agosto 31, 2013

Machado de Assis: sob a forma livre, amargo e perverso

Chega a ser desolador como as teorias lingüísticas, de braços dados com o marxismo, desvincularam a literatura da realidade. Quem, hoje, escreveria páginas semelhantes a essas, que coloco abaixo, de José-Maria Belo, sobre Machado de Assis? Quem teria coragem de dizer que, à parte o estilo límpido, à parte a linguagem que corresponde perfeitamente à trama, o Bruxo do Cosme Velho, como dizia Manuel Bandeira, tem “o gosto doentio de espiar o sofrimento alheio. E a psicologia dura, derrotista, insultante de quase toda a obra”?

Nos trechos a seguir, retirados do livro Inteligência do Brasil, ressurge o Machado de Assis esquecido, o Machado que estruturalistas & Cia. querem que nós esqueçamos: “Sempre o móvel egoísta, e ainda que limpo, inconfessável. [...] Um monstro. Um monstro que não fazia mal a ninguém, que nunca haveria de fazer mal a ninguém, mas não obstante um monstro”, como dizia Manuel Bandeira, sem medo de contrariar nossos críticos e acadêmicos niilistas.



agosto 29, 2013

Ana Maria Machado e sua delicada inverdade

Em entrevista concedida ao jornal Zero Hora (edição de hoje, dia 29), a escritora Ana Maria Machado refere-se à nota zero que dei ao seu romance, Infâmia, na última edição do Prêmio Jabuti. Comete, entretanto, terrível injustiça. Ou delicada inverdade.

Em certo trecho da entrevista, citando-me, a presidente da Academia Brasileira de Letras diz: “– No caso dele, o que se estranhou, pelo que se contou depois, foi que na primeira rodada ele deu nota alta para o meu livro. Na segunda, quando viu que os outros haviam dado 9 ou 10, ele mudou. Ele tinha o direito de fazer isso? Tinha, sempre tem. Mas exerceu um poder em nome de uma coisa direcionada”.

Ora, ou Ana Maria Machado pretende ocultar a verdade dos leitores gaúchos ou, o que é ainda mais surpreendente, não foi informada sobre o que ocorreu no Prêmio Jabuti. E a verdade, a absoluta verdade, é que seu romance – por ser mal escrito e não passar de uma peça de proselitismo ideológico – sequer constou na minha primeira lista de escolhidos. Diferente do que ela fala, portanto, não mudei minha nota de uma rodada a outra.

Para os que desejarem conhecer os fatos – e não as versões dos ressentidos –, sugiro que leiam a entrevista que dei ao jornal O Globo, em 3 de dezembro de 2012. Entrevista, aliás, que Ana Maria Machado, ao que parece, não quis ler. Ali, respondendo às perguntas, deixo clara minha posição: “Na minha lista de dez finalistas da fase classificatória, Infâmia, de Ana Maria Machado, nem constou”. E quando a jornalista me pergunta “Isso significa que você nem avaliou o romance de Ana Maria Machado na primeira etapa?”, respondo: “Não, eu o avaliei, mas o avaliei mal, tão mal que ele sequer ficou na minha lista de dez melhores”.

Assim, se, como diz Ana Maria Machado, “exerci um poder em nome de uma coisa direcionada”, de fato o fiz; e na direção certa: na direção de não permitir que um romance mal escrito passasse à segunda fase do Jabuti. Essa é a verdade. O resto, caros leitores, inclui-se no que dizia o Dr. Samuel Johnson: “É difícil contentar aqueles que desconhecem o que exigem ou aqueles que exigem propositalmente o que julgam impossível obter”.

agosto 27, 2013

Em breve, novo projeto: “Relendo os Clássicos”

Na linha do que venho fazendo em meus cursos on-line, preparo também uma série de gravações dedicadas aos clássicos da literatura universal.

A idéia do projeto nasceu de um amigo, Lucas Monachesi, produtor audiovisual, especialista em cinema, tevê e mídias digitais pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Depois de cursar Vídeo Design no Instituto Europeu de Design de Milão, ele se estabeleceu em São Paulo, onde trabalha na gravação de comerciais, videoclipes e conteúdo didático. Assim como eu, Lucas é aluno de Olavo de Carvalho no Seminário de Filosofia. O Cedet On-line, plataforma da web em que ministro meus cursos, será responsável por disponibilizar as gravações.

