novembro 20, 2008

Limites da web - reflexões de um editor


Fui convidado a participar do Encontro Nacional de Revistas Culturais Independentes, realizado no SESC-SP, na Avenida Paulista, entre 5 e 7 de setembro.

Minha fala, enquanto editor do suplemento de literatura Palavra, do Le Monde Diplomatique (edição virtual), fez parte da Mesa que tratou do tema “A emergência das publicações culturais na internet – Quais as perspectivas para o debate cultural propiciadas pelas novas tecnologias? As novas mídias sugerem a criação de novos conteúdos ou interferem na concepção da publicação?”.

A seguir, transcrevo, com pequenas alterações, o que falei:

– Estamos apegados às indiscutíveis qualidades da web (velocidade de disseminação da mensagem e democratização da divulgação e do acesso às informações), mas falamos pouco ou nos esquecemos das dificuldades, dos limites.

Há um endeusamento da web, atualmente, como se ela pudesse ser a panacéia para as deficiências de difusão do conhecimento que enfrentamos no Brasil. Como se a web pudesse, de maneira mágica, solucionar, por exemplo, a exclusão social que nasce do analfabetismo (e também do chamado analfabetismo funcional). Como se o enorme volume de informações lançado diariamente na web não obedecesse à lógica da própria indústria editorial, ou seja, a de que grande parte do que é publicado não passa de lixo e será esquecido dentro de pouco tempo. A web não está isenta dos males da indústria cultural, mas, ao contrário, faz parte dela.

Assim, se a democratização representada pela web oferece ganhos, também provoca malefícios. O acúmulo de informações literalmente erradas, por exemplo, mais confunde do que esclarece. E esse caos se agiganta a cada dia, ideologizado, manipulado, disseminando mentiras.

Mas há outros problemas, ligados não só à web, mas também ao suporte, ao computador.

Sob determinado ponto de vista, a leitura na tela do computador é um retrocesso. O que fazemos na vertical, os leitores da Antiguidade faziam na horizontal.

Lembremos: as folhas de papiro eram coladas pelas extremidades umas às outras, formando longas fitas. Algumas, pelo que se sabe, de até 18 metros de comprimento, depois enroladas em torno de um bastonete, chamado umbilicus, formando rolos.

O mesmo ocorreu no caso do pergaminho. Enquanto a escrita era feita apenas no reto, ou seja, na primeira face do pergaminho, as folhas também eram coladas e enroladas, de maneira a construir o volumen. Só quando se percebeu que a consistência do pergaminho permitia que ele fosse utilizado dos dois lados é que se criou o códex, que se aproxima da aparência dos nossos livros: as folhas passaram a ser reunidas pelo dorso e recobertas com uma capa.

Passamos, assim, ao problema da legibilidade. Uma questão aparentemente técnica e sem importância, mas crucial para aqueles que não se preocupam apenas com a mera divulgação de informações; para aqueles editores preocupados com formas de se garantir a qualidade da leitura dessas informações.

Em nome da legibilidade, já vi manuais defendendo que os textos da web devem ser curtos, objetivos – na verdade, aproximando-se mais de uma peça publicitária do que de um artigo ou de um ensaio.

Além disso, há outras dificuldades, no que se refere, por exemplo, às consultas dos textos. E essas dificuldades vão muito além das formas de utilização do computador...

[Inclusive os computadores mais leves são desconfortáveis – e os novos modelos, que pretendem ser mais práticos, oferecem telas pequenas demais. Uma solução, em termos de suporte, pode ser o renascimento do e-reader, como o Kindle, da Amazon, e vários outros modelos, recentemente apresentados na Feira do Livro de Frankfurt. Eles podem ser mais cômodos, não só em termos de manuseio, mas também de luminosidade da tela, tamanho da fonte, etc.]

Para não descer a minúcias, não falarei aqui, por exemplo, das questões técnicas que envolvem o uso de fontes sem serifa, um hábito comum na web – e que, comprovadamente, dificulta a leitura.

Uma preocupação – que não angustia certamente o leitor comum, mas que consegue tirar o sono deste editor – é a necessidade de criarmos índices analíticos em nossas publicações, e não apenas sumários. Podemos fazer um índice de links, é certo, mas como garantir que determinado link nos remeta exatamente ao trecho que desejamos ler – e não à página inteira do artigo ou ao trecho da página que cabe na tela do computador? Vamos passar a vida dependendo da busca “em cache” do Google?

