dezembro 31, 2013

Poema para 2014


Aos familiares, amigos, alunos e leitores, meu agradecimento por tudo que partilhamos no ano que termina. Agradeço a Deus por ter-me concedido a companhia e a amizade de pessoas valorosas, que me fizeram lembrar, a cada encontro, a cada diálogo, a cada mensagem recebida, a prece que Ortega y Gasset fazia ao acordar: “¡Señor, despiértanos alegres y danos conocimiento!”. A todos vocês, ofereço este poema de Antonio Machado, que me acompanha há muitos anos e sempre me inspira, nos bons momentos e nas dificuldades. Fraternal abraço e feliz 2014!
 
Consejos

Sabe esperar, aguarda que la mar fluya
– así en la costa un barco – sin que el partir te inquiete.
Todo el que aguarda sabe que la victoria es suya;
porque la vida es larga y el arte es un juguete.
Y si la vida es corta
y no llega la mar a tu galera,
aguarda sin partir y siempre espera,
que el arte es largo y, además, no importa.

dezembro 30, 2013

O prazer do fim esconde a alegria do reinício

Acabo de colocar o ponto final no livro que será publicado nos próximos meses, continuação de Muita Retórica – Pouca Literatura (de Alencar a Graça Aranha).

Constam, do novo volume, livros das duas décadas iniciais do século XX, período que nossos estudiosos se acostumaram a tratar como Pré-Modernismo, conceito impregnado de confusão, que se liquefaz quanto mais estudamos os escritores ali enfiados.

De Júlia Lopes de Almeida a Jackson de Figueiredo, passando por Euclides da Cunha, Coelho Neto, Simões Lopes Neto, Olavo Bilac, Lima Barreto e Monteiro Lobato, escrevo sobre autores injustamente esquecidos ou, pior, superestimados.

A tarefa, na sua totalidade, está longe de ser cumprida, pois o projeto de reler a prosa brasileira se estende até a década de 1970. Ou seja, dizer “ponto final” revela o prazer de uma parcela de trabalho concluída e a alegria do reinício. Para comemorar, abrirei uma lata de Irish Flake, guardada há meses para esta data, e encherei o fornilho do meu Savinelli Roma.

Feliz 2014, caros leitores!

dezembro 27, 2013

Tolkien e a alegria do cachimbo

Vários elementos me impressionam no vídeo abaixo, publicado por um amigo do Facebook: graças à intimidade que J. R. R. Tolkien alcançou com o cachimbo, acendê-lo é um conjunto de gestos descontraídos. São poucos segundos, mas o deleite — incontestável, estampado num crescendo de alegria — atinge seu máximo no olhar que brilha diante da delicada fumaça, na mão que se agita no ar com delicadeza, no sorriso final.

Contudo, quem conhece a vida e a obra de Tolkien sabe que há muito mais nesse início de fumada: vejo um homem que valoriza as pequenas coisas do cotidiano; um homem que descobriu a mais básica das lições: não fugir de nossos medos só aumenta a nossa própria força; um homem para quem viver pela fé inclui a chamada a algo maior do que apenas lutar, de forma covarde, pela autopreservação. 

Enquanto a fumaça teima em não se dissipar, como se partilhasse do sorriso de Tolkien, vejo a satisfação de um homem consciente de que nossa única tarefa é decidir, com sabedoria, o que fazer com o tempo que nos é dado — e o principal: que até mesmo uma pequena pessoa, aparentemente inútil, pode mudar o curso do futuro. Principalmente, é claro, se ela conceder a si mesma o prazer de fumar um cachimbo.

dezembro 20, 2013

Vejamos o Verbo

De todas as mensagens de Natal que tenho recebido, a do ilustrador, cartunista e autor de HQs João Spacca foi a que mais me emocionou. Com a inestimável ajuda do Padre Antônio Vieira, Spacca sintetiza o mistério e a novidade do Natal. O Verbo que se deixa ver ressurge no verbo desse orador sacro que repudiava a retórica vazia e pomposa, típica da literatura brasileira. O Verbo do Deus cujo dizer é fazer renasce, graças ao traço de Spacca, na “designação precisa e inconfundível das coisas” do estilo de Vieira, como bem o definiu Amadeu Amaral. Deixo vocês com as imagens e desejo a todos um Santo Natal.


dezembro 13, 2013

A hora para reler Eliot

Por que voltar aos ensaios de T. S. Eliot? Foi o que me perguntei quando selecionava os textos que pretendia analisar no curso “A Descoberta do Ensaio”. Os trechos abaixo, retirados de “O que é um clássico?” – originalmente escrito como um discurso à Virgil Society, proferido em 1944 –, respondem à pergunta; e também corroboram o que Russell Kirk disse a respeito de Eliot: “É possível que em uma distante época futura, quando a história do século XX parecer bárbara e desconcertante como as crônicas da Escócia medieval, a aguda perspicácia de Eliot deva ser lembrada como a luz mais clara que resistiu às trevas universais”. Pensamento que me leva a repetir o que afirmo a alguns amigos: esta é a hora para reler Eliot.

