Meus gatos
Nada como ter as contas pagas, o aluguel em dia, a vasilha de comida cheia e uma vasta biblioteca. E dois humanos como empregados.
Ao levantar os olhos do livro, das linhas próximas, e
ao deixar de vê-las
para contemplar a noite perfeita:
Oh! Os sentimentos pressionados se dispersam quais
estrelas,
como a fita de um maço
de flores desfeita.
Juventude suave, e severa, árdua indecisão,
ardores e arqueamentos delicados –
Por toda a parte o desejo de corresponder e em parte
alguma a ambição;
Terra suficiente, mundo demasiado.
[Tradução de Marco Lucchesi, em Poemas à noite, Editora Topbooks.]
Há uma falsa idéia nesse poema de Rilke: a de que ele fala dos sentimentos e das sensações próprios da juventude. Talvez ele se refira apenas à juventude, mas prefiro pensar diferente. Primeiro, porque o "desejo de corresponder" e a "ambição" não me parecem antagônicos. E também por não acreditar que, quando somos jovens, a ambição inexiste. No entanto, é claro que o poeta trata de um outro tempo, e de uma cultura distante da nossa.
De qualquer maneira, o poema me agrada, pois, se ele expressa verdades típicas da juventude, então todos nós, leitores, permanecemos jovens. Não há leitor que, ao erguer os olhos do livro e contemplar a natureza, a vida ao seu redor, não sinta a tensão se diluir, seja porque descobriu dentro de si aquela certeza que reafirma o conteúdo da leitura, seja porque, desviando-se das idéias que o absorvem, ele acorda para o fato de que o pulsar da existência ultrapassa a sua angústia, subverte suas preocupações, tornando as dúvidas pequenas, quase sem importância.
Na verdade, o poema descreve essa atividade de contração e relaxamento que o ato de ler proporciona – toda ciência nasce de uma busca empreendida na intimidade, no silêncio, sendo, logo a seguir, referendada, negada ou redimensionada pelo real. Às vezes, ocorre o inverso. Mas sem o livro – seja ele o objeto onde espelhamos nossa experiência, seja ele o ponto a partir do qual repensamos o viver –, sem o livro, sem a possibilidade da comparação, da analogia, seríamos menores.
No que se refere estritamente à ficção, quantas gerações levaríamos para conhecer os vícios que Balzac nos mostra em um único romance? E quantas vezes, ao sermos apresentados a alguém, não ganha vida diante de nós um José Dias e seus superlativos? Ou até mesmo Conceição, ainda que sem as "chinelinhas da alcova"? E, pelo fato de conhecê-la, não se concretiza então a possibilidade de rompermos a lógica do conto e, astuciosamente, agirmos de maneira contrária à do imaturo Nogueira?
Poder compulsar a experiência humana, identificando-nos ou não com os personagens, as cenas e as idéias que os livros nos oferecem, permite que a vida continue sendo suficiente – e o mundo não nos esmague com seu excesso.
'[...] Da iungere dextram,
da, genitor, teque amplexu ne subtrahe nostro.'
Sic memorans, largo fletu simul ora rigabat.
Ter conatus ibi collo dare brachia circum,
ter frustra comprensa manus effugit imago,
[par levibus ventis volucrique simillima somno.]
'[...] Permite, ó pai, permite que eu aperte tua mão direita,
E não te esquives do meu abraço.'
Enquanto assim falava, regava o rosto com copiosas lágrimas.
Três vezes tentou ali cingir o pescoço (do pai) com os braços,
três vezes a imagem em vão agarrada fugiu-lhe das mãos,
[igual aos leves ventos e mui semelhante ao sono volúvel.]
Eneida, Livro VI – Virgílio (tradução de Herbert Caro)
Há mais de vinte anos, quando meu pai, depois de prolongada doença e várias cirurgias, preparava-se para uma nova operação, comecei a ter sonhos nos quais ele era a figura central.
O primeiro deles, ocorrido horas antes daquela que seria sua última intervenção cirúrgica, nasceu impregnado por pressentimentos. Encontrei meu pai em um lugar indefinido e, logo de início, me surpreendi com sua nudez. – O que o senhor está fazendo? – perguntei. E ele me respondeu, usando seu meio sorriso, que lhe retorcia delicadamente o canto direito da boca, concedendo-lhe às vezes um ar infantil, às vezes irônico: – Eu? Estou indo embora – e simplesmente me deu as costas, caminhando em direção ao nada. Permaneci atônito durante alguns segundos, mas consegui exclamar: – Mas e eu?! – Ao que ele respondeu, apenas virando um pouco o rosto: – Você? Depois a gente se encontra... – e logo a seguir acordei.
