dezembro 18, 2007


Meus gatos


Nada como ter as contas pagas, o aluguel em dia, a vasilha de comida cheia e uma vasta biblioteca. E dois humanos como empregados.

dezembro 04, 2007


Rubem Fonseca


Um dos exercícios mais interessantes que existem é ver nossa própria cultura - no caso, um de nossos escritores - analisada por um estrangeiro. Em sua coluna de hoje no El Boomeran(g), o ensaísta Jean-François Fogel escreve sobre Rubem Fonseca. A leitura é prazerosa, graças, em primeiro lugar, ao estilo de Fogel. Mas é igualmente saboroso ver com outros olhos um de nossos melhores autores: "A sus 82 años, el escritor brasileño Rubem Fonseca se parece a su prosa: es un hombre directo, concreto, eficiente, obsesionado por el presente, que se mueve con una vitalidad deslumbrante y la obvia conciencia de que nadie, pero nadie, se puede resistir a la sonrisa de un anciano que renunció a jubilarse de la juventud".

Mas depois de reencontrar Rubem Fonseca sob o olhar de Fogel, o exercício, para ser completo, pede que analisemos também o tratamento que parcela da mídia brasileira concede a Rubem e a vários outros dos nossos escritores.

novembro 22, 2007


O fetichista e a adúltera


Na edição do jornal Rascunho deste mês, escrevo sobre Flaubert e seu Madame Bovary:

Flaubert não estabeleceu apenas um método de trabalho. Sim, ele sabia que "todo talento de escrever não consiste senão na escolha das palavras. É a precisão que faz a força" - diz a Louise Colet, a 22 de julho de 1852. Mas não se tratou somente de disciplina. Flaubert tinha consciência das correntes que o prendiam, maiores que os seus próprios limites. Sabia que a expressão humana é claudicante, falha, imperfeita; que há um abismo separando a idéia e o discurso, a emoção e a palavra. O narrador de Madame Bovary conclui em certo trecho que "a palavra humana é como um caldeirão rachado, no qual batemos melodias próprias para fazer dançar os ursos, quando desejaríamos enternecer as estrelas". Ter a clara consciência da imperfeição, da rudeza dos meios humanos, do idioma, e ainda assim persistir, demanda mais que obediência a um método: exige obsessão, exige viver em um mórbido estado de vigilância e pesquisa, cuja primeira conseqüência é a solidão, e, logo a seguir, a visão fatal de seus semelhantes como uma horda de estúpidos e insensíveis.

novembro 15, 2007

Obscurantismo


Apenas para ratificar o que publiquei ontem neste espaço, reproduzo uma nota presente na edição de hoje do jornal Folha de S. Paulo:

LITERATURA: IRÃ VETA PUBLICAÇÃO DE LIVRO DE GARCÍA MÁRQUEZ
A reedição da novela "Memórias de Minhas Putas Tristes", de Gabriel García Márquez, foi proibida pelo governo iraniano. Um funcionário do Ministério da Cultura local disse que "a publicação do livro foi um erro". O último livro de Márquez foi traduzido para o persa e lançado no Irã há três semanas. A versão traduzida substitui a palavra "prostituta" por "minha beleza".

novembro 14, 2007

Terrorismo e religião


Coloco, a seguir, um trecho do livro As religiões assassinas, de Eli Barnavi, infelizmente ainda não traduzido no Brasil. Poucas vezes encontrei tanto equilíbrio ao tratar de um tema que costuma despertar paixões radicais. Ler não só o trecho abaixo, mas o longo excerto disponível na web, nos faz entender por que os valores da civilização fundada na Velha Europa, da qual somos herdeiros, são, no mínimo, imprescindíveis:

Cuanto más envejezco, más me convenzo de que la verdadera infraestructura de las sociedades es mental – ése es el caso del Islam, o más bien de la versión cerrada, exclusivista y autocentrada del Islam que acabó por imponerse en la Edad Media. La lectura de los informes anuales del Programa de las Naciones Unidas para el Desarrollo (PNUD), redactados por intelectuales árabes, es literalmente asombrosa. Por ejemplo, nos enteramos de que, en diez siglos, el mundo árabe-musulmán ¡ha traducido menos obras extranjeras que la España de hoy en en un solo año! Censura política y religiosa, falta de curiosidad, desprecio por lo que se hace en otras partes, todo se combina para transformar a una civilización antaño brillante y dominante en un vasto gueto libremente elegido y desgajado del resto del mundo. En torno al año 1000, el árabe era la lengua científica por excelencia, hasta el punto de que el filósofo y sabio judío Maimónides decía estar persuadido de que únicamente se podía razonar en esa lengua. Hoy, prácticamente ya no se pueden enseñar las ciencias en árabe y los diplomas de las universidades del mundo musulmán no valen ni el papel en el que están impresos. Esto es lo que dice de las universidades de su país Pervez Hoodbhoy, profesor de física nuclear en la universidad Quaid-e-Azam de Islamabad, en el Global Agenda 2006, el boletín del último Foro de la economía mundial de Davos: “Las universidades públicas de Pakistán y, con alguna excepción las privadas, son ruinas intelectuales y sus diplomas carecen prácticamente de valor. Según el Consejo pakistaní para la Ciencia y la Tecnología, los pakistaníes únicamente han logrado registrar ocho patentes internacionales en cincuenta y siete años”. Claro está, Pakistán sólo es un ejemplo entre otros, y no forzosamente el peor: “Es casi imposible”, prosigue el sabio pakistaní, “encontrar un nombre musulmán en las revistas científicas. La contribución de los musulmanes a la ciencia pura y aplicada, medida en términos de descubrimientos, de publicaciones y de patentes, es insignificante. La cruda realidad es que hace siglos que la ciencia y el Islam van cada uno por su lado. En resumen, la experiencia científica musulmana consiste en una edad de oro desde el siglo IX hasta el siglo XIV, a la que sigue un largo eclipse; en un modesto renacimiento en el siglo XIX; por último, en los últimos decenios del siglo XX, en un foso aparentemente infranqueable entre Islam de un lado, ciencia y modernidad del otro. Este foso, así lo parece, no deja de acrecentarse”.

novembro 10, 2007


Um final farsesco


Acabo de ler As Benevolentes, de Jonathan Littell. Decepcionante, para dizer o mínimo. O autor consegue destruir, nas páginas finais, um belo romance. Da página 882 em diante, até a última linha, na página 896, o castelo que ganhou o Goncourt de 2006 desmorona. A weltanschauung do jurista e oficial da SS Maximilian Aube, sua formidável personalidade, dividida entre o cinismo, a culpa, a neurose, a obediência cega, a paixão pela irmã e uma rara capacidade de auto-análise, tudo vem abaixo, num formidável e inesquecível gesto de desrespeito pelo leitor, que se vê transportado, subitamente, a uma verdadeira farsa. Assim, as quase 900 páginas tornam-se uma ardilosa mentira, um embuste. E a obra que poderia ser, como apregoaram os exaltados de sempre, um novo Guerra e paz, transforma-se numa estupidez pueril, numa pilhéria. Se há, como propôs Wayne Booth, uma "ética da ficção", ela deveria ser esfregada nas fuças de Littell. Aliás, agora percebo que 99% do que li sobre o livro na imprensa brasileira e internacional foi escrito por pessoas que não leram a obra até o fim. Ou seja, o autor é só o primeiro agente desse engodo editorial.

novembro 08, 2007


Sêneca


Argumentum pessimi turba est.

outubro 30, 2007


A cópia monótona da realidade


A convite do poeta Régis Bonvicino, escrevi para a revista Sibila uma crítica sobre o romance O Paraíso é bem bacana, de André Sant'Anna.

outubro 24, 2007


Saldo positivo


A semana, até o presente momento, oferece um saldo positivo. Por uma dessas casualidades com que a vida nos gratifica, minha mulher ganhou duas entradas para o recital do baixo Robert Holl (foto), na Sala São Paulo, nesta última segunda-feira. Fomos, é claro. E que maravilhosa voz! Apesar das canções de Schumann (sobre poemas de Heinrich Heine) e de Tchaikovsky serem belíssimas, Holl alcançou uma expressividade incrível cantando Rachmaninov, especialmente os dois últimos lieder, "Cristo ressurgiu" (versos de Merejkovsky) e "Oh, tu, meu campo semeado" (versos de Aliéksei Tólstoi). A força e o calor da voz de Holl ainda repercutem nos meus ouvidos.

Não foi menos agradável ler a crônica de João Pereira Coutinho, hoje, na Folha de S. Paulo (apenas para assinantes, infelizmente). O escritor português tem o dom de conceder vida à Ilustrada. É, sem qualquer dúvida, o melhor cronista da atualidade. O texto desta quarta-feira catapulta o eu do leitor, lança-o longe de qualquer visão derrotista. Não há melhor forma de se iniciar o dia, ainda mais quando ele está chuvoso e frio - e temos uma quantidade imensa de trabalho sobre a escrivaninha.

outubro 22, 2007


Uma história de amor - uma dilacerante antítese


Escrevo sobre a novela A fera na selva, de Henry James, na edição deste mês do jornal Rascunho. Para ler a resenha, basta clicar aqui.

outubro 11, 2007

A sabedoria de Doris Lessing




outubro 05, 2007

Um último obrigado


Na padaria, ontem cedo, soube que Toninho foi despedido. O homem que me atendeu no café-da-manhã durante os últimos cinco anos acaba de se perder na imensidão de São Paulo. Nunca mais o verei, certamente. E parece-me estranho que esse homem, sempre tão gentil, sempre atencioso, desapareça sem ao menos um último aperto de mão.

Logo cedo, no balcão do café, era Toninho quem se desdobrava, e seu nome podia ser escutado a todo o momento, em meio ao barulho das xícaras, às ordens gritadas para o chapeiro e ao atropelo dos que chegavam ali para a primeira refeição do dia, antes de pegarem o metrô.

Naqueles minutos tensos, quando a turba se amontoava em volta do balcão, fazendo seus pedidos ao mesmo tempo, dando aos tons de voz uma urgência às vezes mentirosa, ele era o único que nunca perdia a paciência. E o que me encantava na sua maneira de atender é que Toninho jamais foi servil. Havia uma leve tensão em seus gestos; possuído de uma agilidade e de uma concentração inigualáveis, ele comandava aquele espaço. Era educado sem ser submisso – qualidade rara em um empregado cuja principal tarefa é atender bem ao cliente, deixá-lo satisfeito, com a sensação de que, entre todos os que circundam a máquina de café e a vitrine de salgados, ele é o mais importante.