Evolução da língua e maturidade da literatura

A maturidade de uma literatura é um reflexo da sociedade dentro da qual ela se manifesta: um autor individual – especialmente Shakespeare e Virgílio – pode fazer muito para desenvolver sua língua, mas não pode conduzir essa língua à maturidade a menos que a obra de seus antecessores a tenha preparado para seu retoque final. Por conseguinte, uma literatura amadurecida tem uma história atrás de si – uma história que não é apenas uma crônica, um acúmulo de manuscritos e textos dessa espécie, mas uma ordenada, embora inconsciente, evolução de uma língua capaz de realizar suas próprias potencialidades dentro de suas próprias limitações.

Criatividade

A persistência da criatividade em qualquer povo consiste [...] na manutenção de um equilíbrio coletivo entre a tradição no sentido mais amplo – a personalidade coletiva, por assim dizer, consubstanciada na literatura do passado – e a originalidade da geração que se encontra viva.

Presente, passado e futuro

[...] Enquanto estivermos dentro de uma literatura, enquanto falarmos a mesma língua e tivermos fundamentalmente a mesma cultura que produziu a literatura do passado, desejaremos conservar duas coisas: o orgulho de que nossa literatura já se cumpriu e a crença de que pode ainda cumprir-se no futuro. Se deixássemos de acreditar no futuro, o passado deixaria de ser plenamente o nosso passado: tornar-se-ia o passado de uma civilização morta.

Nefasto provincianismo
Em nossa época, quando os homens parecem mais do que propensos a confundir sabedoria com conhecimento, e conhecimento com informação, e a tentar resolver problemas da vida em termos de engenharia, começa a emergir na existência uma nova espécie de provincianismo que talvez mereça um novo nome. É um provincianismo, não de espaço, mas de tempo, aquele para o qual a história é simplesmente a crônica dos projetos humanos que têm estado a serviço de suas reviravoltas e que foram reduzidos à sucata, aquele para o qual o mundo constitui a propriedade exclusiva dos vivos, a propriedade da qual os mortos não partilham.

dezembro 05, 2013

Equívocos e retórica – Jackson de Figueiredo e “Literatura reacionária”

No Rascunho deste mês, analiso a coletânea de artigos publicada por Jackson de Figueiredo (acima, na ilustração de Leandro Valentim) em 1924: Literatura reacionária. Descontados os equívocos estéticos e políticos, além do texto muitas vezes enfadonho, é possível encontrar, com uma pinça, trechos atuais e instigantes. Para quem se interessar, meu ensaio está aqui. A análise sobre Jackson de Figueiredo encerra a segunda parte da minha revisão dos prosadores brasileiros, iniciada com a esquecida romancista Júlia Lopes de Almeida. A primeira já está publicada, no livro Muita retórica - Pouca literatura (de Alencar a Graça Aranha).

novembro 28, 2013

Cachimbos e estilo, duas coisas nada simples

Meus amigos dirão que exagero. E os que não têm a nem sempre agradável experiência de conviver comigo certamente afirmarão o mesmo. Mas cumprirei a tarefa de ser previsível, ao menos no que se refere a esses pequenos prazeres que me concedo, e afirmarei que o poder de se expressar a respeito de assuntos aparentemente triviais, transformando-os de acordo com um conjunto particular de emoções, é uma habilidade capaz de demonstrar o grau de aperfeiçoamento a que uma nação ou um povo chegou. É o que sinto quando leio as crônicas de Gregory L. Pease, especialmente a última, “It’s Not That Simple”. Ele transforma o ato de encher um fornilho com tabaco, acendê-lo e fumar durante largos minutos num exercício de reflexão e poesia. E não há, desculpem-me os sensíveis, ninguém que faça isso em língua portuguesa. Em poucas linhas, Pease perscruta a relação do homem com o tabaco e o cachimbo, analisando-a não como um passatempo – a malta antitabagista diria “vício” –, mas como uma característica da sutileza, da complexidade e, por que não?, do requinte a que nós, pobres humanos, podemos chegar. A crônica é, sem dúvida, o gênero literário mais ingrato, transformada, quase sempre, em presa do efêmero pelos escritores, mas Gregory L. Pease, ainda que fale de um gesto extremamente fugaz, consegue torná-lo atemporal, histórico. Além, é claro, de conceder alegria a este prosélito dos cachimbos.

novembro 25, 2013

A crítica de Otto Maria Carpeaux que o Brasil prefere esquecer

Em 1958, quando lança Presenças, Otto Maria Carpeaux inclui no volume uma crítica devastadora sobre Canaã, de Graça Aranha. Não há o que contestar na sua breve, mas corajosa, completa análise. E não deixa de ser curioso o comportamento de muitos dos nossos scholars, que insistem em tratar Canaã como um romance, por qualquer motivo, fundamental. A impressão que nos passam é triste: aparentam seguir a tese de que, para se firmar, para efetivamente possuir um cânone nacional, dependemos de algumas muletas capengas – uma delas, Canaã.