A operação estava marcada para aquela manhã e ele permanecia internado em São Paulo. Eu ainda morava em Jundiaí, com minha avó paterna, e, assim que acordei, fiz um telefonema para o hospital, sendo informado de que tudo corria bem. Horas depois, contudo, terminada a cirurgia, ele sofreu uma parada cardíaca e entrou em coma.
Seguiram-se quinze dias de visitas à UTI, com todo o desgaste emocional a que essas situações nos submetem. Quinze dias de inútil sofrimento para a família, enganada pelas falsas esperanças dos médicos, pois semanas mais tarde, um cirurgião nosso amigo, ao saber das reações mínimas que meu pai apresentava durante o coma, explicou-me claramente as diferenças entre os tipos de reflexos, mostrando-me que o quadro era, desde o primeiro momento, irreversível.
Uma semana após o enterro, quando, pouco a pouco, minha família e eu começávamos a superar a dor não só da morte, mas dos longos meses acompanhando a derrocada daquele obstinado hedonista, voltei a sonhar com ele. E agora os sonhos apresentavam estranhas características.
Não eram, digamos, sonhos clássicos, mas visitas, encontros quase palpáveis. Tenho a impressão de que ele chegava nas primeiras horas da manhã, mas não podia vê-lo. Sabia que estava lá, oculto numa espécie de limbo, separado de mim por uma zona escura, pois era possível ouvir as aspirações e expirações curtas, rápidas, ofegantes. E o mais terrível: seu cheiro – o mesmo odor azedo que, tarde após tarde, sentira ao me debruçar sobre sua cama, na UTI – recendia de maneira tão penetrante que eu começava a chorar, perdido entre o sonho e a vigília, entre a presença onírica e o contato de meu corpo com os lençóis ou o travesseiro. Ouvindo meus próprios soluços, lutando para acordar, eu me libertava por fim, mas subjugado pela angústia.
Sete dias seguidos acordei desse modo, com aquele cheiro tão presente que parecia ser possível estender a mão, transpor a sombra e tocar meu pai. Uma semana inteira ouvindo-o agonizar.
Foi no oitavo dia que tudo se resolveu, mas de uma forma ainda mais perturbadora. Preso àqueles momentos imprecisos, entre o sono e o despertar, senti que ele se aproximava novamente, pois o odor ganhava força a cada segundo. E quando previa a audição dos estertores, ouvi sua voz, límpida, apesar de cansada. Daquele espaço imaterial, ele disse pausadamente, semelhando uma antiga gravação: – Avise a todos que agora estou bem. Agora pude descansar – e o sonho nunca mais se repetiu.
Já escutei várias explicações para esses encontros – dos psicanalistas freudianos aos espiritualistas de diferentes facções –, mas nenhuma delas me importa. Eles representam minha cota da herança paterna, completada por alguns livros e certas lições de ética. Nossa separação não poderia ser diferente, precisava estar marcada por esse rito de passagem, sucessivas revivescências daquele fim sempre inaceitável, até que descansássemos: ele, tornando-se uma lembrança; eu, lentamente aprendendo a viver sem suas certezas.
Um ou dois meses mais tarde, voltei a sonhar com meu pai. Em algum ponto no teto de um túnel revestido por azulejos brancos, na posição de um observador privilegiado, eu o vi passar lá embaixo, caminhando solitário, ereto, nu, vagarosamente, mas sorrindo.
(Agradeço ao Marco Polli, que, numa conversa informal, via e-mail, me fez recordar desses sonhos.)
Dentre os sonhos recorrentes que tenho, principalmente um me coloca em estado de perplexidade logo no primeiro momento da vigília, quando retorno ao inevitável cotidiano, onde nenhuma das possibilidades do mundo onírico se realiza.