Observar o comportamento desse homem significava entender de que maneira alguém pode, apesar da função subalterna, manter sua dignidade, conceder aos seus menores atos certa dose de arte – com que perfeição ele lavava os copos e as xícaras; sua destreza ao preencher as comandas; e sempre, antes de me cumprimentar, tomava o cuidado de enxugar as mãos –, e assim manter-se acima da massa banal. Ser um subalterno, mas transformar seu trabalho em um refinado sistema de gestos, palavras, olhares e certezas.

Temo que ele tenha sido despedido por causa da idade, pois já passava dos quarenta. Mas se foi essa a razão, o que posso dizer, senão lastimar que, vagando por São Paulo ou remoendo suas decepções em alguma humilde casa da periferia, ele esteja impedido de ler este texto e, principalmente, de saber que suas diferentes gentilezas permanecem guardadas em minha memória – e que faço dessas lembranças uma forma de lhe dizer meu último muito obrigado.

setembro 21, 2007


A descoberta


O céu da manhã está encoberto. A primeira percepção é de que não há sol. Vejo-me, ainda criança, no quintal da casa de minha bisavó, à procura de algo. Ela, no seu imutável vestido negro, altiva, orgulhosa, pronta a educar-me nas mínimas oportunidades, me observa, de pé no alto da escada que leva à cozinha. A cena tem tantos detalhes – o tanque em desuso à direita; o canteiro circular no centro, com as roseiras; o corredor lateral que leva à entrada –, tantas recordações miúdas, observadas enquanto vejo a criança brincar, que imediatamente penso se não seria esse o melhor início para um livro de memórias. Há um único gesto surpreendente, no final: arranco, de sob a soleira da porta do porão, um ramo seco, semelhante a uma forquilha. Experimento um júbilo incontrolável, pois se trata de um tesouro, sem dúvida, cujos poderes não posso conceber. Ergo os galhos retos, compridos, pálidos e pontiagudos, balanço a descoberta no ar, pleno de satisfação – e minha bisavó sorri, não de qualquer jeito, mas tenho certeza que ela pensa: "Finalmente, ele encontrou. Agora tudo está bem". De sonhos assim, nos quais me sinto recompensado pelas matriarcas que me educaram, eu jamais deveria acordar.

setembro 19, 2007

Adriana Lisboa e Santiago Roncagliolo


Na edição deste mês do jornal Rascunho, publico duas críticas: analiso a delicada noveleta de Adriana Lisboa, Rakushisha, e o thriller Abril vermelho, de Santiago Roncagliolo; ambos boas surpresas.

Mas há outras ótimas resenhas no especial dedicado à literatura latino-americana, entre elas, "Do amor e outros demônios", de Gregório Dantas, sobre o romance O passado, de Alan Pauls, e "Ponto de harmonia", de Jonas Lopes, sobre A cidade e os cachorros e Pantaleão e as visitadoras, de Mario Vargas Llosa.

setembro 06, 2007

Luciano Pavarotti


Rendeu-se ao show business, é verdade, e transformou sua arte, muitas vezes, num arremedo de canto lírico. Mas deu o melhor de si a centenas de platéias, emocionou multidões e tornou a vida um pouco mais suportável. Sua voz tinha rara abrangência de tons, o que lhe permitiu manter um diversificadíssimo repertório. No futuro, a aura de canastrão que o mercado lhe pespegou desaparecerá - e ele terá um lugar entre os grandes.







setembro 05, 2007

Anna Bessonova


Não se trata apenas de técnica, músculos ou preparo físico. Aqui, falamos de harmonia, graciosidade, leveza, ritmo, equilíbrio, porte, elegância. Ou seja, falamos de cultura, civilização. Talvez, um dia, cheguemos perto disso. Talvez, um dia, deixemos de ser um arraial de tropeiros, um clube de escroques. Um dia, com certeza ainda muito distante.







agosto 31, 2007

Passagem


Encontro meu filho no colégio. Há várias filas de alunos no amplo salão, e estou sentado, junto com outros pais, num local onde ele não pode me ver. De longe, percebo o quanto cresceu – está quase um adulto. Dá evidentes sinais de desconforto, contudo, olhando para os lados, o que interpreto como um pedido de ajuda. Ao mesmo tempo, os alto-falantes liberam uma estranha música, angustiante, pois sua letra se refere a alunos que serão expulsos da escola. Alguns deles, perfilados, passam a receber uma camiseta verde. Devem vesti-la sobre o uniforme e dirigirem-se a uma parte fechada do salão. À medida que presencio tudo, uma certeza cresce em mim: meu filho será expulso da escola – e assistirei a um vergonhoso auto-de-fé, cujo objetivo é humilhar os punidos. Desesperado, sem saber a quem recorrer, levanto e sigo para as filas, enquanto os alto-falantes silenciam e os jovens debandam. Meu filho vem na minha direção, acenando com a camiseta, que é apenas parte do uniforme do time de futebol, para o qual ele foi convocado. Abraço-o, conto-lhe minha confusão e ele ri. Sinto um profundo alívio. Mas no instante seguinte, dois mulatos se aproximam, tratando-o com estranha intimidade e usando o jargão que, imagino, é comum a certas igrejas evangélicas. Pergunto seus nomes. Eles mal se apresentam, embaralham uma desculpa e, nitidamente, inventam o nome do Seminário onde afirmam estudar. Observo, nos olhos injetados, a hipocrisia e a mentira que nadam com todo o vigor. Logo depois se despedem, mas tenho certeza de que já catequizaram meu filho. Quero alertá-lo sobre o comportamento dos dois, mas não há tempo: ele troca de roupa ali mesmo, pois o jogo vai começar. Olho para o seu corpo nu e me surpreendo. Havia me esquecido de que ele crescera, e esperava encontrar um pênis infantil. Mas vejo o membro adulto e fico alegremente surpreso, pois essa visão me dá a certeza de que ele pensa por si mesmo e não será influenciado pelos falsos catequistas. Ele parte, então, feliz, unindo-se aos amigos.

agosto 25, 2007


Sibila


O número 12 da Revista Sibila já está disponível na web e pode ser lido, integralmente, em pdf. Dentre os vários assuntos, há um equilibrado dossiê sobre Cuba, no qual ganham voz poetas exilados e artistas (um poeta e um pintor) que ainda vivem na ilha. O interessantíssimo perfil de Raúl Castro, escrito por Idalia Morejón Arnaiz, e uma entrevista com o professor Demétrio Magnoli fecham o dossiê. Leiam um trecho do bate-pronto com Magnoli:

Sibila: O senhor acha que os intelectuais e artistas que saíram de
Cuba transformaram a oposição a Castro num lucrativo produto de
exportação e são também cúmplices das mazelas do país?

DM: Não. Acho muito fácil fazer essa acusação a pessoas que saíram
do país quando a alternativa era ficar sem poder falar. Quem ficou foi
para a cadeia, porque Cuba é um país que proíbe o pensamento. Cuba
proíbe máquina de fax, recolhe computadores, proíbe conexões com
a internet. É uma coisa de outro mundo, por isso acho bem razoável
que eles tenham resolvido falar e escrever fora de Cuba. Saíram para
poder continuar se expressando.

Mas sugiro que a visita a Sibila – não só à última edição – seja feita com calma, pois há uma diversidade extraordinária de temas. Ainda no nº 12, por exemplo, cinco poemas de Drummond lidos por ele mesmo.

Quem percorrer as seções de Sibila não pode deixar também de conhecer o trabalho de Régis Bonvicino (foto) e Alcir Pécora, que dividem a direção da revista com o poeta e crítico Charles Bernstein. De Alcir Pécora, recomendo o ensaio deliciosamente irônico "Momento crítico: meu meio século", uma lúcida visão sobre a crítica e a literatura brasileiras contemporâneas. De Bonvicino, o vasto material em seu site chega a desorientar, positivamente, o leitor. Mas apreciei ler, entre os textos voltados à crítica, "A função da poesia" e "Borges: o poético e a poesia".

Para fechar este post e o sábado, um belo poema de Régis Bonvicino:

SÉTIMO POEMA

Silêncio é forma
contar é ato
livre, imprevisto
traço de luz

ele se aquieta
contraste & vulto
que rompe súbito
em outra véspera

voz das camândulas
no livre curso
lis de petúnias,
fisionomia,

muda, da sombra,
& os avelórios
cortando os dedos,
a cada conta

para Claude

agosto 24, 2007

Quando não há retorno


Um homem caminha perdido entre as ruelas de uma cidade do Bahrein. Foi o ponto máximo ao qual ele conseguiu chegar em termos de estranheza. Ele veste uma longa túnica branca e caminha impassível entre a multidão que vocifera. Mais alto que a maioria das pessoas, ele vê as cabecinhas agitando-se por milhares de coisas banais. Não está somente acima delas, mas além: os passos lentos, o olhar que cruza o oceano de inútil azáfama, os braços e seus movimentos quase imperceptíveis. Então se lembra de Kit, a heroína de O céu que nos protege, que há muitos anos ensinou-lhe a terrível lição: "De um certo ponto em diante não há retorno; este é o ponto a ser alcançado". Em sua irremediável solidão, sabe que lhe restaram os livros e sua consciência, sua lucidez, e recorda-se do dedo de seu pai, o indicador, com o qual ele batia contra a própria testa, repetindo: – O que você tem aqui dentro, ninguém pode arrancar. E essa imagem o faz lembrar da citação tantas vezes relida, que resume a verdade capaz de lhe conceder equilíbrio: "Sempre que tiver alguma coisa no espírito, seja uma reflexão torturante, a dor pela morte de um amigo, o amor não correspondido, o orgulho ferido, o ressentimento pela falsidade de alguém que lhe devia ser grato, enfim, qualquer emoção ou qualquer idéia obcecante, basta-lhe reduzi-la a preto-e-branco, usando-a como assunto de uma história ou enfeite de um ensaio, para esquecê-la de todo. Ele é o único homem livre". O homem segue seu caminho. Não está mais no Bahrein. Pode estar em qualquer ponto da Terra. Está vivo – ainda caminha acima e além da maioria. E sabe que precisa escrever.

agosto 21, 2007


A Viagem Invernal


Há livros, músicas e filmes aos quais sempre retornamos. Nós os revisitamos, de tempos em tempos, buscando algo que nos marcou, uma verdade antes apenas intuída e que, graças àquele livro ou àquela canção, tornou-se consciente e pôde ser até mesmo verbalizada. No meu caso, semanalmente volto a escutar o conjunto de canções Die Winterreise - A Viagem Invernal, composto de 24 poemas de Wilhelm Müller, musicados por Franz Schubert. A gravação que tenho, na voz do barítono Dietrich Fischer-Dieskau, um dos artistas mais completos do século XX, me coloca em estado de predisposição à vida. Ainda que os poemas estejam impregnados de melancolia, o sentimento de contínua partida, de permanente despedida, faz com que eu recupere a consciência de estar sempre a caminho, de que as certezas, se existem, são raríssimas – e de que não há outra forma de viver com lucidez.