A seguir, a íntegra do texto de Carpeaux:




novembro 21, 2013

João Francisco Lisboa finalmente reeditado na íntegra

Acaba de ser reeditada a Obra Completa do maranhense João Francisco Lisboa, um dos mais geniais prosadores da língua portuguesa, sobre quem escrevi o ensaio “O ironista macambúzio”, presente em meu livro Muita Retórica – Pouca Literatura (de Alencar a Graça Aranha).

A edição é da Academia Maranhense de Letras, sob os cuidados de Jomar Moraes, a quem agradeço pelo envio dos 4 volumes e da simpática carta.

Graças ao gesto de boa vontade do acadêmico Jomar Moraes, poderei, finalmente, ler a íntegra de três textos há anos inacessíveis: os folhetins “A Festa de Nossa Senhora dos Remédios”, “A Festa dos Mortos ou a Procissão dos Ossos” e “Teatro São Luís”.

Como afirmou Álvaro Lins – juízo com o qual concordo ipsis litteris –, “que se compare a prosa do autor do Jornal de Timon, pelo senso estilístico e pela estrutura literária, com a de seus contemporâneos […], sem excluir José de Alencar, de expressão formal tantas vezes insuportável na frouxidão ou vacuidade do seu verbalismo […] — e ver-se-á, então, que João Francisco Lisboa não parece só um escritor de outra época, mas até de outro país e de outra literatura. Como prosador, aproxima-se dele, naquele tempo, tão só Manuel Antônio de Almeida” (em A glória de César e o punhal de Brutus).

novembro 18, 2013

Para iniciar o projeto Relendo os Clássicos, um curso sobre Joseph Conrad

Como anunciei aqui em agosto, já está no ar o primeiro curso da série “Relendo os Clássicos” – e começamos com Joseph Conrad. São 4 aulas, em que falo sobre o romance O Agente Secreto, a novela O Coração da Treva e os contos Mocidade e O Parceiro Secreto. As inscrições podem ser feitas na página do Cedet On-line, na qual se encontram informações detalhadas.

novembro 11, 2013

A sabedoria de Léon Bloy

“Não há literatura ‘jovem’ – há pessoas de talento e nulidades...”

“Quando um grande homem aparece, perguntai primeiro onde está a sua dor.”

“Não conheço situação mais vizinha do inferno do que essa: um artista que não pode ver suas obras sem nojo, um escritor que não pode se reler.”

“O visível é a marca dos passos do Invisível.”

“Se, verdadeiramente, um livro, sobretudo um romance, existe, só pode ser em virtude de uma concepção genial e unipessoal da vida humana. É preciso, necessariamente, que haja nele o que se chama uma idéia, isto é: uma maçã metafísica colhida na árvore do bem e do mal, e posta, para amadurecer, na palha de um estilo qualquer.”

“O homem será sempre o apaixonado escravo da dor. Fará dela sempre sua beleza e sua glória.”

novembro 10, 2013

O mau humor de Léon Bloy

Arthur Rimbaud: “Um aborto que defeca aos pés do Himalaia.”

Liev Tolstói: “Lido Anna Kariênina. Infinito nojo.”

H. G. Wells: “Ateísmo anglo-saxão. Esse homem dá a impressão de escrever no fundo de um poço.”

Émile Zola: “Não existe escritor que tenha aviltado tanto a língua francesa, não há sofista que tenha prostrado o pensamento francês em lugares mais baixos, e não se imagina uma aparência de homem que tenha merecido mais o suplício último.”

Filosofia: “A filosofia talvez não seja uma ocupação maldita, mas é, certamente, o que há de mais inútil no mundo.”

Paul Verlaine: “Um anjo que se afoga na lama. Fachada de igreja e porta de botequim.”

Flaubert: “La Tentation de Saint Antoine é um dos livros mais tolos e mais abjetos de que se honra a literatura contemporânea.”

Schopenhauer: “Fétido.”

Émile Zola: “Só mesmo eu continuo a ler Zola. Os próprios porcos não querem mais.”

novembro 06, 2013

O mercado é uma questão de educação e cultura

Em artigo recente, “O mercado é uma questão de língua”, Hugo Gonçalves aponta as dificuldades culturais supostamente causadas pelas diferenças – na sintaxe e no vocabulário – entre o português brasileiro e o de Portugal.

Ao contrário do que aponta o artigo, penso que a lusofonia não é uma ilusão. A ilusão está toda na idéia de que, no Brasil, há leitores. Mas não há. E a maioria dos existentes não consegue ler uma legenda de filme na velocidade necessária. Num país assim, as diferenças entre um português e outro ganham, é evidente, perfil monstruoso.

O problema fica claro quando Girão cita as edições do livro O Retorno, da ficcionista Dulce Maria Cardoso: em Portugal, a obra vendeu 18 mil exemplares; no Brasil, 2 mil (se é que chegou a tanto). Ora, a tese de que a má recepção do romance no Brasil se deve a dessemelhanças lingüísticas é inaceitável – significa querer mascarar o óbvio: no Brasil, repito, não há leitores. E se eles não existem – ou não existem na mesma proporção e com a mesma qualidade que há em Portugal –, não pode haver mercado.