A seguir, publico o trecho em que explico nosso objetivo e falo um pouco do primeiro autor escolhido: Joseph Conrad.

agosto 21, 2013

Cursos on-line de literatura – rompendo com o lugar-comum

Meu projeto no Cedet On-line tem, desde o início, a mesma estratégia: romper com os lugares-comuns que hoje são disseminados em cursos e workshops.

É um trabalho à contracorrente, no qual abandono as receitas em voga, ensino literatura sem jargões acadêmicos, sem discursos herméticos, repetindo o que faço na crítica literária: tratar a literatura como “uma das vias régias que conduzem à realização pessoal de cada um”, para usar o lúcido pensamento de Tzvetan Todorov.

A parceria já rendeu os cursos “Bases da Criação Literária”, “Prática de Leitura e Formação do Estilo” e “A Descoberta do Ensaio”, que começamos na semana passada. Os alunos não são obrigados a assistir às aulas ao vivo, pois a Internet apresenta, dentre outros, um aspecto extremamente positivo: aulas e material didático ficam gravados no site – e os cursos podem ser feitos a qualquer momento.

Novos cursos virão, para escritores e leitores, para quem deseja aperfeiçoar a técnica de escrita, conhecer literatura ou apenas ler com maior profundidade. E sem jamais tratar a obra literária como insignificante exemplo de visões formalistas, niilistas ou solipsistas – mas inserindo-a sempre na totalidade da experiência humana.

agosto 19, 2013

Olavo de Carvalho e “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”


Acaba de chegar aqui o último livro do meu caro Olavo de Carvalho: O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota (em pré-venda na Livraria do Seminário). Mais que uma simples coletânea da sua extensa produção de artigos, a obra apresenta importante diferencial: os textos foram organizados por temas – e o organizador do volume, Felipe Moura Brasil, teve o cuidado de acrescentar notas esclarecedoras, relevantes, que indicam bibliografia suplementar e fornecem trechos elucidativos de outros textos do autor.
 
O alentado volume oferece oportunidade ímpar aos detratores de Olavo: podem, a partir de agora, falar mal dele não motivados por suas próprias mesquinharias, mas com base no que ele realmente escreveu. A frase anterior é, claro, apenas um exercício irônico de estilo: aqueles que não leram Olavo até agora – e preferem não ler e não gostar –, dificilmente mudarão de atitude. Perdem, assim, a oportunidade de conhecer o pensamento mais audacioso que surgiu neste país nas últimas décadas. Mas isso nada significa para quem está feliz seguindo o rebanho, de olhos presos ao chão e pronto a balir em uníssono.
 
Num rápido passar de olhos, reencontrei artigos e ensaios memoráveis. Todo jovem deveria ler “Vocação e equívocos”, originalmente publicado na extinta Bravo!, em fevereiro de 2000 – exemplo do que nossos educadores deixaram de ensinar, o texto expõe a ética subjacente às aulas que Olavo ministra em seu Seminário de Filosofia.
 
Em “Literatura do baixo ventre” (Jornal da Tarde, 3 de julho de 2003), Olavo serve-se das Memórias de Adolfo Bioy Casares para realizar uma vivissecção na literatura contemporânea brasileira, grande parte dela produzida com um arremedo de fervor, tão rasteiro quanto as lições estruturalistas, desconstrucionistas e relativistas que nossos acadêmicos repetem como autômatos.
 
E se você, leitor deste blog, sente-se de alguma forma desconfortável na universidade ou no colégio; se a cada fala do professor uma luz incômoda acende em seu cérebro, sem que você consiga descobrir o motivo do seu mal-estar; ou se, depois de perceber seu desacordo em relação ao que lhe ensinaram, você ainda não alcançou clareza suficiente para compreender onde está o erro, onde está a mentira; se as lições diante das quais todos dizem “amém” já não lhe servem; em qualquer destes casos, comece o livro pela última seção, “Estudo”, e perceberá que o naufrágio da cultura nacional não é uma cena épica de Joseph Conrad, com um navio majestoso afundando depois de servir aos mais nobres ideais, mas triste, trágica decadência – à qual, entretanto, não estamos condenados.
 