Ou seja, não basta pensarmos, tão-somente, em divulgar nossos conteúdos, mas precisamos refletir também em como assegurar aos leitores futuros que eles tenham acesso às informações que veiculamos não apenas por meio do confuso sistema de busca oferecido por um Google, mas por meio de índices que contemplem não só as entradas (ou seja, os principais registros descritivos de um artigo ou de uma publicação), mas também as remissões (ou seja, os termos que remetem a pontos determinados dos temas ou dos personagens tratados). E, mais do que isso, precisamos de índices que nos permitam estabelecer referências cruzadas entre diferentes artigos que, porventura, tratem de assuntos semelhantes.

O que quero dizer com estas observações é que a quase totalidade das nossas publicações na web tem se limitado a despejar o conteúdo na teia invisível da internet, confiando que o ato de disseminar informações pode se restringir a tão pouco. O que não é verdade. Garantir que o leitor possa encontrar, não só com rapidez, mas de maneira objetiva e lógica, o que ele procura também é um dever nosso – se é que desejamos desempenhar realmente o papel de editores.

Uma prática que se torna cada vez mais comum é, por exemplo, utilizar, em nossas publicações, o próprio sistema de busca do Google. Mas ele não segue a lógica do leitor – ou melhor, ele não permite que o leitor estabeleça a lógica da sua pesquisa. Ao contrário, trata-se de um sistema que utiliza uma lógica completamente arbitrária, que muitas vezes impede o leitor de encontrar o que deseja.

Como vamos substituir na web, no computador, no e-reader o ato de compulsar um volume, de folheá-lo, de consultá-lo por meio de referências?

Devo concluir, portanto, que, sob uma aparência de modernidade, utilizamos e oferecemos ferramentas ainda bem primitivas, com sérios problemas a serem superados, se é que desejamos realmente democratizar a informação e não apenas jogá-la no ferro-velho desorganizado, caótico, em que a web já se transformou.

Finalmente, diante de todas essas dificuldades, devo dizer que, no papel de editor, recuso-me a, em nome de remediar esses problemas, comprometer o conteúdo publicado. Em minha opinião, o texto não pode aceitar camisas-de-força. Não podemos diminuir a qualidade do nosso conteúdo, torná-lo de qualquer forma pequeno, aceitar abrir mão da profundidade que certos temas pedem, ou até mesmo exigem, em nome de facilitar o ato da leitura. Seria um retrocesso, sem dúvida. Seria obedecer à triste vulgarização que já se torna comum na maioria dos portais.

Fico me perguntando, por exemplo, se Marcel Proust, com seus longuíssimos parágrafos, de denso encadeamento, se submeteria a mudar seu estilo para ser publicado na web. O que o editor de uma revista deveria fazer se recebesse um capítulo de Em busca do tempo perdido? Recusá-lo? Diminuí-lo? Retalhar os parágrafos?

Nosso papel não é, portanto, sacrificar o texto, sacrificar as idéias, mas encontrar soluções, apresentar aos técnicos as nossas dificuldades e lutar para que a tecnologia se adapte às nossas necessidades – e às necessidades dos leitores. A tecnologia deve se adequar às necessidades da criação artística e da expressividade humana. E não o contrário.

Lutar em defesa dos leitores significa lutar também por nós, pois certamente não existem editores que não lêem...

Enquanto esse momento não chega, devemos torcer para que os leitores não desistam, mas também nos esforçar para perceber que o ato de ler não é tão simples e tão fácil quanto muitos de nós imaginamos, mas que ele requer esforço, ele exige um grande empenho – empenho físico, meus amigos. Esforço e empenho que crescem na exata medida em que os suportes e a própria organização das informações não ajudam, mas, ao contrário, muitas vezes dificultam a vida do leitor.

Enquanto não alcançarmos essas mudanças, nossos leitores continuarão sofrendo da nostalgia do livro, do texto escrito em papel. Uma nostalgia, em minha opinião, extremamente benéfica.

novembro 13, 2008


Tragédia, obsessão e liberdade


Na edição de outubro do Rascunho, escrevi sobre Nelson Rodrigues e as crônicas de O reacionário - memórias e confissões, que a Editora Agir lançou.