agosto 06, 2007


O irremediável


A criança azul está diante de mim, vestida como todos os bebês que estão prontos a deixar a maternidade. Seu rosto azul se contorce, ela resmunga, agitando o corpinho em movimentos desconexos. Olho-a demoradamente, estendida sobre um balcão de metal. Analiso o porquê do azul, se a criança respira e apresenta todos os reflexos. Ao mesmo tempo, por trás desses raciocínios técnicos, um pensamento me incomoda: a persistente comparação que faço, lembrando-me do Menino com cachimbo, de Picasso. Serei um médico? Algum tipo de enfermeiro? Ou mero curioso? Talvez, um intrometido. Os pais, de pé, aguardam do outro lado do balcão. Mas não esperam que eu libere a criança. Querem, antes, um diagnóstico. Argumento com eles, tento explicar as possíveis causas – das quais não me recordo agora –, e a cada justificativa, como se fossem médicos, eles rebatem minhas alegações. O que seria, aparentemente, uma consulta final, rotineira, torna-se uma discussão. O bebê chora, esperneia. No rosto azul, irrompe a boca aberta, vermelha, a lingüinha brilhante agitando-se como um peixe que acaba de saltar para fora do aquário. Não escuto os pais. Olho a criança e me preenche o sentimento do irremediável: terá de ser azul por toda a vida. Não há o que fazer. Sofro pelo bebê. E sinto-me derrotado. Então, acordo.

2 comentários:

Lucía disse...

Gostei muito Rodrigo. Os teus sonhos sâo sempre inquietantes.
Um abraço.

digo disse...

Lucia: é sempre bom ter você por aqui. Pelo jeito, os estudos de português vão muito bem!