal-entendido é o prazer. O homem exclama: – Ó meu anjo! A mulher arrulha: – Mamãe! mamãe! E os dois imbecis estão persuadidos de que pensam de acordo. – O abismo infranqueável, que gera a incomunicabilidade, permanece infranqueado.

Nessa brevíssima meditação, Baudelaire, como bom anti-romântico, coloca o amor entre os “negócios” humanos, despojando-o de qualquer idealização. Depois, diminui a própria possibilidade de os homens se entenderem, visto que, no fundo, todo entendimento “resulta de um mal-entendido”. A seguir, denigre a relação entre homem e mulher, definindo inclusive o prazer como um mal-entendido. Não satisfeito, segue-se o diálogo ridículo, por meio do qual ele espezinha o que ainda resta de esperança em seu leitor, para, no fim, concluir apresentando o veredicto terrível, a condenação do gênero humano à incomunicabilidade.

O julgamento é de um pessimismo atroz, realmente exagerado, chocante. Mas é inegável que, mesmo se não estivermos propensos a concordar com Baudelaire, ele nos faz refletir. Quando chegamos ao ponto final, o espinho já foi enfiado em nossa carne.

Erich Auerbach percebeu bem essa característica, chamando nossa atenção para o fato de que, na obra baudelairiana, “a relação entre amantes – ou, mais precisamente, entre os que estão ligados pela atração sexual – é representada como uma obsessão misturada ao ódio e ao desprezo, um vício que não perde nada de sua força atormentadora e degradante ao ser experimentado em plena (e indefesa) consciência”.

Aliás, o ensaio de Auerbach do qual retirei a citação acima – “As flores do mal e o sublime” (in Ensaios de literatura ocidental) é um exemplo de como alguns leitores reagem a Baudelaire, inebriados por ele “cantar em estilo elevado a ansiedade paralisante”, mas ao mesmo tempo desejando manter distância dessa literatura que, quase sempre, nega a vida. Auerbach consegue analisar a poesia de Baudelaire com isenção, mas percebemos o quanto ela o incomoda. Ele exalta o “uso simbólico do horror realista”, mas repudia a “incompreensão diletante da tradição cristã”, a “desesperança sombria”, as “tentativas absurdas e fúteis de se inebriar e de escapar”.

Creio que a maioria dos leitores guarda o mesmo sentimento em relação a Baudelaire. Ele talvez empolgue os jovens, principalmente os cheios de amargura, os depressivos, os que se consideram incompreendidos. Mas o entusiasmo exagerado não é a melhor das reações possíveis à poesia e à literatura em geral. A empolgação, na verdade, esconde quase sempre o entendimento imperfeito, superficial – e traz, implícita, a necessidade da releitura. O leitor maduro, ainda que, como Auerbach, refute o “emaranhado sem esperança” de Baudelaire, consegue ler sua obra sem preconceito, aceitando que ele deseje inocular em nossas veias o seu veneno, mas preservando a dose de crítica que nos permite fruir a perfeição estética sem, contudo, sermos capturados pelo niilismo.

Minha relação com Baudelaire é exatamente assim. Depois que o leio, um exercício sempre prazeroso, sinto-me novamente expulso do Paraíso, e olho a vida de maneira ainda menos inocente – mas nem por isso deixo de acreditar que alguma forma de diálogo é possível, que o abismo não é de todo infranqueável.

[Falo mais sobre Erich Auerbach e seu Ensaios de literatura ocidental em minha resenha – “O humanista dividido” –, publicada no jornal Rascunho.]

maio 25, 2009

Gongorismos

No Rascunho deste mês, analiso Nosso grão mais fino, novela de José Luiz Passos.

maio 20, 2009

Liberal, didático, sensato

Neoliberal, não. Liberal é um livro despretensioso – mas obrigatório. Seu autor, o jornalista Carlos Alberto Sardenberg, reuniu nesse volume textos didáticos que jamais apelam a simplismos e não abrem mão da defesa dos valores liberais. E o que poderia ser melhor em um país no qual as leis imobilizam o mercado e a livre concorrência, onde o governo conseguiu a proeza de criar uma nova ideologia, o “neoliberalismo de esquerda fisiológico”? A irônica definição não é minha, mas de Sardenberg.

Com linguagem direta, clara, o livro traz aulas que se opõem, saudavelmente, ao socialismo, ideologia tão em voga neste país, mostrando que tal bandeira – “acabada, destruída como realidade e utopia” – serve apenas à demagogia e ao populismo. Artimanhas nas quais, aliás, o partido hoje no poder se esmerou, treinando nos palanques e nos sindicatos por décadas.