Dentre os lieder, "Im Dorfe" é o que mais aprecio. Cães ladram enquanto todos dormem. Agitados, eles chacoalham suas correntes sob a noite fria. Mas o viajante se nega a dormir, pois recusa a falsa esperança que os sonhos muitas vezes alimentam. Ele não aceita mais quaisquer mentiras – e exatamente por esse motivo caminha em meio à escuridão. Colocou um ponto final em todos os sonhos; não quer meias verdades ou a felicidade acalentada nas horas de inconsciência. E enquanto segue seu caminho, cujo fim desconhece, grita para que os cães ladrem sempre, cada vez mais alto, pois não aceita dormir o sono que o tornará apenas mais infeliz. Com razão, ele se considera o único homem desperto, não só em meio à noite.

A seguir, uma tradução livre do poema, feita por uma grande amiga. Mas outras traduções, em diferentes línguas, podem ser encontradas no site dedicado exclusivamente a Die Winterreise.

No povoado

Cães latem, suas correntes chacoalham,
pessoas dormem em suas camas.
Elas sonham com o muito que não têm,
encontrando algum refrigério em coisas boas e más;

E amanhã de manhã tudo terá desaparecido.
Mas até lá elas terão aproveitado o que lhes toca,
e acalentado a esperança de que o que permaneceu
ainda será encontrado sobre seus travesseiros.

Acordem-me com seus latidos, cães vigilantes!
Não me deixem encontrar repouso nessas horas de torpor.
Eu dei um fim em todos os sonhos;
por que eu deveria permanecer entre pessoas que dormem?

agosto 20, 2007

Corporações de ofício


A praia, na forma de uma enseada, cheia de pessoas. Elas parecem caminhar a esmo, cabisbaixas. Parecem estar perdidas. Não se interessam pelo mar, sequer experimentam a temperatura da água. As ondas seguem seu ritmo e as pessoas vão e voltam, desorientadas. É o fim da tarde, prestes a anoitecer. Algo me diz que há um movimento grevista sendo preparado. Logo a seguir, em outro ambiente, talvez minha casa, talvez não, um homem – e sua indefectível mecha grisalha no cabelo – anuncia na tevê que "o governo decidiu extinguir as corporações de ofício". O programa jornalístico prossegue e agora tenho certeza: estou na sala do sobrado em que passei a infância, com os mesmos móveis, a mesma televisão, a cortina atrás da qual nos escondíamos. Mas experimento uma funda estranheza, pois a expressão "corporações de ofício" parece-me completamente fora de lugar. Surge diante de mim a imagem impossível de um Marco Polo grevista, de um Lorenzo de Médici presidente da Fiesp e os pensamentos se embaralham. Súbito, percebo que tudo está errado – a praia, a notícia e o fato de eu estar ali –, tudo está fora de lugar. O estranhamento se torna pungente – e acordo.

agosto 17, 2007

A decadência da escola


Sempre me surpreendo com o fato de que a escola brasileira – não só a pública – ensine cada vez menos. Quando meus pais estavam em idade escolar, na década de 1940, nenhuma criança terminava o antigo Ginásio sem ter estudado, durante quatro anos, latim, francês e inglês, além das matérias que até hoje são aprendidas. Depois, no que se chamava Colegial, aqueles que escolhiam a área de humanas, o antigo Clássico, acrescentariam o grego às línguas – e, em alguns estabelecimentos de ensino, também o espanhol. E ninguém seguiria para a universidade sem dominar os fundamentos da filosofia (método lógico de raciocínio, visão abrangente das escolas filosóficas, estudo dos textos básicos dos grandes mestres) e sem conhecer literatura clássica (os latinos eram lidos no original). Os livros didáticos daquela época ainda podem ser encontrados nos sebos e comprovam o que afirmo.

Esse período de ouro é passado, infelizmente – um passado, aliás, que já ouvi muitos pretensos educadores tratarem com desprezo. Mas aquela escola preparou uma geração cujos frutos ainda repercutem, apesar de cada vez mais diluídos.

Em minha casa, por exemplo, além da biblioteca paterna, pela qual tínhamos profundo respeito, recebíamos aulas informais de argumentação oral. Aos domingos, meu pai me incentivava a ler os artigos de fundo e os editoriais de O Estado de S. Paulo. Em seguida, escolhendo os pontos mais polêmicos, provocava o debate, muitas vezes radicalizando de maneira proposital o seu raciocínio, com o objetivo de forçar minha refutação. Quantas vezes fiquei encurralado, sem respostas. E em raras ocasiões, ao pressentir sua derrota, ele começava a rir, pois eu conseguira fisgá-lo. Lembro-me de, ao final daquelas tardes, imaginar-me entre os peripatéticos. Quando nossas discussões terminavam, um sentimento de orgulho me reconfortava, pois sabia que algo novo e melhor fora acrescentado à minha inteligência.

Se aquelas tardes foram possíveis, se meu pai conseguiu abrir minha consciência e meu discernimento daquela forma, foi porque recebeu uma formação escolar sólida, na qual os alunos jamais eram nivelados por baixo.

Revendo meus anos escolares, percebo que a decadência do ensino estava em marcha. Dentre as línguas, estudávamos apenas inglês, e não me recordo de, na aula semanal de filosofia, ter avançado além de uma rápida história das escolas filosóficas. A própria formação dos professores era desigual. Quando o Estado encerrou, de maneira arbitrária, o 2º Grau no Colégio Romeiro Pereira – em minha cidade natal, Jundiaí-SP – e fomos forçados a migrar para outras escolas, me surpreendi com a mediocridade de alguns dos professores que encontrei no Ana Pinto Duarte Paes. Um professor de história, por exemplo, nos obrigava a decorar as apostilinhas superficiais que ele elaborava e depois distribuía em classe, tremendo e espargindo perdigotos, profundamente emocionado ao nos ensinar que os gregos inventaram o bambolê. E havia também uma professora de inglês que passava as aulas folheando o Diário Oficial e fazendo comentários sarcásticos sobre os nomes estrambóticos que encontrava, esquecendo-se de que ela mesma atendia pelo nome de Dausinéia. Suportei apenas um ano aquela palhaçada. Transferido para o Instituto Experimental de Educação, reencontrei o prazer de estudar ao conhecer pelo menos três grandes mestres: Cecy Martinho (história), Paulo Bevilácqua e Paulo Vieira (ambos de língua portuguesa).

A derrocada da escola alcançaria seu ápice, no entanto, com a "progressão continuada". Por meio dela, com a desculpa de se promover oportunidades iguais em uma sociedade injusta, premia-se a negligência e a inércia. Milhares de alunos chegam à universidade sem estarem alfabetizados, impedidos de exercer qualquer juízo crítico que vá além de decidir entre as marcas de papel higiênico num supermercado. E sem conhecer nem mesmo a borda do que a humanidade acumulou em sua história.

Ao passar a falsa idéia de que somos todos iguais, a escola equipara o aluno dedicado, e que deseja se superar, àquele que sempre será, no máximo, mediano. Infelizmente, esqueceu-se, neste país, uma verdade simples: não se adquire conhecimento sem esforço, sem auto-superação. Assim, ensina-se menos e exige-se menos – e ao final, conseguimos uma horda de analfabetos. Um recurso perfeito para melhorar as estatísticas apresentadas à ONU e ao Banco Mundial, mas que substitui a meritocracia pelo deserto da ignorância.

agosto 15, 2007

Esquecimento


Não recordar-se dos próprios sonhos é errar o caminho que nos traz do mundo onírico à vigília. Ao caminhante noturno foi recomendado que não parasse em lugar algum, não obedecesse a qualquer dos seus sentidos, muito menos a sua curiosidade, mas ele falhou, certamente. Não se trata apenas de ter perdido a informação que, refazendo-se o percurso, poderá ser reencontrada, mas de experimentar a perda sem solução, pois nenhum guia noturno o levará a repisar suas próprias pegadas, de maneira a experimentar novamente o que viveu e sentiu ao passar por aquele trecho. Não lembrar de seus sonhos – tendo certeza que sonhou – talvez seja uma espécie de autocensura, talvez uma recriminação inconsciente, e por isso mesmo inaceitável. O coma, ou melhor, o tempo vivido em uma UTI, durante o qual vagamos entre o longínquo barulho dos aparelhos e a visão entrecortada daquele mundo sem dias ou noites, assemelha-se ao esquecimento do sonhado. Ainda levará uma hora para amanhecer. Como o herói que detém apenas um quarto do mapa do tesouro, que ele estuda repetidas vezes, sem conseguir identificar o Norte ou o Leste, assim inicio o dia, certo de ter perdido o essencial, esvaziado do patrimônio que jamais recuperarei.

agosto 09, 2007


A questão do romance policial


Há um interessante diálogo correndo pela web, dedicado ao romance policial. Começou com o Leandro Oliveira apontando os aspectos que ele considera "fracos no gênero". Depois, Marco Polli, sem refutar os argumentos do Leandro, descreveu quatro pontos que, segundo ele, são características fortes desse tipo de narrativa. A seguir, Olívia Maia lembrou Todorov e Alexandre Soares Silva ofereceu uma ótima citação de G. K. Chesterton.

Decidi entrar na conversa por um simples motivo: o romance policial já me concedeu horas gratificantes de leitura. Raymond Chandler, Dashiell Hammett, P. D. James e, principalmente, George Simenon tornaram meus dias mais suportáveis, fizeram-me ver facetas inesperadas do real e do ser humano, e me ofereceram a oportunidade de estudar como um autor pode resolver os problemas que coloca para si mesmo – ao optar por determinado enredo, ao constituir uma personagem com estas ou aquelas características, etc. –, sem abdicar da preocupação de tecer sua própria voz, seu estilo, cuidando da linguagem e da trama, enfim, erguendo um pequeno universo que se sustenta por si mesmo.

