março 30, 2014

Ernst Robert Curtius e o bizantinismo da vida contemporânea

Trechos do ensaio “Ortega y Gasset”, de 1924 (in Ensaios críticos sobre a literatura européia):

— O relativismo é, em última análise, ceticismo, e o ceticismo como atitude definitiva é um suicídio do espírito.

— O pensamento e a vida não toleram que se contraponha um ao outro; ao contrário, um implica o outro, condicionando-se mutuamente.

— A vida do homem tem uma dimensão transcendente, em que sai de si mesma e participa de algo que não é ela. A vida, dizia Simmel, consiste precisamente em ser mais que vida.

— O fenômeno da vida humana tem duas faces: a biológica e a espiritual. Disso resulta um duplo imperativo: a vida deve ser cultura, mas a cultura tem de ser vital. A vida inculta é barbárie; a cultura desvitalizada é bizantinismo. A cultura do nosso tempo perdeu vigência vital. Nosso racionalismo não confia mais na razão. O mesmo acontece com nossa moral. Uma moral geometricamente perfeita, mas que nos deixa frios, que não nos incita à ação, é subjetivamente imoral. Dispomos de uma sistemática da cultura, mas nos faltam os impulsos vitais a ela correspondentes.

março 29, 2014

Lições de Chesterton para quem deseja ser escritor

Chesterton é grande e grandioso. Seu texto empolga, contagia. Sua argumentação irônica faz explodir diante de nós os paradoxos do mundo que construímos — quanta loucura somos capazes de aceitar!

Ele pode também ser um bom professor, daqueles raros, cujas lições extrapolam o medíocre livro didático. Conselhos só aproveitáveis, entretanto, aos dispostos a ler e reler.

Acompanhem esta aula para quem deseja ser escritor. Os conselhos servem a todos, ainda que o tema se restrinja a histórias de detetives. Uma das melhores lições, por exemplo, é endereçada aos que “têm a estranha noção de que é tarefa deles confundir o leitor; e de que, contanto que o confundam, não importa se o desapontam” — prática que se tornou um vício na literatura contemporânea brasileira.





março 24, 2014

Um nada em grande azáfama

“Dai testemunho: estive presente; embora ninguém me reconhecesse” — assim termina a tragédia Der Trun (A Torre), de 1925, um dos últimos trabalhos de Hugo von Hofmannsthal, importante escritor do final do século XIX e princípio do XX, evidentemente desconhecido no Brasil. Para Otto Maria Carpeaux, um “intérprete poético” dos séculos XVII e XVIII, a chamada “civilização austríaco-barroca”, cujos valores ele recuperou para “opor ao caos de uma época demoníaca, depois da derrota e desmembramento da Áustria em 1918, um cosmos poético e hierarquicamente organizado conforme os valores do espírito”.

Os trechos a seguir pertencem a Buch der Freunde (Livro dos Amigos), publicado em 1922, em que Hofmannsthal reúne pensamentos e aforismos escritos ou copiados desde sua adolescência:

– Os modernos escritores psicológicos aprofundam o que não devia ser considerado e tratam superficialmente o que precisava ser tratado em profundidade.

– O narrador comum narra como algo poderia acontecer acidentalmente. O bom narrador faz acontecer algo no momento atual diante dos nossos olhos. O mestre narra como se acontecesse de novo algo há muito acontecido.

– No nível mais elevado da arte reina nudez, autodesnudação, o seu contrapeso é a maior seriedade, plena capacidade de realização. Onde este estado é intermitente e se pisca o olho para fora, o que existe é impudência.

– Cada palavra pronunciada supõe o ouvinte, cada palavra escrita o leitor: criar também este é a parte encoberta, mas a mais importante da ação do escritor.

– A maior parte das pessoas, ao entregarem-se às chamadas ocupações intelectuais, considerando como tais o ler e o escrever (não o escrever cartas, mas o escrever como autor), não fazem de modo algum o que julgam fazer: porque nem embelezam a sua cultura – “ampliar” a sua cultura, como se costuma dizer, é um disparate horroroso – nem aguçam o seu entendimento, nem enriquecem a sua experiência, e não produzem mais nem nada mais importante que aqueles que remexem a terra à beira de um charco, deitam pedras para a água turva, etc., em suma, um nada em grande azáfama.

março 20, 2014

John Keats e o Outono que o Brasil desconhece



— Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos.

março 14, 2014

Antônio Torres: estilo enxuto e ironia

Entre os nossos grandes prosadores esquecidos — como João Francisco Lisboa e Joaquim Felício dos Santos, sobre os quais escrevo em Muita retórica – Pouca literatura — está o mineiro Antônio Torres, autor de Verdades indiscretas (1920), Pasquinadas cariocas (1921) e várias outras coletâneas do que ele publicava na imprensa do Rio de Janeiro, mesmo depois de entrar para a carreira diplomática.