A cada capítulo, falando de política internacional ou economia, desnudando nossa intelligentsia ou a farsa petista, Olavo de Carvalho reafirma o que disse, com ironia, em janeiro de 2007, no artigo “A autoridade religiosa do mal”, publicado no Diário do Comércio e reproduzido neste livro: “Não sou covarde o bastante para me abster de dizer as coisas como as vejo, só por medo de uma rotulação pejorativa”. Em outros termos, é como se dissesse: “Não me peçam para obedecer ao senso comum”.
 
Ora, o que mais se pode pedir da inteligência de um homem, exatamente quando, da janela do meu apartamento, vejo todos, praticamente todos, caminhando na mesma direção?

agosto 16, 2013

CRITICON: críticos que não têm medo de julgar


Cristiano Ramos teve a idéia, convidou colegas de ofício, criou o site e assumiu o cansativo trabalho de editar nossos textos: assim nasceu CRITICON, projeto que reúne críticos literários com algumas afinidades: nada de acariciar cocurutos de escritores, nada de chamar de ótimo o que é medíocre, nada de temer a honrosa tarefa de julgar.
 
Temos estilos diferentes, pensamentos diferentes, valores diferentes – mas estamos irmanados pela crítica humanista, avessa ao compadrio; e pela rejeição aos dogmatismos teóricos, pretensamente científicos. Como afirmava José Guilherme Merquior, citado por Cristiano Ramos no texto de apresentação do site, “temos coisa melhor para fazer do que permitir que nosso pensamento e sensibilidade se escravizem a uma sovada e infundada ideologia de negação e desespero”.
 
Com vocês, amigos e leitores, CRITICON, reunindo Cristiano Ramos, Eduardo Cesar Maia, Fabio Silvestre Cardoso, Marcos Pasche, Peron Rios e Rodrigo Gurgel.

agosto 13, 2013

“O escritor é uma espécie de jejuador perpétuo”


Poucos, na literatura brasileira, compreenderam os sábios conselhos de Augusto Meyer em sua Epístola a Porfírio:
 
“[...] Aprender a escrever é aprender a escolher, cheirar, pesar, medir, sacudir antes de usar, apalpar, comparar e afinal rejeitar muito mais que adotar linguarudas famílias de palavras, que atravancam a memória e impedem que a gente se ouça um pouco, nos raros momentos de diálogo e murmúrio subjetivo. Para mim, o escritor é uma espécie de jejuador perpétuo: condenado a transformar toda a exuberância da vida em dois ou três compassos da sua música interior, inatingível na essência mais profunda, jejua à mesa posta dos seus desejos, castigando com cilício as luxúrias do verbo. [...]”.

agosto 12, 2013

Um curso para conhecer o “centauro dos gêneros”


A partir da próxima quarta-feira, dia 14, estudaremos treze importantes ensaístas, para aprender com eles, por meio da leitura de seus textos, como podemos aperfeiçoar o nosso próprio estilo de escrever. Perceberemos que o caráter híbrido do ensaio – entre literatura e tese; entre reflexão pessoal e vontade de estilo – é exatamente a sua força. Por esse motivo Alfonso Reyes, grande intelectual mexicano, definiu o ensaio como o “centauro dos gêneros”.

O curso será ministrado via Internet. As inscrições estão abertas. Aulas e material de leitura ficarão gravados, disponíveis para os alunos que não possam acompanhar a transmissão ao vivo. Todos os detalhes podem ser obtidos no site do Cedet, por telefone (19-3249-80) ou por e-mail: livros@cedet.com.br.

agosto 09, 2013

Editor da revista “dEsEnrEdoS” analisa “Muita retórica – Pouca literatura”

Wanderson Lima, professor da Universidade Estadual do Piauí e um dos editores da dEsEnrEdoS, analisou meu livro no último número dessa revista eletrônica. Wanderson faz leitura independente e criteriosa – mostrando-se, para meu prazer, em desacordo com algumas de minhas avaliações. De qualquer forma, a resenha mostra que, fora do eixo Rio-São Paulo, há intelectuais dispostos a se contrapor ao pensamento hegemônico na área de Letras.