No texto que dá início ao bate-papo, o Leandro aponta três problemas: 1. "São constituídos a partir de um único pilar"; 2. "a tendência de um mesmo personagem aparecer numa série de livros"; e 3. "a grande maioria dos livros policiais possuem um único foco".

Em minha opinião, inicialmente, fazem-se necessárias duas ponderações. Primeiro, acredito que os três problemas nem sempre são problemas. O fato de adquirirem a forma de um tropeço ou de uma qualidade depende do autor e das escolhas que ele faz. E, segundo, podem ser encontrados em qualquer tipo de romance. Ou seja, nenhum dos três pontos está necessariamente circunscrito ao romance policial.

Vejamos o primeiro. Há dezenas de autores que produzem suas histórias partindo de um único centro. E nem sempre falham. Aliás, inúmeros romances restringem sua trama a um único motivo condutor, e nem por isso são menores ou de má qualidade. Não oferecer subtramas nem sempre é um sinal de fraqueza. Muitos dos romances atuais, escritos em primeira pessoa, abarcam um universo restrito, e o drama se desenrola, algumas vezes, na consciência do narrador, em suas lembranças ou no que ele imagina, envolvendo um número pequeno de personagens e obrigando-os a se relacionarem principal ou exclusivamente com o narrador.

Quanto ao segundo ponto, há autores que nunca escreveram uma só linha do gênero policial, mas, ainda que não repitam os personagens, repetem os mesmíssimos narradores. Você salta de um livro a outro e o narrador está lá, com outro nome, com problemas diferentes, mas falando do mesmo jeito, utilizando as mesmas pausas, preferindo os mesmos verbos e enfocando os dramas com a mesma psicologia. Nesse caso, realmente é um defeito. Mas no que se refere aos romances policiais, a honestidade do autor em relação a seus leitores é exemplar. Quando você pega nas mãos um Simenon, sabe que as chances de se deparar com o comissário Maigret são imensas. E o autor não tenta esconder isso de você. Ao contrário, a cada livro nos mostra como Maigret é um homem de personalidade complexa, múltipla, que se repete em determinados aspectos – aliás, como todo ser humano se repete –, mas sem escamotear suas dúvidas e angústias.

Finalmente, no que se refere ao fato de os romances policiais se fixarem "em um único foco", ou seja, segundo o Leandro, se concentrarem ou no criminoso ou no detetive, essa observação também é relativa. Bons escritores podem optar por esse "único foco" e nos oferecer o mundo. E outros, alguns até mesmo geniais, não nos oferecem um foco específico, mas realizam o extremo oposto: uma narrativa que se espalha nas mais surpreendentes direções, algumas vezes sem nada concluir – uma opção que, em mãos inábeis, pode gerar um fracasso colossal.

Enfim, creio que os supostos defeitos listados pelo Leandro tornam-se qualidades nas mãos de um bom escritor, produza ele romance policial ou não. Ou podem ser defeitos, sim, mas isso independe do gênero. Talvez, se o Leandro optasse por nos mostrar exemplos, certamente concluiria que onde um autor errou, outro, ao optar pela mesma técnica narrativa, acertou em cheio.

NOTA (às 22h50 de sexta-feira, 10 de agosto) - O Babelia desta semana trata do romance policial: La novela policiaca vive un auge indiscutible. Prueba de ello son los aires de renovación que se perciben en España, el esplendor de la nueva narrativa negra francesa o la aparición de nuevos autores suecos, en la línea marcada por Maj Söjwal y Per Wahlöö o Henning Mankell. Lo negro experimenta, además, una afortunada contaminación de otros géneros con resultados muy potentes.

agosto 08, 2007


O revolucionário


Preparando-se para sair, ele reclamou do frio, enquanto vestia o casaco disforme, lembrança de sua estada na Rússia, quando o partido o obrigara a permanecer vários meses em uma cidadezinha do interior, até que o impacto do golpe militar fosse devidamente analisado e "as coisas ficassem mais claras no Brasil".

Só a tela da tevê iluminava a sala. Ele soltou um grunhido de despedida à mulher, concentrada em acompanhar o capítulo da novela, e, ainda palitando os dentes, saiu para a rua.

O encontro daquela noite não seria no partido, mas em um prédio sórdido, ao lado da rodoviária, onde o aguardavam cinco companheiros. A pauta, fácil de ser resolvida: decidiriam uma maneira eficaz de compor duas ou três alianças no diretório, de forma a desmantelar o grupo independente.

A perna esquerda doía, mas ele tinha o hábito de fazer seu esqueleto obedecê-lo – afinal, tudo era uma questão de disciplina. Com o palito, retirava os restos de comida que ficaram entre os dentes, engolindo-os depois de mastigar um pouquinho.

A reunião não o preocupava. As táticas para conter os insatisfeitos, silenciar os mais audaciosos e seduzir os que sempre estão prontos a passar para o lado mais forte compunham os melhores capítulos do manual que ele e toda a velha guarda decoraram.

Escarafunchar os dentes do fundo obrigava-o a abrir a boca de maneira estranha. Mas quando largava o palito entre os lábios, tornava-se impossível saber se ele ria com malícia ou se aquelas expressões eram somente reflexos dos movimentos de sua língua, tentando alcançar um teimoso fiapo de carne que se agarrava à obturação.

Depois de alguns quarteirões, as dores alcançaram os quadris, mas acima das agulhadas repousava, sereno, o treinamento de jamais faltar ao dever. Não falharia. Não agora, depois de viver décadas pulando de fábrica a fábrica, aliciando simpatizantes para a causa e promovendo distúrbios ou greves. Como em tantas outras vezes, assim que acendesse o pavio, sairia de cena, pronto para ser usado em uma nova missão.

É certo que, no passado, as glórias pelos distúrbios bem-sucedidos ficaram no altar dos dirigentes. Mas quando pôde, não desperdiçou a chance de derrotar aquelas lideranças, incluindo seu melhor amigo, pois "os fins justificam os meios", e traí-lo representava um mal insignificante, se comparado ao mundo que ele tinha certeza de estar construindo, onde os povos viveriam unidos sob a bandeira da igualdade, "comandados pela única classe capaz de promover a revolução", assim ditava o manual.

O muro do quartel acompanhava seus passos naquele trecho. De volta da Rússia, ficara preso ali cerca de quinze dias, o que consolidou sua fama. Mas ninguém saberá o quanto ele próprio contribuiu para que se espalhasse a notícia das torturas e das humilhações, pois, na verdade, jamais encostaram sequer um dedo em sua pele branca e flácida. Nem mesmo o interrogaram, tamanha a sua insignificância.

E ao ser libertado, encontrou a chance de substituir os que estavam presos ou mortos. Gradativamente, ascendeu na organização clandestina, protegido por um emprego medíocre no comércio, pelo ar falsamente circunspecto e pelo silêncio ardiloso que os tolos acreditavam ser um sinal de sabedoria.

Na década de 1980, quando o novo partido surgiu, a antiga escola foi relegada a segundo plano, e ele teve de galgar os mesmos degraus do passado, agora obedecendo à cartilha na qual algumas das melhores palavras de ordem foram substituídas por uma só, tristemente repetida: "democracia".

O pedacinho de carne enfim se soltou. Espremendo os olhos como um animal que acaba de sair da toca e ainda não se acostumou à luz, ele observa, parado sob o semáforo, as janelas do prédio encardido. O vermelho e o verde se alternam na calva repleta de manchas. O venerável estrategista sorri, joga fora o palito mastigado e atravessa a rua, a caminho de uma nova traição.

agosto 06, 2007


O irremediável


A criança azul está diante de mim, vestida como todos os bebês que estão prontos a deixar a maternidade. Seu rosto azul se contorce, ela resmunga, agitando o corpinho em movimentos desconexos. Olho-a demoradamente, estendida sobre um balcão de metal. Analiso o porquê do azul, se a criança respira e apresenta todos os reflexos. Ao mesmo tempo, por trás desses raciocínios técnicos, um pensamento me incomoda: a persistente comparação que faço, lembrando-me do Menino com cachimbo, de Picasso. Serei um médico? Algum tipo de enfermeiro? Ou mero curioso? Talvez, um intrometido. Os pais, de pé, aguardam do outro lado do balcão. Mas não esperam que eu libere a criança. Querem, antes, um diagnóstico. Argumento com eles, tento explicar as possíveis causas – das quais não me recordo agora –, e a cada justificativa, como se fossem médicos, eles rebatem minhas alegações. O que seria, aparentemente, uma consulta final, rotineira, torna-se uma discussão. O bebê chora, esperneia. No rosto azul, irrompe a boca aberta, vermelha, a lingüinha brilhante agitando-se como um peixe que acaba de saltar para fora do aquário. Não escuto os pais. Olho a criança e me preenche o sentimento do irremediável: terá de ser azul por toda a vida. Não há o que fazer. Sofro pelo bebê. E sinto-me derrotado. Então, acordo.

agosto 02, 2007


Diálogo com Rilke



Ao levantar os olhos do livro, das linhas próximas, e
ao deixar de vê-las
para contemplar a noite perfeita:
Oh! Os sentimentos pressionados se dispersam quais
estrelas,
como a fita de um maço
de flores desfeita.

Juventude suave, e severa, árdua indecisão,
ardores e arqueamentos delicados –
Por toda a parte o desejo de corresponder e em parte
alguma a ambição;
Terra suficiente, mundo demasiado.


[Tradução de
Marco Lucchesi, em Poemas à noite, Editora Topbooks.]


Há uma falsa idéia nesse poema de Rilke: a de que ele fala dos sentimentos e das sensações próprios da juventude. Talvez ele se refira apenas à juventude, mas prefiro pensar diferente. Primeiro, porque o "desejo de corresponder" e a "ambição" não me parecem antagônicos. E também por não acreditar que, quando somos jovens, a ambição inexiste. No entanto, é claro que o poeta trata de um outro tempo, e de uma cultura distante da nossa.

De qualquer maneira, o poema me agrada, pois, se ele expressa verdades típicas da juventude, então todos nós, leitores, permanecemos jovens. Não há leitor que, ao erguer os olhos do livro e contemplar a natureza, a vida ao seu redor, não sinta a tensão se diluir, seja porque descobriu dentro de si aquela certeza que reafirma o conteúdo da leitura, seja porque, desviando-se das idéias que o absorvem, ele acorda para o fato de que o pulsar da existência ultrapassa a sua angústia, subverte suas preocupações, tornando as dúvidas pequenas, quase sem importância.