O texto abaixo, de Prós e contras (1921), é modelar. Torres tinha uma pena afiadíssima para a ironia, o sarcasmo e, muitas vezes, a ofensa — esta, principalmente quando se referia aos portugueses, povo que era um de seus inimigos prediletos.

Mas longe de ser reles xingador, seu estilo é claro, enxuto, sem as gorduras da repugnante eloqüência que emporcalha muitos dos escritores brasileiros; alguns deles, curiosamente chamados de “clássicos”.

Vejam a descrição do lombo assado, de fazer salivar até o mais empedernido faquir; a comparação que abre a crônica, entre a sala acanhada e a capacidade mental do senador; e a naturalidade para conduzir o texto até o último parágrafo, quando encerra com humor sua lição de política. Guimarães Rosa estava certo: Torres tem “pena e estilo sem ferrugem”.

Para aqueles que desejarem conhecer o autor, recomendo a excelente antologia preparada pelo diplomata Raul de Sá Barbosa, com prefácio e notas extremamente elucidativos (o livro foi publicado pela Topbooks).

Divirtam-se com Antônio Torres:





março 12, 2014

Hoje, a primeira aula do curso sobre Otto Maria Carpeaux

Inicio hoje o curso História da Literatura Ocidental — o magnum opus de Otto Maria Carpeaux. Começaremos pela biografia de Carpeaux, até hoje nebulosa; a seguir, examinaremos suas influências – de Johann Gottfried von Herder a Benedetto Croce e Ángel Valbuena Prat – e a idéia de história da literatura que ele planejou escrever. Depois, estudaremos as 10 partes que compõem a História da Literatura Ocidental, analisando o método e o estilo de Carpeaux.

— É importante avisar que os interessados podem se inscrever a qualquer momento, pois os vídeos e o material didático ficam disponíveis para os alunos.

março 10, 2014

Cursos on-line: a literatura como forma de realização pessoal

A internet permite hoje uma comunicação direta, clara – e com abrangência crescente. Quem imaginaria, há vinte anos, que um curso ministrado de algum ponto perdido no planeta poderia ser visto, ao vivo, por milhares de alunos de todos os continentes?

Nos últimos semestres, tenho realizado uma experiência frutuosa com meus cursos on-line. Semelhante ao que faço na crítica literária, busco romper com os lugares-comuns que hoje são disseminados em cursos e workshops. É um trabalho no qual abandono os modismos e procuro ensinar literatura sem jargões acadêmicos, sem discursos herméticos, mas tratando a literatura como “uma das vias régias que conduzem à realização pessoal de cada um” – idéia de Tzvetan Todorov que endosso plenamente.

Estes são os cursos disponíveis até o momento:

1. Bases da Criação Literária: estudamos, em 4 aulas, os elementos que compõem a criação literária, antecedendo-a ou fazendo parte intrínseca dela: qual a relação do escritor com a realidade? A inspiração é um mito? Qual a importância da ética e da tradição? Como a privação ou a derrota influenciam a criatividade?

2. Prática de Leitura e Formação do Estilo: em 12 aulas, mostro que precisamos abandonar a desconfiança e o cinismo em relação à linguagem. E, o principal: quem deseja criar seu próprio estilo de escrever deve reaprender a arte da leitura, entendida como ferramenta indispensável para a) descobrir as possibilidades expressivas da linguagem e b) absorver e transformar os estilos que se tornaram clássicos.

3. A Descoberta do Ensaio: analiso diferentes tipos de ensaio, gênero literário maleável, que oferece incrível liberdade de trabalho. Por meio da leitura crítica de 13 ensaístas, os alunos conhecem procedimentos estilísticos diversos e reúnem elementos que contribuam à formação do próprio estilo.

4. Joseph Conrad: em 4 aulas, desenvolvo a leitura crítica de algumas das narrativas fundamentais do escritor Joseph Conrad. O que ele tem a dizer para o homem contemporâneo? E para os escritores de hoje? São as duas perguntas que norteiam as leituras dos contos Mocidade e O Parceiro Secreto, da novela O Coração da Treva e do romance O Agente Secreto.

5. História da Literatura Ocidental — o magnum opus de Otto Maria Carpeaux: o curso, num total de 14 aulas, começa nesta próxima quarta-feira, dia 12 de março. Iniciaremos pela biografia de Carpeaux, até hoje nebulosa, a fim de, inclusive, contextualizar seu trabalho no panorama literário nacional. A seguir, examinaremos suas influências – de Johann Gottfried von Herder a Benedetto Croce e Ángel Valbuena Prat – e a idéia de história da literatura que ele planejou escrever. Depois, estudaremos as 10 partes que compõem a História da Literatura Ocidental, analisando o método e o estilo de Carpeaux.