Um dos melhores textos do livro, “Adam Smith vive aqui”, explica como a busca dos próprios interesses e da satisfação das necessidades pessoais pode gerar riqueza para o empreendedor e à comunidade. Sardenberg parte de um exemplo colhido nas favelas de São Paulo, onde certa moradora, sensível e inteligente, sem esperar por benesses governamentais, montou uma lan house na cozinha de sua casa. Esse tipo de história, no entanto, não agrada aos defensores da caridade feita com dinheiro público. Para eles, o Programa Bolsa Família não é uma escola de imobilismo, não é a forma cínica de garantir eleitorado fiel e cego, mas trata-se de um passo a mais na direção do socialismo tupiniquim. Sardenberg, no entanto, expressa lucidez sobre a questão e sintetiza: “Um modelo econômico que fornece educação de qualidade e gera empregos não precisa dar comida, pois fornece às pessoas meios mais eficientes e duradouros”.

Em “Quinze anos com a mesma política econômica”, o jornalista nos oferece boa retrospectiva do período FHC–Lula. Sardenberg não doura a pílula, escreve com imparcialidade, sem maniqueísmos, mostrando de que maneira um conjunto de fatores provocou a virada estratégica da economia brasileira – e como as mudanças de discurso do PT sempre obedeceram a interesses eleitoreiros.

Mas Sardenberg não escreve apenas sobre economia e política. Sua visão de uma sociedade realmente liberal, que ele expõe ao tratar dos acidentes de trânsito e da proibição da venda de bebidas alcoólicas nas rodovias, defende a liberdade de consumo, o direito individual, e, ao mesmo tempo, punições que “desabem sobre o indivíduo que desrespeitou a lei e prejudicou os outros”. Ou seja, exatamente o contrário do que temos no Brasil, onde viceja “um conjunto de arbitrariedades ineficientes”.

A escrita de Sardenberg traz o mesmo estilo que ele tem imprimido, há algumas semanas, ao Jornal das Dez, no Canal Globo News: nenhuma histrionice, nada de trejeitos exagerados, gesticulação exaltada ou bruscas modulações de voz – características, aliás, que sobram em alguns apresentadores daquele noticioso. Sardenberg, ao contrário, transpira equilíbrio, sensatez.

Sem usar subterfúgios, as teses de Neoliberal, não. Liberal desagradam, com certeza, aos esquerdistas. E exatamente por esse motivo estão imbuídas de um profundo sentido de realidade.

maio 13, 2009

Arquivo Maaravi

Minha resenha sobre Jó – romance de um homem simples, de Joseph Roth, acaba de ser publicada no nº 4 da Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos (da Universidade Federal de Minas Gerais).

Convidado pela Profª Lyslei Nascimento, editora da publicação, enviei o texto de pronto, afinal, são pouquíssimas as revistas que apresentam uma proposta editorial tão sedutora.

O nome, Maaravi, vem de Kotel haMaaravi – o Muro Ocidental ou das Lamentações, em Jerusalém. Ruína do Templo destruído pelos romanos, o muro testemunhou séculos de história, transformando-se em um arquivo da memória judaica. Ali, os fiéis inserem, nas fendas entre as pedras, pequenos pedaços de papel com pedidos e orações.

Mas deixo vocês com o texto de apresentação da revista. Ele tem uma eloqüência contagiante:

Esse arquivo de pedras é um lugar de culto e de adoração. Os judeus ortodoxos, com seus trajes e chapéus negros, movimentam o corpo e movem seus lábios em orações diante dele. Os jovens soldados israelenses fazem ali seu voto de amor à pátria. Pais e filhos renovam, ano após ano, sua aliança com o Eterno. O Templo, que sobrevive metonimicamente nessa parede, é a casa do Messias, a promessa da construção do terceiro Templo e do corpo judaico que foi disperso nas diásporas e exílios.

Tal qual o Muro Ocidental, onde os textos são inseridos nas fendas, a Arquivo Maaravi – Revista Digital de Estudos Judaicos – espera acolher trabalhos de escritores e artistas que se dedicam aos Estudos Judaicos desde o Ocidente até o Oriente.

A proposta da revista, que passa pela concepção da tradição judaica com seu léxico, procedimentos e temas, como um arquivo aberto, ou como a Biblioteca de Borges, não é aqui concebido como o acúmulo de documentos inertes de um passado perdido ou como um testemunho petrificado de uma identidade perdida.