Esse, aliás, é um dos motivos pelos quais as editoras brasileiras se agarram às compras milionárias do governo federal, seu bote salva-vidas.

O que nos separa de Portugal não é a língua, mas o estado da cultura e da educação do brasileiro, que chega a cometer aberrações como a de erigir à condição de intelectuais artistas que, em outros países, jamais deixariam de ser o que realmente são: meras figuras de entretenimento.

Mas voltemos ao artigo: ali encontramos a compreensível decepção da editora Bárbara Bulhosa. Não sei se ela acreditou que duas décadas de governos de esquerda revolucionariam o Brasil. De qualquer forma, o que deveria ser uma revolução de repercussões seculares transformou-se num traque, infelizmente milenar, como, aliás, demonstrou a matéria recentemente publicada pela BBC, “‘Geração do diploma’ lota faculdades, mas decepciona empresários”, radiografia do Brasil que ainda demorará muito para ter bons leitores como Portugal: “Administradores recém-formados não sabem escrever um relatório ou fazer um orçamento, arquitetos não conseguem resolver equações simples, estagiários ignoram as regras básicas da linguagem ou têm dificuldades de se adaptar às regras de ambientes corporativos”.

Quando se trata de educação e cultura, não há milagres, ainda que a esquerda tenha se especializado em produzir miragens, sua única vocação. Portanto, não coloquem a culpa na língua portuguesa, não tentem esconder o sol com uma peneira. A questão é simples: quando há educação e cultura, barreiras lingüísticas muito maiores se desfazem como estátuas de sal.

novembro 03, 2013

Murilo Mendes: “Camões – o homem sim”

“O homem moderno efetuou a disjunção entre a palavra e o fato; é um homem dúbio, farisaico. O homem Camões é firme e integral. Nele não combatem o sim e o não. O homem Camões é o Sim. Seu ato é fiel à sua palavra. Este Luís de Camões sabia muito bem o que é o Verbo: por isso pôde encarná-lo.” (em O Discípulo de Emaús)

novembro 02, 2013

Alcides Maia – o filho tardio de Alencar

No Rascunho deste mês, analiso Alma bárbara, coletânea de contos do gaúcho Alcides Maia, publicada em 1922. A seguir, um trecho do ensaio:

“Água parada”, que abre o volume, já anuncia o saudosismo do autor e seu apego aos adjetivos. A narrativa idílica, que não chega a criar um conto, fixa-se no tema bucólico e aí permanece, definindo certa idealizada lagoa como “profunda, singular, diferente de todas”, com águas também “profundas”, novamente “diferentes” e, por fim, “atraentes”. Vencidos poucos parágrafos, a água torna-se “calada, solitária, arrastadora”, mais uma vez “atraente” e, a seguir, “indiferente”. Sob o domínio de tal adjetivação, o discurso pernóstico, de nítida influência alencariana, é conseqüência inevitável: “Lá embaixo, bem no fundo, estremeceria ainda, na algidez dos seus desejos torpentes, alguma iara sonolenta, das que outrora seduziam os guerreiros com seus olhos cerúleos e as suas verdes madeixas?”, pergunta-se o narrador. Não faltam — elementos indispensáveis nesse tipo de texto — os lugares-comuns, na forma de “beijos de brisas perfumadas pelas flores da encosta”.

novembro 01, 2013

Paulo César de Araújo e os verdadeiros reacionários

Assisti atentamente ao Programa Roda Viva desta semana, em que o jornalista e professor Paulo César de Araújo, autor da famosa biografia de Roberto Carlos, foi entrevistado.

O que sobrou do programa, depois de ouvir todas as ponderações de Araújo? De um lado, o profissional sensato, com pleno domínio do tema que escolheu para pesquisar e que, em qualquer país civilizado, teria seu trabalho reconhecido. Do outro, artistas populares que se dizem revolucionários, este ou aquele com fama de enfant terrible, mas que na verdade são reacionários na pior acepção do termo, ou seja, hostis à democracia, à liberdade de expressão.

Abaixo, coloco o primeiro bloco do programa. Os demais podem ser vistos no YouTube:

outubro 31, 2013

A saudável arte do cachimbo – Parte 3

Publicado pela Tabacaria SIQLO, de Florianópolis, em 2003, Cachimbo amigo, de Herres de Souza, merece lugar de destaque na prateleira de quem pretende se iniciar ou dá os primeiros passos na nobre arte de fumar cachimbo.

Trata-se de um guia básico, completo o bastante para responder a grande parte das perguntas que o iniciante, ao perceber as opções quase infindáveis que o aguardam – em termos de cachimbos e acessórios –, sempre faz a si mesmo, às vezes com relativa angústia.