Outro aspecto positivo da Internet é que meus alunos não são obrigados a assistir às aulas ao vivo, pois vídeos e material didático permanecem gravados no site – e os cursos podem ser feitos a qualquer momento.

Observação: – Para esclarecer dúvidas e analisar a ementa de cada curso, basta seguir os links presentes na minha página no Cedet On-line.

março 09, 2014

Giacomo Leopardi — Pensamentos (não necessariamente dominicais)


Os arrogantes

Vi, em Florença, um indivíduo que, puxando uma carroça cheia à maneira de animal carreiro, como é costume local, o fazia com extrema arrogância, gritando e ordenando às pessoas que se afastassem, e pareceu-me a imagem de muitos que se enchem de orgulho, insultando os outros por razões não diversas daquela que inspirava sua arrogância, isto é, puxar uma carroça.

Os vanguardistas

Há séculos que presumem refazer tudo, na arte e nas ciências, para não falar do resto, porque nada sabem fazer.

Os imaturos

Conheci certa vez um menino que, ao ser contrariado em alguma coisa pela mãe dizia sempre: ah, compreendi, compreendi, mamãe é má. A maior parte dos homens não discorre acerca do próximo com outra lógica, posto não expresse seu discurso com a mesma simplicidade.

março 08, 2014

Um percevejo – Alberto Rangel e “Lume e Cinza”

Este mês, no jornal Rascunho, escrevo sobre Alberto Rangel e seu conjunto de narrativas, Lume e Cinza, de 1925, livro com o qual ele pretendia repetir o relativo sucesso de Inferno verde, publicado em 1908 com elogioso prefácio de Euclides da Cunha.

O escritor, contudo, se espoja na própria linguagem, deleitando-se como incontrolável Narciso, a ponto de comprometer a verossimilhança das narrativas, nas quais tudo transpira esforço pompeante e ornamentação vazia. Este é um trecho do meu ensaio:

Mas não joguei o volume pela janela antes de chegar à última página, pois tudo pode ficar pior quando se trata de retoricismo. É exatamente o que ocorre na parte final, quando ao discurso bombástico se acrescenta, num estilo exclamatório e anafórico, tremenda patriotada: a jangada é “diligente e volteira”, “humilde e libertadora”, “afoita e pescadora”. O monjolo é “o emblema da vida e da paciência no coração da roça”, mas depois se torna o “emblema da vida e da abundância no coração da roça” e o “emblema da vida e da pachorra no coração da roça”. A mandioca é o “pão do trópico”, a “mãe do trópico”, a “ração do trópico”, a “alma e segurança do trópico”, a “sustância e benefício do trópico”, a “salvação do trópico” e, finalmente, “riqueza dos pobres do trópico”.

março 04, 2014

Aula sobre a ironia

Ela exige sensibilidade, inteligência, domínio do próprio discurso. Obrigar uma frase a expressar o contrário do que suas palavras dizem não é para o fulano que começou a escrever ontem ou que, escrevendo há muito tempo, apenas se especializou em copiar modelos ou repetir cacoetes.

Arte complexa, a ironia comporta diversidade incrível de construções, servindo-se da entonação da frase – e, portanto, da pontuação –, das repetições, do oximoro, da hipérbole, do lítotes... e de mais um universo de recursos, infelizmente pouco estudados na literatura brasileira.

Mas a ironia não é apenas uma figura de linguagem. Não. Ela é, principalmente, uma forma de olhar e compreender o mundo, de interpretar a realidade, de reconhecer os limites – nossos e de outrem. O ironista sabe, como ensinou Isaiah Berlin, que “um mundo sem conflitos de valores incompatíveis é um mundo completamente além de nosso conhecimento”. Por isso ele contrasta, utilizando finíssimo humor, os elementos do real, dos discursos: para denunciar as falsas certezas, a arrogância – inclusive a epistêmica –, as proclamações demagógicas, os populistas que guardam num bolso a receita infalível do Paraíso e, no outro, a propina que cobram para manter o populacho hipnotizado pela cenoura inalcançável.

Ironizar é colocar-se acima do seu próprio meio, sem medo de antagonizar os medíocres, os hipócritas e os enfastiosos que sempre têm certeza absoluta sobre tudo – da pureza inquestionável dos políticos e dos governantes à organização social dos lobos e dos répteis, ainda que esses grupos pertençam, no fundo, à mesma espécie.

Apesar de vivermos num país seriíssimo – o humor, aqui, poucas vezes consegue se colocar acima do escracho, que não exige grande inteligência –, já tivemos escritores com bons momentos de ironia, como Álvares de Azevedo, nos poemas geniais em que ridiculariza o próprio romantismo, ou Gonçalves Dias no seu “Que coisa é um ministro”:

O Ministro é a fênix que renasce
Das cinzas de outro, que lhe a vez cedeu:
Nasce num dia como o sol que nasce,
Morre numa hora como vil sandeu!