Nesse sonho, estou na entrada do porão da casa de minha bisavó paterna. A cena começa exatamente ali, repetindo os gestos que cansei de fazer durante a infância: retiro a chave dependurada no batente, coloco-a na fechadura e, com um único giro, a porta se abre. Imediatamente, sinto o cheiro adocicado de BHC, um odor úmido, e o ar levemente pegajoso que vem do ambiente escuro.
O segundo movimento é localizar, na parede à esquerda, entre a estante e o batente, o interruptor de luz. E a seguir, entrar. A lâmpada, fraca, mal ilumina as porcelanas e os vidros nas prateleiras, além dos caixotes empilhados e recobertos de pó. No entanto, o que procuro não está ali, mas no cômodo ao lado, que ainda permanece escuro.
Não sinto calor ou frio, apenas uma expectativa controlável, pois estou certo de que ele se esconde no quarto vizinho, sob a escuridão. Então penetro naquele lugar ainda mais úmido, e é difícil descobrir o interruptor, que não passa de uma delicada corrente presa à lâmpada, no centro do cômodo. A mão cega apalpa a escuridão. Por um segundo, a ansiedade transforma-se numa espécie de medo, talvez o receio de que minha busca – e o encontro certo – não se concretizem, somente pelo fato de eu não conseguir acender a luz. Mas encontro a correntinha e puxo-a – e imediatamente vejo os caixotes de livros no chão.
Sei exatamente o que venho buscar: o livro acima de todos os livros: um manual completo sobre a existência e, ao mesmo tempo, um guia para a difícil, emaranhada tarefa de viver. Tenho certeza de que está ali, aguardando-me. Não uma obra mágica, mas apenas um conjunto de páginas recoberto por duas capas envelhecidas, no qual se esconde a síntese da experiência humana.
Vasculho os caixotes lentamente, retirando os livros, um a um. Não sei o título da obra e, muito menos, seu autor. Estou certo, apenas, de que está ali. O tempo da busca dura a eternidade do sonho. Não há pressa. Sinto-me seguro naquele porão, repetindo os gestos que fiz centenas de vezes. Sei que os adultos estão na parte de cima da casa, principalmente minha bisavó, vestida no seu luto perpétuo, desde a morte prematura de meu tio-avô, mas sem nunca se abandonar à tristeza, com seu porte altivo, a redinha prendendo os cabelos, os olhinhos atentos a tudo e a língua ferina, quando se trata de falar dos políticos. Assim, trata-se apenas de não desistir. Encontrarei o livro-chave, o livro-totalidade, graças a essa busca estranha, durante a qual experimento, antecipadamente, o prazer de encontrar o que procuro, tamanha é a minha certeza.
E então, do fundo de um caixote de madeira, sob a pilha de livros inúteis, retiro aquele que me revelará o segredo de viver. Nem pesado nem leve, segurá-lo guarda o mesmo prazer que sinto ao encontrar, em um sebo, a obra há vários anos desejada. O papel marmorizado da capa é repleto de círculos pequenos cor de vinho, dispostos aleatoriamente sobre um fundo amarronzado. O cheiro de BHC torna-se ainda mais intenso quando aproximo o volume dos olhos, estou pronto a abri-lo, toco a ponta da capa com os dedos e começo o gesto de erguê-la – mas acordo.
Despertar, ver-me em meu quarto, ser arrojado para fora do sonho, sem dúvida é frustrante. Mas não há qualquer angústia. Naquele primeiro momento da vigília – ainda atônito por ter percorrido novamente as etapas conhecidas do sonho e, mais uma vez, acordado antes de abrir o volume –, tenho certeza de que outra oportunidade surgirá, de que, de alguma maneira, aquele menino permanece preso à sua vida onírica, pronto a repetir os mesmos gestos e encontrar outra vez o livro. E, quem sabe, algum dia permitir que eu leia ao menos o título, talvez a primeira linha.
Ensaísta e crítico literário do jornal Rascunho desde 2006, Rodrigo Gurgel também é professor de literatura e escrita criativa. Colaborador da Folha de S. Paulo, publicou dois livros: Esquecidos & Superestimados e Muita retórica - Pouca literatura (de Alencar a Graça Aranha). Jurado do Prêmio Jabuti de 2009 a 2012, Gurgel ganhou notoriedade em 2004, quando foi escolhido como um dos dez vencedores do Concurso de Contos “Caderno 2”, do jornal O Estado de S. Paulo, dedicado aos 450 anos da cidade de São Paulo.