A revista está disponível na Web – e o texto pode ser lido a partir da página 169. À parte qualquer pequena discordância, Wanderson captou o essencial: “O critério valorativo de Gurgel é o estético, mas ele não é esteticista nem formalista: não ergue um patamar supramundano para o discurso literário nem corrobora a máxima derridiana, tão em voga, de que nada há fora do texto. O beletrismo e o experimentalismo, enquanto expressões de um culto esteticista que esvazia a literatura de seu conteúdo humano, lhe causam arrepios”.

agosto 08, 2013

“Só há uma escola: a do talento” – Vladimir Nabokov


Gosto de reler as entrevistas da Paris Review. Algumas delas revelam pormenores que ajudam a compreender o caminho escolhido pelos escritores, sua visão da realidade, do seu tempo – ou, no mínimo, permitem conhecer a personagem na qual o escritor se transforma ao se manifestar publicamente.
 
A entrevista que Vladimir Nabokov concedeu a Herbert Gold, em 1967, é um exemplo de savoir-vivre, sarcasmo e inteligência. As respostas que escolhi para este post contribuem para provar por que Nabokov pertence, sem nenhuma dúvida, à “escola do talento”:
 
Personagens são escravos

Pergunta: E. M. Forster fala que suas personagens principais às vezes ganham vida própria e ditam o curso de seus romances. Isso alguma vez constituiu um problema para o senhor, ou tem pleno domínio sobre as personagens?

Nabokov: O meu conhecimento das obras de E. M. Forster limita-se a um romance, do qual não gosto. De qualquer forma, não foi ele quem deu início a essa fantasia banal a respeito de personagens que fogem ao controle; isso é mais velho do que o mundo. Se bem que, naturalmente, daria para se sentir solidário com as personagens dele, caso tentassem escapar daquela viagem para a Índia, ou onde quer que ele os estivesse levando. Os meus personagens são verdadeiros escravos.

Imitações sem vida

Pergunta: E existe algum [autor] que o senhor acompanhe a duras penas?

Nabokov: Não. Muitos autores reconhecidos simplesmente não existem para mim. São nomes gravados em túmulos vazios, seus livros são imitações sem vida, são perfeitas nulidades no que diz respeito ao meu gosto para leitura. Brecht, Faulkner, Camus e muitos outros não significam absolutamente nada para mim, e tenho que me esforçar muito para não acreditar na existência de uma conspiração contra a minha inteligência quando vejo que são aceitos calmamente como “literatura maior”, seja por críticos como que por companheiros de ofício. As copulações de Lady Chatterley ou as bobagens pretensiosas de Ezra Pound, uma tapeação só. Reparei que, em algumas casas, ele substituiu o Sr. Schweitzer nas estantes.

Fácil, fácil demais

Pergunta: Como admirador de Borges e Joyce, o senhor também parece compartilhar o prazer que eles têm em provocar o leitor com truques, trocadilhos e enigmas. Como acha que deve ser a relação entre leitor e autor?

Nabokov: Não me recordo de nenhum trocadilho em Borges, mas só li traduções de seus livros. De qualquer forma, seus pequenos contos delicados e seus minotauros em miniatura não têm nada em comum com os engenhos enormes de Joyce. Também não encontro muitos enigmas no mais lúcido dos romances, Ulysses. Por outro lado, eu detesto Punnegans wake, [*] onde um tumor maligno formado pelo tecido de palavras fantasiosas mal chega a recuperar a lamentável jovialidade do folclore e a alegoria fácil, fácil até demais.

Pergunta: O que aprendeu com Joyce?

Nabokov: Nada.

Pergunta: Ora, convenhamos...

Nabokov: James Joyce não me influenciou de forma alguma. Meu primeiro e breve contato com Ulysses foi por volta de 1920 na Universidade de Cambridge, quando um amigo, Peter Mrozovski, que trouxera um exemplar de Paris, leu para mim, enquanto caminhava para cima e para baixo em meus aposentos, uma ou duas passagens picantes do monólogo de Molly, que, cá entre nós, é o capítulo mais fraco do livro. Só quinze anos mais tarde, quando já estava bem formado como escritor, e relutava em aprender ou desaprender qualquer coisa, li Ulysses, e gostei imensamente. Já em relação a Finnegans wake, eu sou indiferente, como o sou a toda literatura regional escrita em dialeto — mesmo que seja o dialeto de um gênio.