Se nódoas tem, uma excelência as caia;
Mortal sublime, que não sabe rir,
Do vulgo inglório não pertence à laia,
Dará conselhos, se se lhe pedir! 

Um bípede de pasta, não de barro,
Nos pés se firma por favor de Deus!
Dois fardas-rotas trotam trás do carro
Em ruços magros como dois lebréus.

Agora, sim: temos a pátria salva,
Não fará este o que já o outro fez!
Grande estadista! Basta ver-lhe a calva,
De homem assim não há dizer — talvez!

Vede-lhe a pasta, que de cheia estala
Só de projetos que farão feliz
A pátria ingrata, que seus feitos cala,
Ou mais que ingrata, o nome seu maldiz!

O ironista ri, faz rir e ri de si próprio. E esse hábito saudável, essa forma especial de lucidez, transforma-o num sábio conservador, cuja atitude é “quente e positiva no que toca ao gozo das coisas e correspondentemente fria e crítica relativamente à mudança e à inovação”, nas corretas palavras de Michael Oakeshott.

Mas, acreditem, o que escrevi até agora é apenas uma introdução ao texto “Um autor dos anos 2000”, escrito por António Araújo, historiador português cujo blog, Malomil, me foi apresentado por Paulo Cruchinho, um amigo do Facebook. Pouco importa se vocês conhecem ou não o autor de que Araújo fala – eu próprio jamais o li. O que importa é o devastador exercício de ironia. Vejam como, parágrafo a parágrafo, Araújo desconstrói a tagarelice do autor, exibindo-a na sua estrutura tosca e incongruente. É uma aula de ironia. Uma carapuça, aliás, que serve a muitos escritores contemporâneos brasileiros.

março 01, 2014

Apontamentos sobre um bestiário — Olavo de Carvalho e “O imbecil coletivo”

Passados quase vinte anos desde sua primeira edição, esgotado há pelo menos um triênio, O imbecil coletivo, de Olavo de Carvalho, continua a constranger e afrontar a intelligentsia esquerdista nacional, que se mostrou, até o momento, incapaz de realizar um debate à altura das proposições olavianas, preferindo encaramujar-se na mudez aparente, por meio da qual recusa o debate franco mas porta-se como velha alcoviteira.

Envolver seus oponentes num halo de silêncio e desprezo ou refutá-los utilizando argumentos ad hominem – nessas duas atitudes pusilânimes resume-se a estratégia da esquerda para derrotar aqueles que não rezam segundo o catecismo marxista-leninista. Veja-se, por exemplo, o tratamento ministrado a Gilberto Freyre durante décadas, o esquecimento a que se condenou Álvaro Lins (depois de abandonar o catolicismo, tornou-se marxista, mas nunca se submeteu a ditames partidários) e as críticas que Wilson Martins recebeu depois de morto, como a de Flora Süssekind, que propôs “matar mais uma vez” o crítico literário.[1] Em todos esses casos, contudo, as estratégias esquerdistas funcionaram apenas temporariamente: o reconhecimento de Freyre não pára de crescer; Lins volta a ser, gradualmente, estudado pelos jovens; e os sete volumes de A história da inteligência brasileira, de Martins, receberam nova edição, revista e atualizada, pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Veritas filia temporis, non auctoritatis[2] diziam, com razão, os antigos.

O caso de Olavo de Carvalho não é diverso. E os leitores encontrarão, no Imbecil coletivo, as reações folclóricas e risíveis que ele provocou: ninguém se propôs, repito, ao debate aberto, adulto – e, mais uma vez, o garrote de silêncio e ataques pessoais foi colocado em ação. O que a esquerda não esperava, entretanto, era, primeiro, deparar-se com um pensador de rara coragem, capaz de alardear suas fundamentadas críticas e acusações num tom de voz que se amplia na exata medida dos ataques sofridos, e, segundo, a massa de alunos, admiradores e amigos que Olavo granjearia, formando o vagalhão que hoje se espraia graças a seus inúmeros livros, às aulas do Seminário de Filosofia,[3] aos cursos que ministra, a cada semestre, na Virgínia (EUA), aos artigos semanais no Diário do Comércio, ao Mídia sem Máscara,[4] ao programa True Outspeak[5] e, de forma geral, à Internet, recurso que, infelizmente, outros críticos do pensamento esquerdista não conheceram ou não souberam aproveitar.

Esse trabalho intenso e diversificado só se concretizou porque Olavo de Carvalho é incansável estudioso, como ele próprio relata no ensaio autobiográfico “Memórias de um Esquisitão, ou: O Estado de Coisas”, presente no Imbecil:

Estudei, pois, e estudei muito, tão-somente em vista de compreender alguma coisa deste mundo, e eventualmente do outro, sem a menor pretensão de usar meus conhecimentos para me tornar aquilo que se convencionou denominar alguém.