O texto flui de maneira agradável e o autor consegue estabelecer, logo nos primeiros capítulos, um clima de intimidade com seu leitor. Herres de Souza dialoga conosco como se estivéssemos sentados em poltronas confortáveis, protegidos pela penumbra de uma sala que recende a tabaco, conhaque e especiarias.

Não pensem que exagero. Todo iniciante gostaria de, antes de adquirir seu primeiro cachimbo, ter lido este conselho – simples e bem escrito – sobre o formato das piteiras:

Ao examiná-las, leve em consideração se elas se adaptam bem aos seus lábios, boca, dentes e à sua postura física ao fumar. A piteira e a embocadura não podem importunar você no ato relaxante e prazeroso de cachimbar.

Ou este, que resume bem o estilo direto do autor e encerra o Capítulo 1:

O importante é, como dizem os especialistas, que o cachimbo seja aconchegante ao tato, que se adapte bem à sua mão, ao seu modo de vida e à sua personalidade.

Faltam ao livro maiores informações sobre os tipos de tabaco, mas a técnica de fumar e os procedimentos de limpeza e manutenção dos cachimbos são explicados de forma didática, com o apoio de ilustrações:
É pena que Cachimbo amigo não possa ser encontrados nas livrarias, mas a Tabacaria SIQLO, responsável pela edição da obra, continua de portas abertas, oferece seus produtos inclusive no Facebook e talvez ainda disponha de alguns exemplares deste livro acolhedor.

outubro 30, 2013

O que é um gênio?

Boris Pasternak
A definição é de Isaiah Berlin, ao recordar, no ensaio “Conversas com Akhmatova e Pasternak”, de 1980, os encontros que mantivera com esses escritores em 1945 e 1956. Esse texto será o tema da aula de hoje no curso “A Descoberta do Ensaio”:
 
“[...] Ele falava formulando magníficos períodos em câmara lenta, com ocasionais torrentes intensas de palavras. Sua fala freqüentemente transbordava as margens da estrutura gramatical – passagens lúcidas eram seguidas por imagens loucas, mas sempre maravilhosamente vívidas e concretas –, e essas poderiam ser seguidas por palavras obscuras, quando era difícil acompanhá-lo – e então de repente ele voltava a entrar numa clareira. Seu discurso era sempre o de um poeta, assim como seus escritos. Alguém disse certa vez que há poetas que são poetas quando escrevem poesia e prosadores quando escrevem prosa; outros são poetas em tudo o que escrevem. Pasternak era um poeta de gênio em tudo que fazia e era. Quanto a sua conversa, nem me atrevo a descrever sua qualidade. Só conheci uma outra pessoa que falasse como ele: Virginia Woolf, que fazia a mente do interlocutor disparar assim como ele conseguia fazer, obliterando no ouvinte a visão normal da realidade do mesmo modo inebriante e, às vezes, estarrecedor.
 
Uso a palavra ‘gênio’ de caso pensado. Às vezes me perguntam o que quero dizer com esse termo impreciso, mas altamente evocativo. Em resposta, só posso afirmar o seguinte: perguntaram certa vez ao bailarino Nijinsk como ele conseguia saltar tão alto. Parece que ele teria respondido que não via grande problema nisso. A maioria das pessoas, quando pulava no ar, descia à terra imediatamente. ‘Por que descer imediatamente? Pode-se ficar um pouco no ar antes de retornar à terra, por que não?’, dizem ter sido a resposta. Um dos critérios para definir o gênio me parece ser precisamente isto: o poder de fazer algo perfeitamente simples e visível, que as pessoas comuns não conseguem realizar e sabem que não podem fazer – nem sabem como é realizado, nem por que não podem nem sequer imaginar como fazer. Pasternak às vezes falava em grandes saltos; seu emprego das palavras era o mais imaginativo que já encontrei; arrebatado e muito comovente. Há sem dúvida muitas variedades de gênio literário: Eliot, Joyce, Yeats, Auden, Russell (pela minha experiência) não falavam assim. [...]”

outubro 24, 2013

Homens ocos – em T. S. Eliot e Joseph Conrad

O anúncio da morte de Kurtz, que Eliot utiliza como epígrafe do longo poema “The Hollow Men” (“Os Homens Ocos”), proclama que, finalmente, o personagem emudeceu. Os que leram O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, devem se lembrar da eloqüência de Kurtz, da forma como repetia os possessivos, acreditando-se dono de tudo – ele, “sombra insaciável de aparências esplendorosas e aterradoras realidades; sombra mais escura que as sombras da noite e envolta nas dobras de uma deslumbrante eloqüência”, conta-nos Marlow, o narrador.