[*] “Pun”, em inglês, significa trocadilho, jogo lingüístico, recurso extremamente usado em Finnegans wake.

Uma coisa dura, artificial

Pergunta: Como escritor, o senhor sente ter alguma falha secreta ou evidente?

Nabokov: A falta de um vocabulário natural. Uma coisa estranha para se confessar, mas é verdade. Dos dois instrumentos de que disponho, um — minha língua nativa —, eu não posso mais usar, não só por falta de um público russo, mas também porque o entusiasmo pela aventura da palavra em russo foi morrendo pouco a pouco, depois que me voltei para o inglês em 1940. O meu inglês, o segundo instrumento, que sempre tive, é, no entanto, uma coisa dura, artificial, que pode ser boa, talvez, para descrever um pôr-do-sol ou um inseto, mas que não consegue esconder a pobreza da sintaxe e a escassez de um linguajar doméstico quando preciso do atalho entre o armazém e a loja. E nem sempre se prefere um antigo Rolls-Royce a um jipe comum.

Tudo muito divertido

Pergunta: Qual a sua opinião sobre o posicionamento competitivo dos escritores contemporâneos?

Nabokov: É, eu já notei que, com relação a isso, nossos críticos profissionais são verdadeiros bookmakers. Quem está no páreo, quem não está, e para onde foram as neves de antanho? [*] Tudo muito divertido. Fico um pouco sentido por ser deixado de fora. Não conseguem decidir se sou um escritor americano de meia-idade ou um velho escritor russo — ou uma anomalia internacional que não tem idade.

[*] Refere-se a François Villon: “Mais où sont les neiges d’antan?”, refrão de “Ballade (des dames du temps jadis)”.

Só há uma escola

Pergunta: Como o senhor considera hoje em dia poetas como Blok, Mandelshtam e outros que escreviam antes de o senhor deixar a Rússia?

Nabokov: Li esses poetas quando era garoto, há mais de meio século. Desde então me tomei um apreciador incondicional da lírica de Blok. Seus poemas mais longos são fracos, e o famoso “Os doze” é pavoroso, conscientemente concebido em um falso tom “primitivista”, com um Jesus Cristo em cartolina cor-de-rosa colado no final. Quanto a Mandelshtam, também o sabia de cor, mas ele me oferecia um prazer menos apaixonado. Hoje, pela ótica de um destino trágico, sua poesia parece maior do que realmente é. Noto, por sinal, que muitos professores de literatura ainda colocam esses dois poetas em escolas diferentes. Só há uma escola: a do talento.

agosto 07, 2013

Um personagem busca seu escritor

Sempre digo que a conhecida citação de Oscar Wilde – “A vida imita a arte” – é apenas uma frase de efeito, nada mais, tentativa pueril de criar uma teoria anti-aristotélica, de oposição à mimese. Opor-se à natureza e à vida é, aliás, o tema central da obra – The Decay of Lying – em que a citação se encontra.

Mas este breve primeiro parágrafo não tem o objetivo de iniciar um debate filosófico. Serve apenas ao meu principal interesse, a literatura.

Essas idéias ressurgiram ontem à noite, quando minha esposa comentou sobre uma notícia ouvida no rádio. Minha primeira reação foi lembrar de O falecido Mattias Pascal, de Luigi Pirandello; logo a seguir, da frase de Wilde. E depois de ler a história com atenção, percebi que a vida, mais uma vez, oferecia novos caminhos à arte.

A história de Pedrito de Jesus Conceição, portanto, aguarda por um bom escritor. Alguém preparado para captar os meandros da breve existência desse homem tido como morto, depois vivo, mas que finalmente morre; antes, contudo, que o Estado lhe conceda seu “atestado de vida”. Homem que, apesar de trazer o substantivo “conceição” no nome, morreu várias vezes, de diferentes formas. Parafraseando Pirandello, trata-se de um personagem que busca seu escritor, alguém disposto a entender esse drama familiar nada desprezível, no qual a morte se estabelece e se prolonga num misto de confusão, tristeza, humor negro e dependência do Estado.