Urso na toca, mantive-me por trinta anos entre livros e uns poucos amigos, ensinando em cursos privados, sem sentir a menor falta daquela tagarelice colorida que se entende por vida cultural.

Hábito que permanece inalterado e que ele transmite a seus alunos: afastar-se das panelinhas e estudar, estudar, estudar. Não há outra forma de se contrapor às falsas filosofias e ao manto de cinismo e mentira com que a esquerda pretende cobrir cada centímetro da realidade.

Fissura moral

Olavo de Carvalho não se assemelha a Euclides da Cunha, que se definia “como certos pássaros que, para desferir vôo, precisam de trepar primeiro a um arbusto. Abandonados no solo raso e nu, de nada lhe servem as asas; e têm que ir por ali afora à procura do seu arbusto”.[6] Mas apesar de pertencer ao grupo de escritores admirados pelo autor de Os Sertões, os “espontâneos”, que não dependem de “arbustos” – a expressão que Euclides utilizou para se referir a “fatos” –, elabora alguns dos ensaios presentes no Imbecil a partir do que se encontrava, à época da primeira edição, nas páginas dos jornais, ou seja, a partir do material que, difundido graças à cumplicidade midiática, influencia e muitas vezes condiciona as mentes incapazes de elaborar juízos críticos, sempre prontas a aderir aos modismos.

Suas análises, contudo, extrapolam o que poderíamos chamar de “crítica cultural” – e exatamente por esse motivo o livro provoca reações apaixonadas: os “arbustos” em que Olavo se apóia são apenas uma desculpa para expor os vícios de certa intelectualidade. Ele disseca o acordo tácito por meio do qual concentra-se “obsessivamente a discussão em certas correntes de idéias, para bloquear ao público o acesso às outras” – acordo, aliás, que é um “método elegante de censura prévia, que dá ao mais tirânico dirigismo mental a aparência de uma discussão democrática”. Expõe, a partir da análise das idéias de Christopher Lasch, a existência dessa “nova elite dominante no mundo”, insatisfeita em apenas uniformizar o pensamento e disposta a “reinventar o mundo à sua imagem e semelhança, doa a quem doer”, o que ela chama de “engenharia social”. Após desmontar o pensamento do próprio Lasch, apresentando-o como péssimo leitor de Ortega y Gasset, enfurece a intelligentsia, “hordas de filhinhos de papai”, desnudando cada perniciosa moda transmitida como se representasse um valor universal, cada erro de avaliação referendado pela mídia como filho do brilhantismo, da genialidade. Vira no avesso a lógica deformada que rege os intelectuais tupiniquins, apresentando-a na sua faceta mórbida por meio de uma tese inovadora: a classe cujo único referencial é a mudança política suportou a ditadura militar desprezando a criação de novas formulações, entregue à confusão existencial, à

perda completa do sentido da vida, justificando todas as me­didas desesperadas, todas as loucuras, todos os aca­nalhamentos. [...] Não sabendo viver sem política, a classe letrada encontrou na ditadura o pretexto para legitimar a sua auto-indulgência. A esterilidade cultural do período foi depois inteiramente lançada à conta dos débitos da ditadura. A alegação pareceu verossímil a um público desprovido de pontos de comparação.

Incapaz de encontrar “valor e sentido no trabalho da inteligência fora das finalidades políticas imediatas”, restou à esquerda a inversão de valores que cansamos de presenciar: uma intelectualidade impregnada de “rancoroso preconceito contra o highbrow, de um populismo demagógico que não distingue entre letristas e poetas, jornalistas de idéias e filósofos, repórteres e historiadores, e que toma Gilberto Braga por Honoré de Balzac”. A síntese olaviana, presente em uma das notas de rodapé, tem o peso do veredicto inquestionável, em benefício do qual só surgiram novas e contundentes provas de 1996 para cá: “Um país que publica as obras completas de Antonio Gramsci, Carl Gustav Jung ou Simone de Beauvoir antes de possuir sequer uma tradução integral de Platão e Aristóteles, é que aposta muito mais na superfície do dia do que nas correntes profundas da História”.

Muito além do “pacto sagrado de badalação mútua ou pelo menos da mudez cúmplice que dá direito a prêmios, cargos, verbas e honrarias”, nossos intelectuais “dissolveram todo o senso de responsabilidade pessoal na poção mágica da ‘responsabilidade social’”: ou seja, há uma rachadura moral – “rachadura escondida no fundo da consciência”, diz Olavo – no comportamento desses heróis midiáticos, desses clowns ideológicos cujo cinismo é cultuado como um gesto revolucionário. O filósofo explica:

Há na alma de cada um desses homens uma parte que não se compromete com o pathos moralizador exibido em público; uma parte que olha tudo isso com frieza e ironia, e que desmente, por dentro, a convicção enfática dos gestos e palavras. Essa parte é a sua consciência crítica, que, formada numa tradição de materialismo histórico e relativismo sociológico, não pode levar integralmente a sério os valores morais.