Kurtz é um dos homens ocos, um “elmo cheio de nada”, como escreve Eliot no início do poema:
Mas de que tipo de vazio fala Eliot? Marlow nos conta qual o vazio de Kurtz: “Tanto o amor diabólico quanto o ódio sobrenatural dos mistérios em que havia penetrado disputavam a posse daquela alma saciada de emoções primitivas, ávida de glórias enganosas, de falsas honrarias, de todas as aparências do sucesso e do poder”. Na verdade, o vazio é apenas uma metáfora para definir a abundância das coisas inúteis, o excesso de tudo que representa opulência, mas que transforma os homens em seres “empalhados”.

outubro 22, 2013

Literatura, crítica literária e muito mais

Nos últimos vinte dias, concedi três entrevistas, nas quais falo sobre crítica literária, meus cursos on-line, ensino de literatura nas escolas e nas faculdades, e-books, poesia, escrita criativa e muito mais. Para os que desejarem conhecer um pouco de minhas idéias, estes são os links:

outubro 20, 2013

Ana Maria Machado engana-se mais uma vez

Na entrevista concedida ao jornal Valor Econômico (18/10/2013), a escritora Ana Maria Machado comete novo deslize (vejam meu post de 29/08/2013) ao afirmar, referindo-se a seu romance Infâmia: “Não apareceu um único crítico, num único jornal, que fizesse uma resenha ou um comentário mostrando que tinha lido o livro”.

De fato, a presidente da Academia Brasileira de Letras parece desconhecer o que se passa a seu redor: se fosse minimamente informada, teria lido meu texto na Folha de S. Paulo (29/11/2012), no qual explico a nota zero que dei a seu romance e saliento a) as cansativas referências literárias, históricas e bíblicas que ela utiliza para referendar as teses que se espraiam pelo romance, b) o enredo esquemático, em que as personagens só conseguem emitir julgamentos repetitivos e politicamente corretos, c) o didatismo escancarado, d) os estereótipos e as cenas inverossímeis.

Em meio às respostas recheadas de lugares-comuns, o entrevistador sai em defesa da escritora e considera “um disparate” a nota zero que lhe dei. Ora, no Brasil em que a crítica literária, com honrosas exceções, especializou-se em elaborar discursos anódinos ou açucarados, acariciar cocurutos de escritores e se esconder sob a sintaxe intrincada e  o vocabulário muitas vezes hermético, é perfeitamente compreensível que pretendam transformar o ato de julgar num disparate. “O que foi é o que será: o que acontece é o que há de acontecer. Não há nada de novo debaixo do sol”, caros leitores.

outubro 16, 2013

Três poemas de Emily Dickinson


Dizer toda a Verdade – em modo oblíquo –
           No Circunlóquio, o êxito:
Brilha demais p’ra nosso enfermo gozo
            O seu sublime susto.

Como a meninos se explica o relâmpago
            De modo a sossegá-los –
A Verdade há de deslumbrar aos poucos
             Os homens – p’ra não cegá-los.

***

Brincamos com pedra falsa,
Puxando-a ao ponto de pérola –
Depois soltamos a massa
E vemos quão tolos fomos – 

E, no entanto, as formas eram análogas, –
E a mão que ainda tateia
Aprendeu tática de gemas
Praticando com areia. 

*** 

A beleza não se faz – ela é.
Você a caça, ela cessa;
Se desiste, ela persiste. 

Tente imitar as estrias 

No capinzal, quando o vento
Corre-lhe os dedos por dentro –
Algum deus vai estar atento
Para frustrar o seu intento.
 
(Tradução de Aíla de Oliveira Gomes)

outubro 15, 2013

Sobriedade e sutileza – Amadeu Amaral e “A pulseira de ferro”

Amadeu Amaral por Fábio Abreu
No jornal Rascunho deste mês, minha análise do principal trabalho de ficção escrito pelo paulista Amadeu Amaral. Esta é a abertura do ensaio:

Amadeu Amaral permanece indispensável à cultura brasileira graças a O dialeto caipira — estudo pioneiro sobre as características da linguagem no interior do Estado de São Paulo —, à permanente campanha em defesa do folclore, cujas pesquisas nos permitiriam alcançar o que ele chamava de “conhecimento exato da nossa gente”, e aos insights das análises literárias reunidas em O elogio da mediocridade, incluindo o ensaio que dá título ao livro, deliciosa peça de ironia sobre o papel do crítico e dos escritores. Poeta menor, deixou uma novela exemplar, A pulseira de ferro, presente no volume “Novela e conto” de suas Obras completas — publicadas por causa do empenho de Paulo Duarte, intelectual paulista injustamente esquecido.

outubro 08, 2013

Jorge Luis Borges e o sofrimento como argila

“Um escritor, ou todo homem, deve pensar que tudo o que lhe ocorre é um instrumento; todas as coisas lhe foram dadas para determinado fim – e isso tem de ser mais forte no caso de um artista. Tudo o que acontece a ele, inclusive as humilhações, as vergonhas, as desventuras, todas essas coisas lhe foram dadas como argila, como matéria-prima para sua arte; ele tem de aproveitá-las. Por isso já falei num poema do antigo alimento dos heróis: a humilhação, a desgraça, a discórdia. Essas coisas nos foram dadas para que as transmutemos, para que façamos, da miserável circunstância de nossa vida, coisas eternas ou que aspirem a sê-lo.” – Jorge Luis Borges (“A cegueira”, em Borges oral & Sete noites)

outubro 07, 2013

Como pensa um esquerdista?