Na verdade, o poema descreve essa atividade de contração e relaxamento que o ato de ler proporciona – toda ciência nasce de uma busca empreendida na intimidade, no silêncio, sendo, logo a seguir, referendada, negada ou redimensionada pelo real. Às vezes, ocorre o inverso. Mas sem o livro – seja ele o objeto onde espelhamos nossa experiência, seja ele o ponto a partir do qual repensamos o viver –, sem o livro, sem a possibilidade da comparação, da analogia, seríamos menores.

No que se refere estritamente à ficção, quantas gerações levaríamos para conhecer os vícios que Balzac nos mostra em um único romance? E quantas vezes, ao sermos apresentados a alguém, não ganha vida diante de nós um José Dias e seus superlativos? Ou até mesmo Conceição, ainda que sem as "chinelinhas da alcova"? E, pelo fato de conhecê-la, não se concretiza então a possibilidade de rompermos a lógica do conto e, astuciosamente, agirmos de maneira contrária à do imaturo Nogueira?

Poder compulsar a experiência humana, identificando-nos ou não com os personagens, as cenas e as idéias que os livros nos oferecem, permite que a vida continue sendo suficiente – e o mundo não nos esmague com seu excesso.

julho 25, 2007


Encontros no limbo


'[...] Da iungere dextram,
da, genitor, teque amplexu ne subtrahe nostro.'
Sic memorans, largo fletu simul ora rigabat.
Ter conatus ibi collo dare brachia circum,
ter frustra comprensa manus effugit imago,
[par levibus ventis volucrique simillima somno.]

'[...] Permite, ó pai, permite que eu aperte tua mão direita,
E não te esquives do meu abraço.'
Enquanto assim falava, regava o rosto com copiosas lágrimas.
Três vezes tentou ali cingir o pescoço (do pai) com os braços,
três vezes a imagem em vão agarrada fugiu-lhe das mãos,
[igual aos leves ventos e mui semelhante ao sono volúvel.]

Eneida, Livro VI – Virgílio (tradução de Herbert Caro)


Há mais de vinte anos, quando meu pai, depois de prolongada doença e várias cirurgias, preparava-se para uma nova operação, comecei a ter sonhos nos quais ele era a figura central.

O primeiro deles, ocorrido horas antes daquela que seria sua última intervenção cirúrgica, nasceu impregnado por pressentimentos. Encontrei meu pai em um lugar indefinido e, logo de início, me surpreendi com sua nudez. – O que o senhor está fazendo? – perguntei. E ele me respondeu, usando seu meio sorriso, que lhe retorcia delicadamente o canto direito da boca, concedendo-lhe às vezes um ar infantil, às vezes irônico: – Eu? Estou indo embora – e simplesmente me deu as costas, caminhando em direção ao nada. Permaneci atônito durante alguns segundos, mas consegui exclamar: – Mas e eu?! – Ao que ele respondeu, apenas virando um pouco o rosto: – Você? Depois a gente se encontra... – e logo a seguir acordei.

A operação estava marcada para aquela manhã e ele permanecia internado em São Paulo. Eu ainda morava em Jundiaí, com minha avó paterna, e, assim que acordei, fiz um telefonema para o hospital, sendo informado de que tudo corria bem. Horas depois, contudo, terminada a cirurgia, ele sofreu uma parada cardíaca e entrou em coma.

Seguiram-se quinze dias de visitas à UTI, com todo o desgaste emocional a que essas situações nos submetem. Quinze dias de inútil sofrimento para a família, enganada pelas falsas esperanças dos médicos, pois semanas mais tarde, um cirurgião nosso amigo, ao saber das reações mínimas que meu pai apresentava durante o coma, explicou-me claramente as diferenças entre os tipos de reflexos, mostrando-me que o quadro era, desde o primeiro momento, irreversível.

Uma semana após o enterro, quando, pouco a pouco, minha família e eu começávamos a superar a dor não só da morte, mas dos longos meses acompanhando a derrocada daquele obstinado hedonista, voltei a sonhar com ele. E agora os sonhos apresentavam estranhas características.

Não eram, digamos, sonhos clássicos, mas visitas, encontros quase palpáveis. Tenho a impressão de que ele chegava nas primeiras horas da manhã, mas não podia vê-lo. Sabia que estava lá, oculto numa espécie de limbo, separado de mim por uma zona escura, pois era possível ouvir as aspirações e expirações curtas, rápidas, ofegantes. E o mais terrível: seu cheiro – o mesmo odor azedo que, tarde após tarde, sentira ao me debruçar sobre sua cama, na UTI – recendia de maneira tão penetrante que eu começava a chorar, perdido entre o sonho e a vigília, entre a presença onírica e o contato de meu corpo com os lençóis ou o travesseiro. Ouvindo meus próprios soluços, lutando para acordar, eu me libertava por fim, mas subjugado pela angústia.

Sete dias seguidos acordei desse modo, com aquele cheiro tão presente que parecia ser possível estender a mão, transpor a sombra e tocar meu pai. Uma semana inteira ouvindo-o agonizar.

Foi no oitavo dia que tudo se resolveu, mas de uma forma ainda mais perturbadora. Preso àqueles momentos imprecisos, entre o sono e o despertar, senti que ele se aproximava novamente, pois o odor ganhava força a cada segundo. E quando previa a audição dos estertores, ouvi sua voz, límpida, apesar de cansada. Daquele espaço imaterial, ele disse pausadamente, semelhando uma antiga gravação: – Avise a todos que agora estou bem. Agora pude descansar – e o sonho nunca mais se repetiu.

Já escutei várias explicações para esses encontros – dos psicanalistas freudianos aos espiritualistas de diferentes facções –, mas nenhuma delas me importa. Eles representam minha cota da herança paterna, completada por alguns livros e certas lições de ética. Nossa separação não poderia ser diferente, precisava estar marcada por esse rito de passagem, sucessivas revivescências daquele fim sempre inaceitável, até que descansássemos: ele, tornando-se uma lembrança; eu, lentamente aprendendo a viver sem suas certezas.

Um ou dois meses mais tarde, voltei a sonhar com meu pai. Em algum ponto no teto de um túnel revestido por azulejos brancos, na posição de um observador privilegiado, eu o vi passar lá embaixo, caminhando solitário, ereto, nu, vagarosamente, mas sorrindo.

(Agradeço ao Marco Polli, que, numa conversa informal, via e-mail, me fez recordar desses sonhos.)

julho 18, 2007


A busca


Dentre os sonhos recorrentes que tenho, principalmente um me coloca em estado de perplexidade logo no primeiro momento da vigília, quando retorno ao inevitável cotidiano, onde nenhuma das possibilidades do mundo onírico se realiza.

Nesse sonho, estou na entrada do porão da casa de minha bisavó paterna. A cena começa exatamente ali, repetindo os gestos que cansei de fazer durante a infância: retiro a chave dependurada no batente, coloco-a na fechadura e, com um único giro, a porta se abre. Imediatamente, sinto o cheiro adocicado de BHC, um odor úmido, e o ar levemente pegajoso que vem do ambiente escuro.

O segundo movimento é localizar, na parede à esquerda, entre a estante e o batente, o interruptor de luz. E a seguir, entrar. A lâmpada, fraca, mal ilumina as porcelanas e os vidros nas prateleiras, além dos caixotes empilhados e recobertos de pó. No entanto, o que procuro não está ali, mas no cômodo ao lado, que ainda permanece escuro.

Não sinto calor ou frio, apenas uma expectativa controlável, pois estou certo de que ele se esconde no quarto vizinho, sob a escuridão. Então penetro naquele lugar ainda mais úmido, e é difícil descobrir o interruptor, que não passa de uma delicada corrente presa à lâmpada, no centro do cômodo. A mão cega apalpa a escuridão. Por um segundo, a ansiedade transforma-se numa espécie de medo, talvez o receio de que minha busca – e o encontro certo – não se concretizem, somente pelo fato de eu não conseguir acender a luz. Mas encontro a correntinha e puxo-a – e imediatamente vejo os caixotes de livros no chão.

Sei exatamente o que venho buscar: o livro acima de todos os livros: um manual completo sobre a existência e, ao mesmo tempo, um guia para a difícil, emaranhada tarefa de viver. Tenho certeza de que está ali, aguardando-me. Não uma obra mágica, mas apenas um conjunto de páginas recoberto por duas capas envelhecidas, no qual se esconde a síntese da experiência humana.

Vasculho os caixotes lentamente, retirando os livros, um a um. Não sei o título da obra e, muito menos, seu autor. Estou certo, apenas, de que está ali. O tempo da busca dura a eternidade do sonho. Não há pressa. Sinto-me seguro naquele porão, repetindo os gestos que fiz centenas de vezes. Sei que os adultos estão na parte de cima da casa, principalmente minha bisavó, vestida no seu luto perpétuo, desde a morte prematura de meu tio-avô, mas sem nunca se abandonar à tristeza, com seu porte altivo, a redinha prendendo os cabelos, os olhinhos atentos a tudo e a língua ferina, quando se trata de falar dos políticos. Assim, trata-se apenas de não desistir. Encontrarei o livro-chave, o livro-totalidade, graças a essa busca estranha, durante a qual experimento, antecipadamente, o prazer de encontrar o que procuro, tamanha é a minha certeza.

E então, do fundo de um caixote de madeira, sob a pilha de livros inúteis, retiro aquele que me revelará o segredo de viver. Nem pesado nem leve, segurá-lo guarda o mesmo prazer que sinto ao encontrar, em um sebo, a obra há vários anos desejada. O papel marmorizado da capa é repleto de círculos pequenos cor de vinho, dispostos aleatoriamente sobre um fundo amarronzado. O cheiro de BHC torna-se ainda mais intenso quando aproximo o volume dos olhos, estou pronto a abri-lo, toco a ponta da capa com os dedos e começo o gesto de erguê-la – mas acordo.