Todos os que militaram na esquerda sabem o quanto Olavo está certo; sabem que tal contradição é reconhecida e exaltada, nas fileiras esquerdistas, com o descaramento típico dos que se consideram acima do bem e do mal – e, principalmente, acima de todos os seus semelhantes. A mente revolucionária torna-se um nada se abdicar dessa arrogância, dessa fissura ética, da qual se lembra apenas quando o malefício vem bater à porta. Um dos melhores exemplos da quinta-essência da mente revolucionária é o brado de Nikolai Bukharin, comemorando o terror stalinista: “Existe algo de grandioso e ousado na idéia de um expurgo geral”, ele dizia, febril, sedento de sangue. Logo depois, preso pelo monstro que ajudara a criar, escreve um bilhete a Stalin: “Koba, por que precisa que eu morra?”. É curioso que tal pergunta não lhe tenha surgido quando celebrava as mortes ordenadas pelo colega de partido... Mas assim se comporta a esquerda: os valores morais são úteis somente para salvar a própria pele.

Mentalidade amoral, esquematismo de pensamento, nacionalismo tacanho – o acertado diagnóstico de Olavo comprova que só poderíamos desembocar, necessariamente, no vazio metafísico:

No Brasil, as correntes metafísicas jamais chegaram a penetrar além da superfície. O pla­tonismo, o racionalismo clássico de Descartes e Leibniz, o idealismo alemão, a ontologia fenomenológica de Hartmann, isto para não falar da metafísica tradicional hindu ou chinesa, permaneceram para nós uma referên­cia exótica, muito distante das preocupações reais da intelectualidade, a cuja demanda de explicações as ciên­cias sociais pareciam fornecer uma resposta mais prática e ao alcance da mão. Daí que o sociologismo, positivista e depois marxista, tenha se tornado o molde e cadinho onde se formaram as idéias e inclinações dominantes da nossa intelectualidade.

Conclusão que, em outro trecho, surge exposta sob nova forma, referindo-se exclusivamente à produção intelectual da Universidade de São Paulo (USP):

Façam o que fizerem, andem por onde andarem, os cérebros uspianos estarão sempre girando em torno do valor, da alienação, do capital, e de todas aquelas palavras mágicas que, nascidas para a descrição de um fenômeno histórico local e passageiro, são infladas em seguida até se constituírem em chaves, princípios e critérios de ilimitado alcance ontológico, dos quais se pode esperar licitamente a explicação de tudo quanto existe sob o Sol e acima dele, bem como dentro e em torno.

Entre a síntese e a veemência

O período acima demonstra também a qualidade estilística do texto olaviano: no trecho de pontuação correta, idéias se sucedem, sobrepondo camadas de sentido que clarificam o núcleo do pensamento até alcançar as últimas palavras, hiperbólicas exatamente para expressar ironia.

Olavo de Carvalho também produz frases lapidares, que arrematam a discussão e permanecem como juízos empolgantes, principalmente num tempo como o nosso, em que os intelectuais temem as certezas, fogem do texto assertivo, inclinam-se à inanidade ou à ataraxia:

Uma cultura em que as regras de bom-tom são mais relevantes do que a veracidade intrínseca dos argumentos é uma cultura moribunda

– ele afirma, construindo o aforismo que tem o impacto de uma bofetada. Safanão que se repete ao concluir um raciocínio sobre nossos intelectuais:

Volúveis e inseguros, esfalfam-se por acertar o passo com as badaladas do relógio da moda, esse eco da História que tomam pela História mesma.

E ninguém, em sã consciência, poderá contestar a verdade que Olavo resume nestas linhas:

Um povo, para ter independência mental, não precisa ter nenhum novíssimo e extravagante esquema de percepção sacramentado pela moda filosófica européia e norte-americana. Precisa apenas ter a coragem de raciocinar.

Utiliza semelhante tom afirmativo para explicar a quem se refere, afinal, o título deste livro; sem dispensar, é claro, o meio sorriso:

O imbecil coletivo não é apenas a soma de um certo número de imbecis individuais. É, ao contrário, uma coletividade de pessoas de inteligência normal ou mesmo superior, que se reúnem com a finalidade precípua de imbecilizar-se umas às outras e obtêm nisto um razoável sucesso.

