abril 23, 2014

García Márquez menos o mito

Poucas vezes encontrei, principalmente nos últimos dias, um julgamento tão equilibrado sobre o autor de Cem anos de solidão. Refiro-me ao ótimo artigo de Rafael Gómez Pérez, do qual coloco um trecho a seguir — texto que vai na contramão do endeusamento patrocinado pela esquerda e coloca Gabriel García Márquez no seu devido lugar:

García Márquez foi um excelente contador de histórias, oferecidas numa linguagem quase sempre muito inventiva. Mas nós não gostamos apenas de ouvir histórias; também apreciamos encontrar um pensamento de fundo, uma concepção de homem, um tema denso. Por isso Homero, Dante, Cervantes, Shakespeare e Goethe são imortais... Ou, em tempos mais modernos, Tolstói e “Guerra e Paz”, ou Dostoiévski em quase toda a sua obra, principalmente em “Irmãos Karamazov”; ou a longa evocação de Proust, ou Thomas Mann em “A montanha mágica”... García Márquez não está nesse grupo, no qual poucos entraram até hoje. Ele está no grupo dos que entretêm contando algumas histórias assombrosas, que seduzem enquanto duram, ainda que, ao final, deixem um não sei quê de inconsistência. É o que se verá quando o mito perder a força e García Márquez estiver no lugar que lhe corresponde.

Recomendo que leiam a íntegra desse artigo justo e lúcido, García Márquez menos el mito.

abril 04, 2014

Ódio ao português – Antônio Torres e “As razões da Inconfidência”

No jornal Rascunho deste mês, escrevo sobre Antônio Torres, esquecido autor mineiro, cronista ferino e ácido que fez enorme sucesso entre as décadas de 1910 a 1930.

Na contramão da eloquência nacional, Torres repete nos textos o rigor que pautava sua conduta, sempre ética. Em Da correspondência de João Epíscopo (1917), não basta mostrar a teimosia com que Antônio Austregésilo Rodrigues de Lima, neurologista escolhido para a Academia Brasileira de Letras em 1914, abusa do chavão “de oradores de comícios, chapa retórica inteiramente gasta”, mas é preciso tripudiar, de forma didática, sobre o “venturoso clínico”:

[...] A sua frase vai, volta, sobe, desce, anda, desanda, empaca, corre um centímetro, enguiça logo depois, resvala para a direita, escorrega para a esquerda, range nas engrenagens, emperra, torna a mover-se, embaraça-se imediatamente, faz novo e último esforço para voar e vai engastalhar-se definitivamente no beco sem saída de um ponto final. Aí o motor de V. Exa. dá uma descarga; o aparelho começa então a funcionar, trepidando; a frase volta ao ponto de partida; tenta tomar nova direção; anda um instante, vibra e paf! novo empacamento! V. Exa. força a manícula; abre a caixa de gases; a frase sai zimbrando (como diria o Sr. Coelho Neto), às curvetas e ziguezagues, em linhas quebradas e sinuosas, e, cansada, arquejante, impotente, despedaça-se no ímpeto de uma derrapagem. Trilam apitos; corre gente, acode a polícia, grita a multidão: Não pode! Não pode! Prende! Lincha! Nisto se ouve tilintar aflitamente a campainha e é a Assistência que chega para socorrer o leitor desfalecido!