Despertar, ver-me em meu quarto, ser arrojado para fora do sonho, sem dúvida é frustrante. Mas não há qualquer angústia. Naquele primeiro momento da vigília – ainda atônito por ter percorrido novamente as etapas conhecidas do sonho e, mais uma vez, acordado antes de abrir o volume –, tenho certeza de que outra oportunidade surgirá, de que, de alguma maneira, aquele menino permanece preso à sua vida onírica, pronto a repetir os mesmos gestos e encontrar outra vez o livro. E, quem sabe, algum dia permitir que eu leia ao menos o título, talvez a primeira linha.

julho 06, 2007


Festa para o romance policial


Enquanto, no Brasil, acontece a Flip, na Espanha, na cidade de Gijón, realiza-se a XX Semana Negra, dedicada à celebração do romance policial. Só hoje descobri a existência desse evento, graças ao blog La cavalera bajo la piel. São vinte anos comemorando a existência do gênero literário que, para alguns, deve ser considerado como menor. De minha parte, um leitor que se inclina respeitosamente diante de Georges Simenon (foto), gostaria muito de estar lá, participando de todas as atividades. Mas tentarei acompanhar o dia-a-dia da festa, lendo o boletim diário, A Quemarropa.

julho 04, 2007


"Ningún escritor es bueno hasta que no aprende a corregir"


Acabo de ler o último número da Revista Narrativas, cuja epígrafe já é um convite à leitura: "Ningún escritor es bueno hasta que no aprende a corregir", de Enrique Vila-Matas.

A publicação, em pdf, oferece resenhas, contos, entrevistas, ensaios e informações diversas sobre o mercado editorial de língua hispânica. E procura "no cerrar espacio a nadie, ni a los nombres consagrados ni a los todavía desconocidos".

Gostei, principalmente, do ensaio "Onetti refunda Santa María: cuando ya no importe", escrito por Daniel Orizaga, no qual o autor apresenta as características voláteis da cidade imaginária de Onetti, mostrando-nos que "Santa María, como universo diegético es autoanulante, esto es, metaficcionalmente pone en duda su validez como espacio de enunciación mimética. Como hemos dejado entrever, esta posibilidad ya está desde su fundación narrativa, aunque se acentúa progresivamente".

Dentre os contos, chamou-me a atenção "Nunca aprendí a escribir", da jornalista mexicana Graciela Barrera. A história da menina que se apaixona pelas letras e decide jamais aprender a escrever, mas tornar-se apenas uma leitora, possui um final algo melancólico, mas que considero perfeito, principalmente pela idéia de unir, de maneira irremediável, o ato de ler e o corpo da narradora.

Dentre as resenhas, chamo a atenção para "Demonios familiares", na qual José María Ariño Colás analisa o romance La fortuna de Matilda Turpin (Editorial Planeta), de Álvaro Pombo.

Há muito mais em Narrativas, contudo. Vale uma leitura atenta.

julho 02, 2007


Delicada Ivanira


Ela entrou na classe usando roupas sóbrias, quase impessoais, de cores suaves, sondando cada um de nós com seus olhos castanhos, sempre iluminados. Era pequena, frágil, quebradiça, as unhas bem-feitas; e quando se apresentou, ouvimos a voz branda, leve, cuja melodia compôs, somando-se ao sorriso e às outras características, a figura daquela que, com o passar dos meses, tornou-se para mim a personificação da literatura – e com tal exagero, com tal permanência, que até hoje, passados mais de trinta anos, não vivo um único dia sem ler, escrever ou pensar, e ao mesmo tempo recordar-me dela, seqüestrando-a daquela zona cinzenta, reservada pela memória a tudo que merece ser esquecido, ou seja, a maioria dos fatos e das pessoas. Conservo-a ao meu lado, lendo comigo, falando-me sobre os escritores que me ensinou a amar, ou simplesmente acompanhando-me como uma sombra inspiradora, reconfortante.

Em meu caderno de capa verde, uma brochura nova que resistia a ser aberta, anotei a primeira aula, quando ela nos explicou a diferença entre conotação e denotação. E entre esses dois eixos, no espaço de infinitas possibilidades que se abre, cada vez maior, ela fez surgir, afastando de maneira crescente os vetores, a mais amada das ciências, a mais prazerosa das artes, e também a mais aflitiva: a literatura. Aula após aula, sem que suspeitássemos, e apesar do seu jeito terno, ela obrigava Zeus a possuir novamente Mnemósine, mas para gerar apenas Calíope, Euterpe, Melpômene e Tália. E o resultado foi esta intoxicação para a qual recuso todas as possíveis curas, foi esta biblioteca que não pára de crescer, estes livros que se amontoam pelo apartamento, esta pilha que se avoluma, vigiando-me, sobre o criado-mudo, esta compulsão que me faz saltar de um universo a outro, mas sempre em busca de mim mesmo, encontrando-me retalhado pelos mais diferentes livros, perguntando-me, atônito, como uma parte de mim pode estar entre os judeus trágicos de Bernard Malamud, outra no torpor aconchegante que Conceição destila pouco antes da Missa do Galo, outra no soldado morto – um “higrômetro singular” – e mumificado sob uma quixabeira, nas cercanias de Canudos, e também com Diego de Zama, exilado num país latino-americano incerto, com Lorde Jim, lutando silenciosa e desesperadamente para encontrar a coragem, e na fera escondida na selva de Henry James, e na pergunta encravada na imodéstia bestial de Damázio, dos Siqueiras: “fasmisgerado?... faz-me-gerado?... falmisgerado?... familhas-gerado?”.

A cada nova página, descubro-me, graças a ela, para um encontro com parte do meu íntimo: fracionado, decepado, cindido, e ainda assim lúcido, vasculhando os livros infinitos e lembrando-me dessa mulher doce, algo enigmática, caminhando silente e pensativa sob as arcadas do Colégio Romeiro Pereira, exatamente como imagino que Shikibu Murasaki deveria caminhar, envolta nos seus múltiplos quimonos, na corte do Japão do século XI, sobraçando os originais do “Genji Monogatari”.

Como a vida pôde me separar de Ivanira Dadalt? De alguém cuja influência se encontra, sob diferentes aspectos, acima até mesmo do que minha própria família me ensinou? Mas talvez seja exatamente esse o papel dos verdadeiros mestres. Eles inoculam em nós idéias de beleza, de liberdade, de poesia, e depois se afastam, pois sabem que esses princípios vingarão apenas se o terreno for fértil, conscientes de que, em seu limitado poder, fizeram o melhor.

Imagino a delicada Ivanira sentada entre seus livros, talvez folheando um daqueles volumezinhos de capa cinza, da Coleção Nossos Clássicos, que ela algumas vezes me emprestou. Talvez releia um romance de Camilo ou, quem sabe, um poema de Cesário Verde. Ela fecha o livro, ergue os olhos, levanta-se, aproxima-se da janela e conclui, sem tristeza, que nossa existência é semelhante ao soneto de Camões: passamos a vida na esperança de um só dia – servindo Labão anos a fio, desejando ardentemente Raquel, mas recebendo apenas Lia.

junho 30, 2007


Tão semelhante ao Brasil...


Durante esta última semana, realizou-se em Sevilha, Espanha, com o apoio da Editora Seix Barral e da Fundação José Manuel Lara, um Encontro de Novos Narradores.

Os comentários do jornalista José Andrés Rojo - que, entre 1997 e 2001, foi o coordenador das páginas de livros do jornal El País, passando, depois, entre 2001 e 2006, a editor de Cultura do mesmo jornal - mostram uma terrível semelhança com a realidade brasileira.

No dia 28, o mercado foi a obsessão e reinaram as banalidades:

Se habla más de cine que de literatura. No se ha hecho casi ninguna mención a los escritores españoles de generaciones anteriores (los latinoamericanos prácticamente ni existen). La política está proscrita. El mercado es una obsesión. La queja, un estribillo permanente que no debería haber tenido tanto protagonismo. Lo suyo es que ayer se hubieran enfrentado, por ejemplo, quienes defienden la literatura como entretenimiento con aquellos que le piden algo diferente. Reinaron las vaguedades.


No dia 29, finalmente, enterraram a crítica. O comentário irônico de Rojo dá bem o tom. E, enquanto leio, tenho um desagradável déjà-vu:

El viejo afán de elaborar argumentos para defender el propio gusto, la búsqueda de relaciones entre unas obras y otras más lejanas o anteriores, la exploración del contexto en el que se producen y de las referencias biográficas o generacionales de quienes las han producido, la voluntad de descubrir el motor que alimenta una pieza determinada y las estrategias formales que despliega, el complicado desafío de razonar unas preferencias y de establecer una jerarquía de valores, el arriesgar unas señales para no perderse en la selva de títulos que aparecen cada año… Cultivar, en definitiva, el espíritu crítico heredado de la Ilustración. Todo eso ya no sirve.

No sirve en un mundo donde todo vale...

junho 28, 2007


Bruno Tolentino (1940-2007)


Talvez

Vem quase todo dia
aquela hora muito lenta, aquela
oscilação da hora fria
em que a sombra amarela

do dia embobinado na procela
balança, assume a forma esguia
de um casulo, e sugere a agonia
de algum verme: antecipa-se a bela,

a futura, a perene borboleta,
e é como a eternidade
que se insinua, a esquiva silhueta

pairando como às voltas de si mesma
com um aroma de luz e de umidade:
a alma entre o nada e a lesma?

II

Algo intangível anda pelos cantos
deste lugar estreito
quando os corpos transbordam do leito
e enrolam-se nos mantos

de uma conspícua viuvez, os agapantos
dos campos desolados do perfeito...
Algo que agora não se vê direito,
se algum dia se viu, entre tantos

trapos, espectros, ângulos, promessas...
Algo invisível como a própria alma
balança-se com a calma

dos morcegos que dormem com as cabeças
apontadas de dia para o chão.
Há resquícios assim em mim. Acordarão?

(De As horas de Katharina, Editora Cia. das Letras, 1994.)

junho 26, 2007



Hermann Broch


A Editorial Igitur acaba de lançar, na Espanha, uma edição das poesias completas de Hermann Broch. À parte o fato de estarmos sempre atrasados - e não só em relação ao mercado editorial de língua hispânica -, o lançamento me permitirá ter acesso aos poemas desse escritor magnífico, de pouquíssimos leitores no Brasil, cuja principal obra, A morte de Virgílio, foi traduzida entre nós por Herbert Caro.

Em seu romance-poema, como bem o definiu Franklin de Oliveira, Broch "lida com metaproblemas, ao fazer jorrar sobre a aporia insolúvel de questões como a morte, a eternidade e a personalidade (a pessoa humana), inaudita luz, na tentativa de arrancar tais questões da condição de enigmas".