O arquivo da cultura judaica, que aqui tomamos através da metáfora do Kotel, espera lidar com o passado como estrelas próximas, ou muito longínquas, arcaicas até, que vêm até nós através de um certo rastro luminoso, ou, com o presente e o futuro, que podem se apresentar em todo o seu fulgor através de vestígios, como queria Walter Benjamin.

Entre a lembrança e o esquecimento, o arquivo judaico não poderá, assim, ser analisado, descrito ou reinventado a partir de uma obsessão milimétrica, mas a partir de fragmentos, regiões, níveis. Composto por diferentes obras, o arquivo judaico perpassa, onipresente, livros dispersos, delineando uma rede de textos que pertencem a uma tradição de autores que se conhecem ou se ignoram, estabelecendo conexões as mais inusitadas; autores que se criticam, invalidam-se uns aos outros, plagiam-se e, ao mesmo tempo, a despeito de suas vontades, reencontram-se, às vezes sem saber, no território de papel da literatura ou no campo plástico da arte.

abril 30, 2009

Estranhos Sísifos

O prazer da leitura – mas não de qualquer leitura. Refiro-me àqueles livros em que nos reencontramos, como se estivéssemos, durante longo tempo, apartados do que é essencial para nós, sem que percebêssemos esse estado, essa condição menor. Então, por acaso, abrimos certa obra – e mal a primeira página foi encerrada, as sinapses, milhares delas, começam a espocar. Saltamos, de página a página, impulsionados pela febre. Quase um delírio, no qual nosso cérebro apenas reitera, incansável: “é isso!”, “exatamente!”, “perfeito!”. E quando, por algum inesperado motivo, nos damos conta de que avançamos dezenas de páginas sem fazer qualquer anotação, redescobrimos essa forma de amor à primeira vista, capaz de nos consumir em uma madrugada, sem que, para nosso desespero, consigamos chegar ao final do volume. Mas é somente o primeiro passo. Faz-se necessário retornar ao início, recomeçar a leitura, agora movidos pela pretensão de saborear lentamente cada uma das descobertas que nos hipnotizaram. Dissecá-las sem piedade, como se o corpo a ser estudado ainda se debatesse, preso à mesa de autópsia. É preciso, então, controlar nosso ímpeto e agir como o cientista que confere incansáveis vezes sua descoberta. A leitura da paixão, da fúria apaixonada, torna-se, assim, um exercício minucioso, um adágio – e, em nossas anotações, reformulamos a descoberta de outrem, transformando-a na verdade que, agora, nos pertence. Damos seqüência, assim, à incansável tarefa da palavra: transmutar-se a cada pensamento, a cada reflexão, conservando-se a mesma, mas desdobrando-se para dar vida a um novo estágio de consciência. Só quando esse exercício extenuante termina podemos dizer que realmente lemos, que somamos à nossa vida a experiência de alguém que se antecipou, sem saber, aos nossos pensamentos, aos nossos sonhos. Só então o ato de amor está completo. Mas, como sói ocorrer, restará sempre um engano, uma dúvida: não nos apossamos de tudo. Na verdade, grande parte do que nos empolgou ainda permanece lá, intocável, intraduzível. E se, passado algum tempo, reiniciarmos a leitura, um novo mundo se revelará. Esse é o fado dos verdadeiros leitores: somos estranhos Sísifos, condenados a um prazer infindável, devotados ao exercício que nos concede, poucas vezes, a magia da identificação.

abril 26, 2009

Euclides da Cunha: leitor de Rimbaud?

Leopoldo Bernucci já demonstrou (em A imitação dos sentidos, Edusp/University of Colorado at Boulder), ao tratar do problema da mimese na obra de Euclides da Cunha – mimese não como representação da semelhança, mas, sim, da diferença –, as relações intertextuais que Os sertões mantém com, entre outros, Victor Hugo e Domingo Sarmiento.

Sabe-se, também, da influência que teve – não só no que se refere a sugestões de leitura, mas, ainda que de maneira indireta, na própria elaboração de Os sertões – o intendente de São José do Rio Pardo, Francisco Escobar. Entre 1898 e 1901, período durante o qual Euclides viveu nessa cidade, ocupando-se da reconstrução da ponte que ruíra, os dois estabeleceram profunda relação de amizade, prolongada depois em razoável número de cartas.

Escobar foi um autodidata extremamente culto, além de bibliófilo. Se os números apresentados por Ângelo Caio Mendes Correa Jr. estão corretos, sua biblioteca, com sete mil volumes, deve ter representado um universo sem precedentes para Euclides. Há quem afirme, inclusive, que Escobar apresentou ao amigo os clássicos de Portugal, como Alexandre Herculano, por exemplo, além de inúmeros outros escritores, exercendo, assim, influência sobre o estilo do autor de Os sertões.