Ainda existiria esse escritor, humilde o suficiente para entender que só resta à arte imitar a vida? E que tal trabalho, de imitar a vida transformando-a, tem seu mérito indiscutível?

agosto 04, 2013

Tempo, vida, literatura – e “A Descoberta do Ensaio”

Correções de Montaigne em uma página dos "Ensaios"
Somos aqueles que tememos tudo, como se fôssemos mortais, e desejamos tudo, como se fôssemos imortais – são as palavras de Sêneca no ensaio “Sobre a brevidade da vida”. E ele completa dizendo que é exígua a parte da existência que realmente vivemos; e que todo o espaço restante não é vida, mas apenas tempo.

A escrita, a produção literária em seus diferentes gêneros, é uma das respostas que o homem encontrou para não abreviar ainda mais sua vida, para não desperdiçá-la. Se o tempo da vida dos grandes escritores, dos pensadores que deixaram seu legado, continua a render, a proporcionar o melhor dos lucros às gerações que os sucederam, é porque, antes de tudo, eles administraram bem o seu próprio tempo – e o dedicaram ao que é essencial.

Revisitar, reler, estudar esses mestres que souberam “colher o dia” é uma forma de, aprendendo com eles, não só dominar a técnica da escrita, criar um estilo, expressar as próprias idéias, mas também “aproveitar o momento”, usar o tempo para o que é realmente substancial.

Esse é um dos objetivos do curso que vamos começar no próximo dia 14 de agosto: “A Descoberta do Ensaio”. Ao ler grandes mestres da ensaística, estudaremos os procedimentos estilísticos que eles utilizaram para se expressar, aprenderemos como aperfeiçoar nosso estilo de escrever e descobriremos que “perder” tempo com a literatura significa, na verdade, aproveitar a vida, dedicá-la ao que é realmente importante. As inscrições estão abertas.

agosto 02, 2013

A navalha de Somerset Maugham



Se considerarmos “genial” um sinônimo de “vanguardista”, erro comum nos dias de hoje, William Somerset Maugham jamais poderia receber o primeiro qualificativo. Mas se pensarmos que o elogio serve àquelas pessoas notáveis, cuja capacidade intelectual as coloca acima da maioria das pessoas, então esse fecundo escritor inglês de fato produziu alguns livros geniais. 

Edmund Wilson, no entanto, não pensava assim. Para ele, a fama de Maugham nos EUA era um sinal da decadência dos padrões literários. Wilson chamava Maugham de “escritor de segunda linha”, definia sua linguagem como “banal”, afirmava que o escritor sequer possuía um “ritmo interessante” e deixou um julgamento que se pretende definitivo: trata-se de “romancista medíocre, que escreve mal, mas que é lido com regularidade por leitores médios que não se preocupam com a escrita”.

As observações de Wilson certamente causam mal-estar nos leitores que apreciam Maugham mas não se sentem qualificados para se contrapor ao crítico ou deixam-se influenciar pela opinião de um intelectual que, sem dúvida, merece deferência. A verdade é que, depois de lermos Maugham, podemos até chegar a conclusões semelhantes, mas duvido que um leitor consciencioso, que se disponha a passar alguns minutos entretido, por exemplo, com “Chuva”, um dos melhores contos da literatura universal, não julgue haver exagero no veredicto de Wilson.

Erros e acertos

O mesmo elogio não pode ser feito, infelizmente, a O fio da navalha – tradução de 1945 que vem ganhando sucessivas reimpressões ­–, romance menor mas famoso, com duas versões cinematográficas (a de 1946, com Tyrone Power, merece ser vista), que não é o melhor de Maugham, mas, ainda assim, está muito acima de uma literatura, digamos, de entretenimento.