A seguir, um trecho da quarta e última parte de A morte de Virgílio, "Éter - o retorno":

A flutuante, intuitiva saudade começava a cumprir-se, convertia-se em flutuante realização. Pairando, como o garoto na proa, tendia o saber, tendia a jornada ao descanso no adejo comum, e quanto mais isso durava, quanto mais se prolongava o crescimento da noite e do barco noturno - incalculável a duração, incalculável qualquer medida, a claridade da noite impregnada de sombra, saturada de sombra! - tanto mais fugaz se tornava a voluteante figura do garoto; fugaz e mais fugaz, desnuda e mais desnuda tornava-se ela, conchegada ao clarão estelar, conchegada à obumbração, despojada da vestimenta e mais do que apenas dela, desvestido até a mais completa diafania; assim adejavam, mutuamente abraçados, o menino e a noite, oh, tão diáfanos! Ainda não e todavia já,... seria este o adro da realidade? O adro de sua terra natal, acima da qual giram todos os sóis, todas as luas, todas as estrelas, enchendo-a de esplendor?

junho 22, 2007


Miragens de Kafka


Na edição do jornal Rascunho deste mês, escrevo sobre quatro livros que analisam a vida e a obra de Franz Kafka, publicados no Brasil nos últimos meses: Kafka, de Gérard-Georges Lemaire (L&PM Editora); Kafka de Crumb, de Robert Crumb e David Zane Mairowitz (Editora Relume Dumará); K., de Roberto Calasso (Companhia das Letras); e Kafka: pró & contra, escrito por Günther Anders (Editora Cosac Naify).

junho 19, 2007


"Cuando las cosas acaban ya tienen su número y el mundo depende entonces de sus relatores, pero por poco tiempo y no enteramente, nunca se sale de la sombra del todo, los otros nunca se acaban y siempre hay alguien para quien se encierra un misterio. Ese niño no sabrá nunca lo que ha sucedido, se lo ocultarán su padre y su tía y se lo ocultaré yo mismo y no tiene importancia porque tantas cosas suceden sin que nadie se entere ni las recuerde, o todo se olvida y prescribe. Y cuán poco va quedando de cada individuo en el tiempo inútil como la nieve resbaladiza, de qué poco hay constancia, y de ese poco tanto se calla, y de lo que no se calla se recuerda después tan sólo una mínima parte, y durante poco tiempo: mientras viajamos hacia nuestra difuminación lentamente para transitar tan sólo por la espalda o revés de ese tiempo, donde uno no puede seguir pensando ni se puede seguir despidiendo: 'Adiós risas y adiós agravios. No os veré más, ni me veréis vosotros. Y adiós ardor, adiós recuerdos'."

Javier Marías - Mañana en la batalla piensa en mí

junho 14, 2007


"Narrar no consiste en copiar lo real, sino en inventarlo, en construir imágenes históricamente verosímiles de ese material privado de signo que, gracias a su transformación por medio de la construcción narrativa, podrá al fin, incorporado en una coherencia nueva, coloridamente, significar."

- Juan José Saer (1937-2005)

junho 09, 2007

Lendo o blog do Lucas Murtinho, descobri a entrevista que o escritor Antonio Fernando Borges concedeu a Pedro Sette Câmara. Faço questão de divulgar as respostas do Borges aqui, não só pelo fato de concordar com muitas das suas idéias, mas porque elas sempre instigam, provocam. Para confirmar o que digo, basta, por exemplo, ler a entrevista dele concedida ao Jonas Lopes ou o polêmico artigo "Publicar é preciso. Escrever não".

maio 17, 2007


Efêmera felicidade


Na edição deste mês do Rascunho, escrevo sobre o romance A trégua, de Mario Benedetti (foto). Um belo romance, sob vários aspectos, do qual recomendo a leitura.

maio 12, 2007

Não é um pesadelo


A situação absurda, na qual o desfecho favorável torna-se cada vez mais impossível, não é privilégio da literatura. O cotidiano está repleto de acontecimentos destituídos de sentido, verdadeiros despautérios. Talvez por essa razão as obras de Franz Kafka – escritor judeu tcheco que escrevia em alemão, falecido aos 40 anos, em 1924 – estejam publicadas em centenas de línguas: lemos nessas histórias muito do que enfrentamos em nossas vidas. São, guardadas as devidas proporções, espelhos do nosso dia-a-dia.

Eu próprio vivo uma situação kafkiana há vários anos. Moro defronte aos fundos de uma tradicional escola paulistana, o Colégio Santa Amália, cuja mantenedora é a conhecidíssima Liga das Senhoras Católicas. Quando decidi mudar-me para este apartamento, levei em consideração a proximidade do metrô, a padaria da esquina, o relativo silêncio do prédio – habitado por uma maioria de idosos – e, claro, os valores do aluguel e do condomínio, que me pareceram baixos, se comparados aos preços de mercado. Lembro-me de, em minha primeira visita, ter observado as crianças correndo e gritando no pátio e nas quadras, mas considerei a cena e o barulho perfeitamente aceitáveis. Contudo, antes de assinar o contrato, deveria ter me lembrado daquele sábio provérbio popular: “O barato sai caro”.

Não era à toa que o apartamento estava sem inquilinos há anos. O barulho produzido pela escola vai muito além dos gritos infantis durante os intervalos. As atividades cívicas, as festas, as gincanas, os campeonatos – tudo transcorre sob a minha janela. Às quintas-feiras, pontualmente às 7 horas, canta-se o hino nacional. Ou melhor, toca-se o hino, numa gravação que deve ter um coral de mil vozes, no último volume, enquanto as caixas acústicas da quadra repercutem a música por todo o quarteirão. Trata-se de um amanhecer forçadamente cívico, que me transforma num patriota mal-humorado. A saída dos alunos – no final dos períodos da manhã e da tarde – é comandada por funcionários que, no portão, usando um microfone, avisam as crianças, uma a uma, sobre a chegada dos pais. Assim, diariamente, sou obrigado a acompanhar duas fastidiosas ladainhas, declamadas pelas vozes enfadonhas dos funcionários e repercutidas pelas mesmas caixas acústicas. Há também a campainha estridente, que marca, a cada 40 minutos, o final da aula, inclusive no período noturno e nos finais de semana, pois nunca é desligada. Há as torcidas organizadas durante os campeonatos, com suas cornetas e seus gritos de guerra. E os discursos monótonos da diretora, as orientações do professor de educação física, as festinhas de final de ano, as formaturas, os ensaios de quadrilha para as datas juninas... Enfim, a escola vive dentro do meu apartamento. Ou melhor: vibra no interior do meu cérebro.

No entanto, acreditem, sou um homem magnânimo. Compreendo que vivemos em um país subdesenvolvido, onde os princípios da cidadania e do respeito aos direitos em geral inexistem. Se não estivesse no Brasil, mas em um país no qual as pessoas se preocupam em não incomodar a vida alheia, esse tipo de problema já estaria solucionado.

Minha capacidade de ser indulgente termina, entretanto, quando, em pleno sábado, às nove da manhã, o amplificador é ligado e um funcionário irresponsável passa meia hora fazendo testes de som e provocando uma intermitente microfonia. E me revolto ao telefonar para a escola e ser atendido por um rapaz muito despachado, que ri da minha reclamação. E sinto nascer em meu peito uma fúria desagradável ao descobrir, em certo domingo, logo cedo, que a quadra foi cedida para um grupo religioso e serei forçado a participar, durante todo o dia, de um culto maçante, ouvindo cânticos que nada me dizem e o longo sermão de um padre cuja melhor característica está longe de ser a inteligência.

Não, não é um pesadelo nem um conto de Kafka, mas apenas o desvelo da Liga das Senhoras Católicas com a educação brasileira – acompanhado de um estranho menosprezo pelos vizinhos da escola.

(Crônica publicada na edição de 20 de abril de 2007 do jornal Bom Dia Jundiaí.)

maio 11, 2007


Blanca Varela


Vencedora do Prêmio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana, a poeta peruana Blanca Varela (foto) talvez nem chegue a ter consciência de que foi a ganhadora, pois, infelizmente, sofreu um acidente vascular cerebral há alguns meses. Blanca recebeu, em 2001, o Prêmio Octavio Paz de Poesia e Ensaio, e, em 2006, o Prêmio Cidade de Granada. Abaixo, três de seus poemas:

ASÍ SEA

El día queda atrás,
apenas consumido y ya inútil.
Comienza la gran luz,
todas las puertas ceden ante un hombre
dormido,
el tiempo es un árbol que no cesa de crecer.

El tiempo,
la gran puerta entreabierta,
el astro que ciega.

No es con los ojos que se ve nacer
esa gota de luz que será,
que fue un día.

Canta abeja, sin prisa,
recorre el laberinto iluminado,
de fiesta.

Respira y canta.
Donde todo se termina abre las alas.
Eres el sol,
el aguijón del alba,
el mar que besa las montañas,
la claridad total,
el sueño.


EN LO MÁS NEGRO DEL VERANO

El agua de tu rostro
en un rincón del jardín,
el más oscuro del verano,
canta como la luna.

Fantasma.
Terrible a mediodía.
A la altura de los lirios
la muerte sonríe.
Sobre una pequeñísima charca,
ojo de dios,
un insecto flota bocarriba.
La miel silba en su vientre
abierto al dedo del estío.

Todo canta a la altura de tu rostro
suspendido como una luz eterna
entre la noche y la noche.

Canta el pantano,
arden los árboles,
no hay distancia,
no hay tiempo.

El verano trae lo perdido,
el mundo es esta calle de fuego
donde todas las rosas caen y vuelven a nacer,
donde los cuerpos se consumen
enlazados para siempre
en lo más negro del verano.

En un rincón del jardín
bajo una piedra canta el verano.
En lo más negro,
en lo más ciego y blanco,
donde todas las rosas caen,
allí flota tu rostro,
fantasma,
terrible a mediodía.


ESCENA FINAL

he dejado la puerta entreabierta
soy un animal que no se resigna a morir

a eternidad es la oscura bisagra que cede
un pequeño ruido en la noche de la carne

soy la isla que avanza sostenida por la muerte
o una ciudad ferozmente cercada por la vida

o tal vez no soy nada
sólo el insomnio y la brillante indiferencia de los astros

desierto destino
inexorable el sol de los vivos se levanta
reconozco esa puerta
no hay otra

hielo primaveral
y una espina de sangre
en el ojo de la rosa.

maio 08, 2007


Bungaku!