Pergunto-me, no entanto, que outros livros Escobar teria emprestado a Euclides. A resposta talvez possa ser encontrada na biblioteca do intendente, que, anos depois, foi prefeito de Poços de Caldas. Onde estariam esses livros? Que surpresas esses alfarrábios, que pertenceram a um homem de vasta cultura, à frente do seu tempo e do seu atrasado país, escondem? Que pistas eles poderiam oferecer sobre aqueles anos fecundos em São José do Rio Pardo, que permitiram a Euclides elaborar, dar forma definitiva a Os sertões?

Há bom tempo guardo comigo uma suspeita: Escobar apresentou Rimbaud a Euclides.

Um poema de Rimbaud, “Le dormeur du val” (“O adormecido do vale”), sempre me interessou pela semelhança que guarda em relação a um dos trechos mais belos de Os sertões, conhecido pelo título de “Higrômetros singulares”.

O poema aparece em duas primeiras edições: Reliquaire, poésies, L. Genonceaux, Paris, 1891 (prefácio de Rodolphe Darzens) e Poésies completes, L. Vanier, 1895 (prefácio de Paul Verlaine). Um desses livros faria parte da biblioteca de Francisco Escobar?

A semelhança entre os textos (que coloco abaixo) é fascinante. Em Euclides, “um velho jardim em abandono”, com uma “árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a vegetação franzina”. Em Rimbaud, na tradução de Ivo Barroso, “um recanto verde onde um regato canta / doidamente a enredar nas ervas seus pendões / De prata”.

Em Euclides, “o sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão”. Em Rimbaud, “o sol, no monte que suplanta, / Brilha: um pequeno vale a espumejar clarões”.

Se o soldado, em Os sertões, tem “os braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes...”, no poema ele apresenta a “boca aberta, fronte ao vento, / [...] estendido sobre as relvas, ao relento, branco em seu leito verde onde chovia luz”.

Euclides fala da “ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranqüilo sono, à sombra daquela árvore benfazeja”. No poema de Rimbaud, o verbo dormir surge duas vezes.

A transposição me parece clara. Euclides tirou o soldado do vale verdejante de Rimbaud e colocou-o na aridez da caatinga, concedendo-lhe um novo e mais elaborado contexto, descrevendo-o no seu estilo às vezes hiperbólico, que em nada se assemelha ao de Rimbaud.

Escobar teria importado um dos volumes? Ele acompanhava os lançamentos editoriais franceses, hábito comum entre os brasileiros cultos daquela época? Ou trata-se apenas de um tema recorrente na literatura, mera coincidência, como em vários outros casos?

Fico com a primeira hipótese. E não apenas pela semelhança entre os textos, mas pelo fato de que grande parte do que é descrito em Os sertões não pertence ao gênero histórico, mas à pura ficção.


O adormecido do vale

Era um recanto verde onde um regato canta
Doidamente a enredar nas ervas seus pendões
De prata; e onde o sol, no monte que suplanta,
Brilha: um pequeno vale a espumejar clarões.

Jovem soldado, boca aberta, fronte ao vento,
E a refrescar a nuca entre os agriões azuis,
Dorme; estendido sobre as relvas, ao relento,
Branco em seu leito verde onde chovia luz.

Os pés nos juncos, dorme. E sorri no abandono,
De uma criança que risse, enferma, no seu sono:
Tem frio, ó Natureza – aquece-o no teu leito.

Os perfumes não mais lhe fremem as narinas;
Dorme ao sol, suas mãos a repousar supinas
Sobre o corpo. E tem dois furos rubros no peito.

Outubro de 1870.
(in Poesia completa, 2ª edição revista, Editora Topbooks, 1994, tradução de Ivo Barroso)


Higrômetros singulares

[...]
Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos, fugindo à monotonia de um canhoneio frouxo de tiros espaçados e soturnos, encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colinas se dispunham circulando um vale único. Pequenos arbustos, icozeiros virentes viçando em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes, davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim em abandono. Ao lado uma árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a vegetação franzina.

O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão e protegido por ela – braços largamente abertos, face volvida para os céus – um soldado descansava.

Descansava... havia três meses.

Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha da mannlicher estrondada, o cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra, certo, derreando-se à violenta pancada que lhe sulcara a fronte, manchada de uma escara preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos, não fora percebido. Não compartira, por isto, a vala comum de menos de um côvado de fundo em que eram jogados, formando pela última vez juntos, os companheiros abatidos na batalha. O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afina uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e deixara-o ali há três meses – braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes...

E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranqüilo sono, á sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme – o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria – lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares.

[...]
(in Os sertões – Campanha de Canudos, Ateliê Editorial/Imprensa Oficial – SP/Arquivo do Estado, 2002 – edição, prefácio, cronologia, notas e índices de Leopoldo M. Bernucci)

abril 21, 2009

Onde está Shakespeare?

No último número do Rascunho, escrevo sobre o Teatro completo de Shakespeare, na tradução de Carlos Alberto da Costa Nunes, obra originalmente publicada na década de 1950 e agora reeditada pela Agir.

novembro 15, 2007

Obscurantismo


Apenas para ratificar o que publiquei ontem neste espaço, reproduzo uma nota presente na edição de hoje do jornal Folha de S. Paulo:

LITERATURA: IRÃ VETA PUBLICAÇÃO DE LIVRO DE GARCÍA MÁRQUEZ
A reedição da novela "Memórias de Minhas Putas Tristes", de Gabriel García Márquez, foi proibida pelo governo iraniano. Um funcionário do Ministério da Cultura local disse que "a publicação do livro foi um erro". O último livro de Márquez foi traduzido para o persa e lançado no Irã há três semanas. A versão traduzida substitui a palavra "prostituta" por "minha beleza".

novembro 14, 2007

Terrorismo e religião


Coloco, a seguir, um trecho do livro As religiões assassinas, de Eli Barnavi, infelizmente ainda não traduzido no Brasil. Poucas vezes encontrei tanto equilíbrio ao tratar de um tema que costuma despertar paixões radicais. Ler não só o trecho abaixo, mas o longo excerto disponível na web, nos faz entender por que os valores da civilização fundada na Velha Europa, da qual somos herdeiros, são, no mínimo, imprescindíveis:

Cuanto más envejezco, más me convenzo de que la verdadera infraestructura de las sociedades es mental – ése es el caso del Islam, o más bien de la versión cerrada, exclusivista y autocentrada del Islam que acabó por imponerse en la Edad Media. La lectura de los informes anuales del Programa de las Naciones Unidas para el Desarrollo (PNUD), redactados por intelectuales árabes, es literalmente asombrosa. Por ejemplo, nos enteramos de que, en diez siglos, el mundo árabe-musulmán ¡ha traducido menos obras extranjeras que la España de hoy en en un solo año! Censura política y religiosa, falta de curiosidad, desprecio por lo que se hace en otras partes, todo se combina para transformar a una civilización antaño brillante y dominante en un vasto gueto libremente elegido y desgajado del resto del mundo. En torno al año 1000, el árabe era la lengua científica por excelencia, hasta el punto de que el filósofo y sabio judío Maimónides decía estar persuadido de que únicamente se podía razonar en esa lengua. Hoy, prácticamente ya no se pueden enseñar las ciencias en árabe y los diplomas de las universidades del mundo musulmán no valen ni el papel en el que están impresos. Esto es lo que dice de las universidades de su país Pervez Hoodbhoy, profesor de física nuclear en la universidad Quaid-e-Azam de Islamabad, en el Global Agenda 2006, el boletín del último Foro de la economía mundial de Davos: “Las universidades públicas de Pakistán y, con alguna excepción las privadas, son ruinas intelectuales y sus diplomas carecen prácticamente de valor. Según el Consejo pakistaní para la Ciencia y la Tecnología, los pakistaníes únicamente han logrado registrar ocho patentes internacionales en cincuenta y siete años”. Claro está, Pakistán sólo es un ejemplo entre otros, y no forzosamente el peor: “Es casi imposible”, prosigue el sabio pakistaní, “encontrar un nombre musulmán en las revistas científicas. La contribución de los musulmanes a la ciencia pura y aplicada, medida en términos de descubrimientos, de publicaciones y de patentes, es insignificante. La cruda realidad es que hace siglos que la ciencia y el Islam van cada uno por su lado. En resumen, la experiencia científica musulmana consiste en una edad de oro desde el siglo IX hasta el siglo XIV, a la que sigue un largo eclipse; en un modesto renacimiento en el siglo XIX; por último, en los últimos decenios del siglo XX, en un foso aparentemente infranqueable entre Islam de un lado, ciencia y modernidad del otro. Este foso, así lo parece, no deja de acrecentarse”.