Sua habilidade para a síntese, contudo, apenas anuncia o que ele pode fazer num longo período. Veja-se este trecho pleno de irreverência, por vezes agradavelmente coloquial, mas sem contemporizações ou platitudes:

[...] o Brasil é o único país do mundo onde a filosofia é uma especialização, dispensável para os intelectuais de todos os outros ramos, e onde – numa espécie de perversão complementar – um diploma de bacharel em filosofia dá direito ao título de “filósofo”. Isto produz nos ambientes letrados um estranho cacoete burocrático: quando sou apresentado como filósofo, logo o interlocutor me pergunta em que departamento estou, quem é meu chefe, se sou efetivo ou contratado, e outras coisas por este gênero, que subentendem ser a condição de filósofo um tipo de cargo público. Um ar de profunda consternação esboça-se no rosto do interrogante quando respondo que não estou em parte alguma, não tenho chefe nem subordinados como aliás não os teve o bom Sócrates, nada entendo de planos de carreira e, quanto a títulos, só os tive no protesto, graças a Deus resgatados a tempo. Explico então, mais que depressa, que não sou filósofo não, apenas um escritor de livros que, por mera coincidência, tratam de filosofia, professor em cursos privados que, dada a minha carência de outros conhecimentos, tratam também de filosofia, e proprietário de um cérebro que, por absoluta falta de outros interesses, se ocupa de filosofia obsessivamente e em tempo integral. Ao ver-me reconhecer que todas essas coisas não bastam para me fazer um filósofo – condição funcional reservada àqueles que, sem nunca terem escrito livros de filosofia, proferido cursos de filosofia ou pensado em problemas filosóficos por um único instante, bocejaram aplicadamente por quatro anos num cursinho universitário –, o interlocutor parece sentir-se aliviado. Mas por dentro fico me perguntando quando uma similar identificação funcional começará a ser exigida aos poetas, aos santos, aos heróis, os quais formam, com o filósofo ou aspirante a sábio, a quaternidade das formas superiores de existência, que nós outros, passadistas empedernidos, imaginávamos irredutíveis a qualquer carimbo de identidade profissional.

E ainda este outro exemplo, delicioso período anafórico no qual podemos ouvir o tom candente de um professor que fala ex cathedra:

Mesmo antes do advento do mundo moderno e do “intelectual” ou retórico puro que constitui a sua figura dominante, já era a retórica a fonte do poder. Quem transformou a Igreja em força polí­tica não foram os teólogos especulativos, mas os pregadores. A Europa já estava toda cristianizada pelo verbo candente dos apologistas quando, sécu­los mais tarde, se organizou com Alberto e Tomás o corpo doutrinal da teologia aristotelizante, que após enfrentar muitas resistências veio a ser aceita como doutrina oficial da Igreja no século XIX (!), e à qual no entanto Maranhão,[7] com a mais completa ignorância do assunto, atribui “vinte séculos de repressão da verdade”. É a retórica de S. Bernardo – e não a teologia de Tomás ou de quem quer que seja – que leva a Europa à aventura das Cruzadas, da qual sai menos cristã do que quando entrou. É a retórica que acende as fogueiras da Inquisição e é a retórica que, ao apagá-las, aproveita para afogar num banho de calúnias a filosofia escolástica, à guisa de bode expiatório. É a retórica de Hobbes e Bodin que, contra o poderio papal, ergue os fun­damentos da monarquia absoluta, e é a retórica que volta as massas contra a monarquia absoluta, lan­çando as culpas dela à conta da Igreja que fora em verdade sua primeira vítima. A retórica move o mundo desde sempre, e, se ele vai para o abismo, é levado pelos retóricos. Pelos retóricos, e não pelos teólogos, pelos filósofos, pelos homens de ciência, pelos contemplativos e indagadores da verdade. Mesmo a força das armas permanece adormecida e inofensiva se não é despertada por uma boa retó­rica. É preciso ser um completo desconhecedor da História — ou então um rematado mentiroso, coisa que não creio que Maranhão seja — para vir agora nos oferecer o império da retórica como uma novi­dade e como uma via de salvação. Esse império é quase tão velho como o mundo. Ele começa na­quele dia em que o primeiro retórico apostou na eficácia persuasiva do primeiro símile: “Sereis como deuses...”. Não há como deixar de reconhecer um eco distante dessa proposta no momento em que o homem de marketing vem nos oferecer o livre mer­cado das idéias como uma proteção contra a “tirania da verdade”. Pois toda idéia que não se submeta de bom grado a essa “tirania” não vale nada: é pura retórica.