O que me incomoda em O fio da navalha é o fato de Maugham conceder ao personagem Lawrence Darrell uma importância que ele não tem. Maugham tentou construir um romance que falasse das desilusões, dos traumas e do vazio que se abatem sobre as pessoas em tempo de guerra, principalmente sobre os soldados que, de volta a seus lares, não se readaptam à vida em sociedade. Darrell – ou Larry, como ele é chamado ao longo do romance – volta da I Guerra Mundial consternado pela morte do amigo que lhe salvara a vida; e passa, então, a buscar sentido para a existência. Trata-se de homem simples, herdeiro de pequena fortuna, que, movido por inquietações metafísicas, percorre o mundo em busca de respostas. Após experimentar diferentes religiões e empreender inúmeros estudos, torna-se uma espécie de santo leigo, alguém que, como o próprio narrador anuncia, “ao morrer não deixará vestígio de sua passagem pela terra”. Mas Larry – enigmático até mesmo para o narrador, que chega a ser repetitivo nas descrições, como se não conseguisse perscrutar o personagem – acaba se transformando num ser apático, destituído de grandes emoções, místico às vezes irritante. Esse falso protagonista surge de maneira intermitente no romance – e Maugham se esforça para, por meio dele, unir as peças de sua trama.

Traído por seu protagonista, o escritor perdeu a oportunidade de escrever um clássico, o que aconteceria se tivesse centrado sua atenção no esnobe Elliott Templeton, o melhor personagem do romance: norte-americano que vive em Paris, bon vivant, frívolo e pedante, de passado suspeito, que, graças ao comércio de arte, enriqueceu durante a I Guerra. Fofoqueiro, tio solteirão, aparentemente homossexual, com tino para organizar festas ou recepções, ele transita na alta burguesia e na nobreza européias com facilidade. Mas é também homem generoso, que sai inabalado do crash da Bolsa, em 1929, não por ser um escroque, mas apenas pelo fato de possuir as fontes certas. Apegado aos valores de classe social que o acolheu – e como poderia ser diferente? –, Elliott se escandaliza, por exemplo, quando, de volta temporariamente aos EUA, um motorista de táxi o chama de “amigo” e não de “senhor”. Por meio dele, o narrador radiografa a vida e os valores das classes altas, mas, o que é um mérito, sem fazer julgamentos ideológicos, sem descair para o achincalhe ou, pior, para a exaltação dos pobres como bem-aventurados e puros de coração. Esse tipo de demagogia, nunca encontraremos em Maugham. Ao contrário, ele nos seduz com a “requintada ironia” de Elliott – há diálogos repletos de falas ferinas, inteligentes, plenas daquele tipo de esgrima social que presenciamos com facilidade nos grupos que sabem unir elegância, verve e rapidez de pensamento. Esses diálogos permitem que visualizemos até pequenas rugas de humor nas expressões dos personagens; e nosso autor jamais se rende à literatura de tese.

Seguimos parte da vida de Elliott e, depois, sua decadência física, seu crescente medo da solidão; e o vemos se transformar num homem digno de piedade, apegando-se com todas as forças, apesar da doença, ao frenesi de uma vida glamorosa. Um dos mais perfeitos trechos do romance é o que descreve sua agonia e morte, bem como a preparação do cadáver. Cena triste, com uma ponta de humor negro, pois Elliott deixara ordens expressas para ser vestido de uma maneira que, sob o olhar do narrador, transforma o dândi num “corista de uma ópera de Verdi”. Acompanhamos a humilhação que a morte impinge – o quanto ela pode nos tornar ridículos – e, ao mesmo tempo, sofremos, pois nos acostumamos a gostar desse requintado bufão, ironista que ascendeu socialmente, sabe-se lá a que preço.

Larry não tem um terço da complexidade de Elliott ou de Isabel Bradley, de quem se torna noivo por um breve período. Sobrinha de Elliott, Isabel é o exemplo de uma das melhores qualidades de Maugham: retratar personagens femininos. Ela evolui no transcorrer do romance, física e psicologicamente, e seu longo diálogo com Larry, quando rompem o noivado, mostra uma mulher realista, diante de quem Larry se transforma numa insignificante caricatura, sem respostas, que apela à ironia vulgar e covarde quando se sente sob pressão. Frente à lógica de Isabel, ele não passa de um idealista exacerbado – e como todos os sonhadores, um egoísta a quem os próprios ideais bastam. A frieza dessa mulher, contudo, se lhe dá forças para sobreviver quando o marido, Gray Maturin, perde tudo na crise de 29, também a leva a cometer um delito que comprometerá a vida de outra personagem, Sophie MacDonald. De encantadora colegial a rainha perversa, Isabel reúne todos os matizes femininos.