Você deseja entender como pensa um esquerdista? Quer compreender a mentalidade revolucionária? Então, leia O Agente Secreto, de Joseph Conrad, publicado em 1907. Baseado em fatos reais – um atentado anarquista ocorrido em Londres, no ano de 1894, e que provocou a morte de seu autor, o francês Marcial Bourdin –, trata-se de um dos grandes romances políticos da literatura ocidental, comparável a O vermelho e o negro, de Stendhal, Os demônios, de Dostoiévski, Princesa Casamassima, de Henry James, ou O Zero e o Infinito, de Artur Koestler. Conrad faz uma análise implacável da “sangrenta futilidade” e da “irracionalidade malévola” dos movimentos revolucionários – e nos mostra como “o caminho da revolução, mesmo a mais justificável, é preparado por impulsos pessoais disfarçados em credos”. 

Esse e outros textos de Conrad serão analisados por mim no projeto “Relendo os clássicos”, sobre o qual já falei neste blog e que logo estará disponível no Cedet On-line.

outubro 04, 2013

O animal que não investiga

“[...] O mundo geralmente não está interessado nos motivos de qualquer ato público mas em suas conseqüências. O homem pode sorrir e tornar a sorrir, mas não é um animal que investiga. Ele ama o óbvio. Exime-se de explicações.”

– Joseph Conrad, no Prefácio do romance O Agente Secreto.

outubro 03, 2013

A saudável arte do cachimbo – Parte 2

Capa
Acabo de adquirir o livro História do Cachimbo, publicado em 1970. Segundo informações que recebi de um membro da Confraria dos Amigos do Cachimbo, Cláudio Carvalho, “tecnicamente foi o primeiro livro a tratar do tema no Brasil”. É uma brochura de poucas páginas, sem autoria, mas agradavelmente ilustrada, contendo informações básicas sobre a história do cachimbo, a arte de fumar e outras curiosidades.

Dois pontos chamaram minha atenção: primeiro, o autor desconhecido não partilha da tese de que existe a “maldição dos cachimbeiros”, segundo a qual estaríamos condenados a não sentir o aroma dos tabacos enquanto fumamos. Quando fui informado da “maldição” fiquei perplexo, pois, nestes poucos meses em que me dedico ao cachimbo, sempre senti, ainda que momentaneamente e em diferentes escalas, o aroma dos meus tabacos. Agora, neste livro, vejo que não estou só. O autor afirma, de maneira clara – e quase lírica:

“O homem tem cinco sentidos. O fumante inteligente precisa de todos os cinco para fruir plenamente de um cachimbo:
o paladar – porque ele saboreia a fumaça do tabaco na língua;
o olfato – porque ele aspira o perfume pelo nariz;
a visão – porque o cachimbo e as tênues nuvens de fumaça encantam os olhos;
o tato – porque é gostoso envolver o cachimbo com a mão e apalpar o fornilho;
a audição – porque o suave crepitar da brasa é música para o ouvido do fumante”.

Como vemos pelo texto desta página, em 1970 o Brasil ainda desconhecia "a ira dos intolerantes"
O livro termina oferecendo ao leitor algumas informações curiosas sobre fumantes célebres, das quais selecionei as que mais me agradaram exatamente por sua singularidade:

“William Thackeray [importante romancista inglês do século XIX] certa vez escreveu: ‘O cachimbo faz sair a sabedoria da boca do filósofo e fecha a boca do tolo’.”

“Thomas Yewat, um grande industrial de Ohio, quebrou por infelicidade um de seus cachimbos prediletos. Por causa disto durante três meses vestiu traje de luto.”

E a última, carregada de delicioso humor:

“São por demais conhecidas, mas tão espirituosas que merecem ser repetidas, as palavras do célebre caricaturista Paul Gavarni, dirigidas a um amigo, pouco antes de morrer: ‘Deixo-te meu cachimbo e minha mulher; cuide bem do cachimbo’.
Uma das ilustrações de Paul Gavarni

setembro 26, 2013

A saudável arte do cachimbo

Uma de minhas decisões mais acertadas foi, por influência de minha esposa, abandonar o charuto e migrar para o mundo dos cachimbos. A variedade de tabacos, a verdadeira arte que há em produzir e mesclar tabacos, além dos próprios cachimbos, com sua infinidade de tipos, marcas e formatos, dá vida a um universo muito mais interessante, sedutor e saboroso do que o dos charutos. Cada novo blend é uma viagem ao interior de sabores e perfumes inesperados; cada novo cachimbo carrega em suas curvas, em seu design, parcela dessa característica, infelizmente não muito comum nos homens, de continuamente se aperfeiçoar.

Ainda estou nos primeiros passos, mas já experimentei horas agradáveis utilizando o cachimbo como ponte para o mundo das abstrações, para a meditação, o simples e descomprometido lazer – e também para, no silêncio da madrugada, orar. O cachimbo é um permanente convite à introspecção.