Literatura e mediocridade

Décadas de governo esquerdista infligem ônus avassalador à cultura, extremam tentativas de controle ideológico. É o que vemos hoje, inclusive no crescente movimento para transformar Lima Barreto num escritor que mereça ser equiparado aos maiores da língua portuguesa. A crítica que não admite matizações trata o autor de Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá como um gênio: endeusa até mesmo seu alcoolismo e seus eternos ressentimentos. Mas, em 1996, Olavo de Carvalho anunciava essa inversão de valores:

Já houve quem, preferindo a simples nacionalidade dos temas à grandeza consumada de um clássico, pretendesse destronar Machado de Assis para colocar em seu lugar Lima Barreto, um escritor muito bom, sem dúvida, mas cujas realizações ficam obviamente aquém das promessas.

O próprio major Quaresma – protagonista de Triste Fim de Policarpo Quaresma –, hoje visto, por alguns exaltados, como símbolo do melhor idealismo, nacionalista de esquerda circundado de estúpidos, sonhador corajoso e pueril, recebe de Olavo a análise correta:

[...] o Major Quaresma é ao mesmo tempo, e inseparavelmente, um estudioso autêntico e um pseudo-intelectual – um herói trágico e uma caricatura. Seu empenho científico é tão genuíno quanto a vocação literária de Isaías Caminha; e sua visão do mundo, viciada pela estreiteza da mania nacionalista, é tão falsa quanto a identidade profissional do “homem que sabia javanês”. É precisamente a sinceridade da falsa consciência que singulariza o Major e faz dele a epítome da intelectualidade brasileira.

Nesse empenho para exaltar Lima Barreto, nossos críticos só aprimoraram suas próprias caricaturas, incorporaram ainda mais a “falsa consciência” apontada pelo filósofo.

Olavo de Carvalho salienta também outros dois desvios, cada vez mais presentes em nossos estudos literários: a regra imperiosa de que a obra de ficção seja, antes de tudo, “‘nacional’ na linguagem e nos temas”, pouco importando se é “bela, profunda e verdadeira”; e o vício ufanista de utilizar critérios estéticos condescendentes, tornando o medíocre genial apenas para criar, à força, um corpus que ocupe largo espaço nas bibliotecas – e impressione o senso comum ou os desavisados:

[...] nossos educadores julgam muito natural impingir aos jovens a leitura de Joaquim Manuel de Macedo, de Bernardo Guimarães e de toda uma plêiade de autores de segunda ou terceira ordem, por serem tipicamente nacionais, ou típicos da formação histórica nacional, ao mesmo tempo em que se omite da educação literária qualquer menção a escritores de valor muito mais alto, como Da Costa e Silva, por ser muito grego, José Geraldo Vieira, por ser excessivamente português, ou Hilda Hilst, por não ter raízes em nenhum lugar conhecido no sistema solar.

Não é estranho, portanto, que nossa literatura contemporânea mostre-se incapacitada, em grande parte, para tratar de questões universais, presa, com raras exceções, ao exercício de descrever a banalidade da vida por meio de uma linguagem igualmente banal, mas que alguns escritores e críticos crêem, erroneamente, ser a melhor expressão de alguma suposta vanguarda. Não haveria outro caminho para um país em que se cultua a mediocridade em nome de critérios externos à própria literatura, apenas para dar vida a um projeto de nacionalismo exacerbado de forma estrábica pela Semana de 22.

Seres excêntricos

Longe de ser análise exaustiva de O imbecil coletivo, este breve ensaio almeja entusiasmar o leitor a empreender o percurso proposto pelo filósofo: perscrutar o Brasil dando as costas, inicialmente, às escolhas diárias que a mídia impõe; depois, não “julgar o passado com os olhos do presente – o mais volúvel dos juízes –, mas [...] julgar o presente à luz do passado; à luz das suas esperanças, sobretudo, que são às vezes o mais temível testemunho contra a arrogância do presente”.

Se conseguirmos olhar a realidade a partir dessa inversão extraordinária, os personagens que surgem no Imbecil coletivo, alguns ainda pontificando na vida do país, assumirão sua verdadeira natureza: raríssimos com inteligência própria; a maioria, seres excêntricos, exemplos estapafúrdios ou nocivos do pesadelo nacional, dignos de constar num bestiário de monstros híbridos ou espécimes abomináveis apenas porque grunhem suas mentiras sob o comando justo e rigoroso de Olavo de Carvalho.


[1] “A crítica como papel de bala”, jornal O Globo, 24 de abril de 2010, disponível em: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2010/04/24/a-critica-como-papel-de-bala-286122.asp.
[2] A verdade é filha do tempo, não da autoridade.
[6] Luso, João. “Dominicals”, Jornal do Comércio, 22 de agosto de 1909. Apud Rabello, Sylvio. Euclides da Cunha, Capítulo VI, Editora Civilização Brasileira/INL/Fundação Nacional Pró-Memória, 3ª edição, RJ, 1983.
[7] Refere-se a Jorge Maranhão e ao livro de sua autoria, Mídia e Cidadania. Faça Você Mesmo, publicado pela Editora Topbooks em 1993.