É uma pena que a tradução seja muito antiga e não tenha sido revisada. Isabel, por exemplo, toma refresco usando uma “palhinha” e não um canudo; um personagem “dá uma perobinha” com outro, talvez uma gíria da década de 1940 no Brasil, mas da qual não consegui encontrar o significado; as mulheres têm “pestanas” e não cílios; outro personagem, cheio de vivacidade, é “um azougue”; e, numa festa, todos se divertem “à grande”. Mas isso não estraga a narrativa. Aqui e ali, às vezes encontramos lugares-comuns ou descrições que chegam a ser bobas – e imediatamente lembramos de Edmund Wilson –, mas Maugham também nos oferece, além dos diálogos espirituosos, sólidas descrições dos personagens e trechos que são boas descobertas, como ao dizer que os mortos se assemelham a “fantoches de uma companhia falida” ou, apenas outro exemplo, quando comenta sobre a Avenue de Clichy, ao amanhecer: “Sórdida à noite, tinha agora um ar garboso, lembrando a mulher pintada, abatida, que caminhasse com o passo vivo de uma moça”.

O único homem livre

Em seu romance O destino de um homem, Maugham apresenta longa e precisa definição sobre os escritores, da qual sempre gosto de me lembrar, principalmente por suas últimas linhas:

É uma vida cheia de contratempos. Para começar, ele deve sofrer a pobreza e a indiferença do mundo; depois, tendo conquistado uma parcela de sucesso, tem de se submeter sem protesto aos seus riscos. Depende de um público inconstante. Está à mercê de jornalistas que querem entrevistá-lo; de fotógrafos que querem tirar-lhe o retrato; de diretores de revistas que o atormentam pedindo matéria, de cobradores de impostos que atormentam por causa do imposto sobre a renda; de pessoas gradas que o convidam para almoçar; de secretários de instituições que o convidam para fazer conferências; de mulheres que o querem para marido e de mulheres que querem divorciar-se dele; de jovens que lhe pedem autógrafo; de atores que desejam papéis e estranhos que querem um empréstimo; de senhoras sentimentais que lhe solicitam a opinião sobre assuntos matrimoniais; de rapazes graves que querem sua opinião sobre suas composições; de agentes, editores, empresários, chatos, admiradores, críticos, e da própria consciência. Mas existe uma compensação. Sempre que tiver alguma coisa no espírito, seja uma reflexão torturante, a dor pela morte de um amigo, o amor não correspondido, o orgulho ferido, o ressentimento pela falsidade de alguém que lhe devia ser grato, enfim, qualquer emoção ou qualquer idéia obcecante, basta-lhe reduzi-la a preto-e-branco, usando-a como assunto de uma história ou enfeite de um ensaio, para esquecê-la de todo. Ele é o único homem livre.

Não poderia haver melhor definição do próprio William Somerset Maugham. E um autor com tamanha autoconsciência deve ser perdoado por sua obra irregular.

No que concerne a O fio da navalha, o narrador que desmente a si mesmo desde a primeira página e faz exatamente o oposto do que pensávamos ser uma decisão irrevogável; o narrador que escreve com a mesma paixão sobre a natureza, a beleza das mulheres e Racine – chegando à discutível e polêmica idéia de que “a arte triunfa quando consegue servir-se do convencionalismo em benefício próprio”; o narrador que consegue extrair drama da classe social que o senso comum e a esquerda julgam erroneamente viver em meio a futilidades e devaneios; um narrador assim, que conclui, falando sobre seu protagonista, ter faltado a Lawrence Darrell “aquela pequena nota de crueldade que mesmo os santos precisam ter para conseguir sua auréola”, certamente merece não apenas nossa atenção, mas também o nosso respeito.

agosto 01, 2013

Monteiro Lobato: sempre contemporâneo


No Rascunho deste mês, escrevo sobre Negrinha, de Monteiro Lobato, salientando as qualidades dos melhores contos presentes no livro: “Os negros”, “A facada imortal”, “Dona Expedita” e o genial “O colocador de pronomes”. Para ler o ensaio na íntegra, basta clicar aqui. A ilustração é de Ramon Muniz.