Aceitei, com prazer, o convite para participar de um blog - Bungaku! - dedicado à literatura do Japão. O espaço foi idéia do Prof. Dr. Tsuyoshi Takamatsu e de sua aluna, Sara F. Costa, ambos do Centro de Estudos Orientais da Universidade do Minho, em Portugal.

Minha primeira contribuição foi uma resenha sobre o romance "Adeus, Tsugumi", da escritora Banana Yoshimoto, que ainda não foi lançado no Brasil.

O blog, que dá os primeiros passos, oferece vários artigos interessantes, além de links inusitados, verdadeiras surpresas. Vale conferir.

abril 27, 2007


Adeus, maestro


As seis suites de Bach para cello, interpretadas por Mstislav Rostropovich (foto), permanecerão como um dos recursos que utilizo para amenizar a dor, o desapontamento, as angústias. Para iluminar os dias escuros e tristes. Infelizmente falecido hoje, mais que um violoncelista genial, Rostropovich foi um verdadeiro humanista.

abril 26, 2007


O silêncio impossível


Depois de ler Zama, um dos romances que mais me impressionaram nos últimos anos, li, também do argentino Antonio Di Benedetto (foto), O silencieiro, sobre o qual escrevi na edição deste mês do jornal Rascunho.

Um trecho de minha resenha: "A cidade realmente conspira contra o homem. As derivações da tecnologia fugiram, há muito tempo, do nosso controle. Entre a elaboração da ciência e os resultados que ela provoca - em termos de técnicas, instrumentos, modos de vida e variações de comportamento -, existe um abismo de irracionalidade, diante do qual o narrador de O silencieiro se diz um mártir, 'mártir da pretensão de viver minha vida e não a vida alheia, a vida imposta'."

abril 14, 2007

Pernetas


A manhã prometia o de sempre: caminhar até o metrô, ser prensado pela massa de suor, descer na estação, enfrentar duas filas para transpor as escadas rolantes, andar três quarteirões, fechar-se no escritório e deixar que o tempo passasse entre uma assinatura e outra.

Do lado de fora do apartamento – banho tomado, barba feita, terno e gravata impecáveis, camisa branquíssima, sapatos engraxados e cabelo emplastrado de brilhantina –, a chave não obedecia. As ranhuras não encontravam resistência na entrada, mas a haste se negava a girar. Colocou a pasta no chão e tentou novamente. Nada. Abriu e fechou a porta, usou de suavidade, assoprou na fechadura – em vão. Entrou, foi até a escrivaninha e trouxe de lá uma chave sobressalente. Nem sinal de girar. Bateu a porta. Não era possível. Telefonaria para um chaveiro? Seria preciso faltar da repartição? Andou pra lá e pra cá, tomou um copo d’água, assobiou a Marselhesa e resolveu insistir. Primeiro, do lado de dentro: funcionava. Depois, do lado de fora, com cuidado, sem tremer. Girou como sempre, enfim. Fez um novo teste, pois não queria surpresas na volta: perfeito.

Pensava que o contratempo iria complicar tudo. Mas ao chegar à estação, encontrou alguns gatos pingados, nada mais. Olhando o relógio, viu que não estava tão atrasado. Na plataforma, uma dúzia de pessoas nem um pouco afobadas. O trem foi parando e as janelas mostravam os interiores quase vazios. As portas se abriram, ele entrou, e apenas cinco cabeças viraram em sua direção. Se vinte minutos de diferença podiam mudar as coisas assim, o ideal seria atrasar-se todos os dias... Foi quando um dos passageiros se levantou e, apoiando-se na muleta e nos bancos vazios, veio sentar na sua frente. O homem tinha apenas uma perna. No lugar da outra, o pano dobrado e preso com alfinetes. Era moreno, semblante de índio, cabelos lisos e negros mal divididos do lado esquerdo. Olhava-o, inquiridor. O trem corria, rompendo a escuridão, e o perneta com os olhos nele. Mudou de lugar. Então se deu conta: todos os cinco tinham apenas uma perna. Todos usavam muletas. Todos o observavam, olhos fixos nas suas duas pernas, ou melhor, naquela segunda perna errada, fora de lugar, fora de propósito. Sentiu o suor escorrer pela nuca e, lentamente, encharcar o colarinho. O trem corria, e ele não tinha certeza de quantas estações faltavam. Mas o condutor anunciou a próxima parada: a sua. Pôs-se de pé, tenso, e aguardou, aguardou infinitamente, enquanto o olhavam. Assim que as portas abriram, correu como um doido, cruzou as escadas rolantes em poucos segundos, até chegar à rua, onde respirou fundo, seguro.

Ninguém percebeu o atraso. Quando o expediente se aproximava do final, acordou para o fato de que a secretária não o procurara nem uma vez. Abriu a porta devagar e olhou pela fresta: a moça estava sentada na mesinha, os olhos perdidos na parede, cantarolando. Fechou e deu voltas pela sala, preocupado. O que acontecia? A chave, os pernetas, agora isto. Um novo decreto que ele desconhecia? Fora exonerado e o superior aguardava a hora propícia para avisá-lo?

Decidiu voltar de táxi. Os engarrafamentos de costume, o calor no carro sem ar-refrigerado. Entrou no prédio e pegou o elevador. Rezando, enfiou a chave. Quando foi girá-la, a porta se abriu de repente e, sob a luz do hall, deparou-se com uma velhinha. Olharam-se sem nada entender, e ele estava a um passo de agredi-la por invadir seu apartamento, quando viu o número na porta: 71. Um misto de confusão e serenidade o preencheu. Sorrindo, sem graça, pediu desculpas e usou as escadas para subir ao oitavo andar. Relaxado, pronto a concluir o dia, enfiou a chave na fechadura. Mas o tambor não girava. Insistiu, forçou a porta, tentou novamente: nada. Sentou-se no chão, junto à entrada, esperando o mesmo milagre da manhã. Então escutou um barulho. Colou o ouvido na porta. Um arrastar de pé e um baque seco. De novo. E mais uma vez. Alguém caminhava lá dentro. Alguém com uma muleta.

(Crônica publicada na edição de 6 de abril de 2007 do jornal Bom Dia Jundiaí.)

abril 02, 2007

Tempo rápido e tempo lento


Elenir Eller é uma educadora de Jundiaí que decidiu começar vida nova no interior de Pernambuco, nas proximidades de um lugar chamado São José. Pode ser São José do Egito, São José da Coroa Grande ou São José do Belmonte, todos municípios de Pernambuco, mas, com sinceridade, não faço a menor idéia de onde ela está. Mas não importa, ao menos para esta crônica.

Na semana passada, trocando mensagens via Internet com Elenir, ela me contou que “São José fica pertinho daqui – meia hora de carro. Mas no carro de frete... põe uma hora ou mais nisso. Depois que o motorista pega você em casa, você tem de estar disposto a fazer um ‘tour’ pela cidade para pegar mais passageiros. Conclusão: ficamos rodando quase meia hora, passando, às vezes, duas ou três vezes pela mesma rua, pois um passageiro indica outros que estão aguardando o carro em casa. [...] A paisagem na estrada é linda, mas tem de estar relax, porque o carro vai parar um monte de vezes para entrada de novos passageiros e descida de outros, que apeiam pelo caminho”.

Depois de ler, fiquei pensando em alguém que, acostumado à correria de São Paulo, se encontrasse subitamente num lugar como o que ela descreve, onde a vida segue em ritmo lento e o futuro – próximo ou distante – pode esperar. Todas as possíveis reações a tal mudança desfilavam diante de mim e nenhuma delas excluía algum tipo de choque.

Lembrei-me, então, do livro que li há vários anos, escrito pelo geógrafo Milton Santos – infelizmente falecido em 2001 –, intitulado “Técnica – Espaço – Tempo” (Editora Hucitec). Para quem não conhece o trabalho de Milton, talvez baste dizer que, dentre outras honrarias, em 1994 ele recebeu o Prêmio Vautrin Lud, o Nobel da geografia.

Em um dos textos que compõem o volume, Milton fala sobre “o tempo das metrópoles”. Ele tem uma visão peculiar das grandes cidades, que considera como “sistemas abertos e complexos, ricos de instabilidade e contingência”. E chega mesmo a ser otimista em relação aos aglomerados urbanos: “Quanto maior a cidade, mais numeroso e significativo o movimento, mais vasta e densa a co-presença e também maiores as lições e o aprendizado”. Milton expõe, no entanto, a dicotomia existente nesses espaços, dizendo que se existem “áreas luminosas, constituídas ao sabor da modernidade”, estas se “justapõem, superpõem e contrapõem ao resto da cidade, onde vivem os pobres”. Da mesma forma, se nas primeiras regiões o tempo é célere e a velocidade é glorificada, nas últimas, onde o espaço possui uma outra forma de racionalidade, o tempo é lento.

Mas a conclusão de Milton não me satisfaz. Para o geógrafo, quem, nos centros urbanos, tem mobilidade e pode comungar com as imagens e luzes pré-fabricadas, acaba por se perder, enquanto que os pobres, os homens lentos, “para quem essas imagens são miragens”, não podem se encantar por muito tempo com a falsa realidade e acabam, portanto, “descobrindo as fabulações”. Assim, o espaço “inorgânico”, no qual o tempo é lento, seria “um aliado da ação, a começar pela ação de pensar”.

Em minha opinião, as idéias de Milton, especificamente nos pontos acima, chegam a ser simplistas. É como se ele idealizasse a pobreza. Mas ser pobre, viver em regiões nas quais o tempo é lento – semelhantes àquela que Elenir descreve em sua mensagem –, jamais foi ou será garantia de uma conscientização maior em relação à realidade ou de um senso crítico aprimorado.

No caso de São Paulo, a verdade se insurge contra as esperançosas palavras de Milton, pois estamos narcotizados pelas miragens, entorpecidos pela velocidade. A maioria – sem diferença de classe, etnia, religião ou bairro – caminha à noite, na volta do trabalho, socada nos ônibus ou protegida dentro de carros blindados, ruminando o cansaço, o estresse e a frustração. Mantemos os olhos colados nos outdoors como se adorássemos totens luminosos – e chegamos a nos curvar, num triste alheamento, às imagens dos únicos deuses que restaram: o consumo e a futilidade.

(Crônica publicada na edição de 30 de março de 2007 do jornal Bom Dia Jundiaí.)