Nas últimas semanas, fiz rápida pesquisa sobre livros que, publicados no Brasil, tratassem do tema. O resultado, é claro, foi decepcionante. Mas descobri, nesse deserto bibliográfico, um verdejante arbusto: Tabacos e cachimbos – de Cristóvão Colombo até hoje, de Alfredo A. Maia. O autor é decano da Confraria dos Amigos do Cachimbo e tem muito a ensinar. Coloco abaixo a capa e o Sumário, para que possam ter idéia do conjunto de informações – e recomendo a obra, manual seguro para os que se iniciam nessa nobre arte. O livro, infelizmente, não está disponível nas livrarias e só pode ser adquirido com o próprio autor via e-mail.



setembro 25, 2013

Antes do silêncio – Carmen Laforet e “Nada”

Carmen Laforet pertence àquele grupo de escritores notabilizados por uma única obra, que alcançou sucesso graças à confluência de vários fatores, incluindo o literário. No caso específico dessa catalã, é curioso que, depois do seu primeiro e famoso romance, Nada, a crítica tenha deixado de se empolgar com os poucos trabalhos que ela publicou – e há certa estranheza na maneira como Laforet acaba enveredando por uma senda de progressivo isolamento. Nem mesmo seu terceiro livro, La mujer nueva, narrativa de sua angustiada reconversão ao catolicismo – que lhe valeu o Prêmio Menorca, o Prêmio Nacional de Literatura e alguns problemas com a censura eclesiástica que vigorava na Espanha franquista –, demonstrou ter força suficiente para não apenas impor-se no quadro da literatura espanhola, mas, principalmente, convencer a escritora do seu próprio valor. Em 1963 surgiria um novo romance, La insolación, mas a partir desse ponto a voz de Laforet murcha até alcançar completo silêncio, sem cumprir o plano da trilogia intitulada Tres pasos fuera del tiempo, da qual La insolación seria o primeiro volume. O segundo, Al volver la esquina, surgirá postumamente, em 2004.

Assim, chega a ser desolador que o furacão provocado por Nada não tenha se repetido. Depois de vencer a primeira edição do Prêmio Nadal, o romance, publicado em 1945, ganhou reimpressões quase que imediatas. Mais tarde, em 1948, a Real Academia Espanhola distingue Laforet com o Prêmio Fastenrath, o que assegura ao livro um êxito que repercutiria nas décadas de 1950 e 1960, conquistando, até hoje, leitores e o respeito da crítica.

Sem diminuir o valor da obra, essa reação, quando analisada passado mais de meio século, pode ser facilmente compreendida: na Espanha em que o ódio entre franquistas e republicanos permanecia latente, com algumas das melhores vozes literárias exiladas, mortas ou silenciadas pela censura, parece natural que a jovem Carmen Laforet e sua personagem/narradora Andrea – ingênua, tímida e frágil, tentando se libertar de uma família moralmente devastada, e ao mesmo tempo ansiando por amizade, amor e segurança – arrebatassem o país. Elas se tornaram, sem dúvida, a metáfora de uma Espanha que, apesar da destruição e dos miasmas da guerra que também devastara a Europa, buscava renascer.

Pássaros escuros

O primeiro capítulo de Nada já mostra a desenvoltura de Laforet. Em meio à chegada solitária na Barcelona noturna, carregando a mala repleta de livros, Andrea registra as primeiras impressões da cidade – intensas, marcadas por um poder de síntese que recupera odores, luzes, sons – e o clima de crescente expectativa, rompido abruptamente, logo no primeiro contato com os familiares, “figuras alongadas, quietas e tristes, como luzes de um velório de interior”. A partir daí, a ansiedade da jovem se transmuta em pesadelo. O apartamento da rua Aribau fede, o banheiro parece povoado de figuras fantasmagóricas e a cama, preparada às pressas, coberta pela manta preta, assemelha-se a um ataúde. As ilusões se desfazem.

A família neurótica que a acolhe vive impulsionada por crises e escândalos. A violência entre irmãos impera. E o drama será levado ao extremo pela crescente pobreza, pela fome. Relacionando-se com desrespeito e cinismo, os parentes se apegam a seus mundinhos particulares, a certezas mesquinhas, afundando cada dia mais. Naquele apartamento se concentram os vícios humanos – e a narradora compara os moradores, acertadamente, aos personagens dos Caprichos de Goya. O texto de Laforet não tem a corrosão, a sátira ou o grotesco das gravuras do pintor, mas é igualmente implacável. Angustias, a tia hipócrita e autoritária, é “uma daquelas últimas folhas de outono, mortas na árvore antes de serem arrancadas pelo vento”. Em certo trecho, a narradora lembra: “Vejo que eram como pássaros envelhecidos e escuros, com os peitos arfantes por terem voado muito num pedaço de céu muito pequeno”. A única que guarda alguma dignidade é a avó, crédula, protegida em seu casulo quase arteriosclerótico, movendo-se pelo apartamento às escuras com “distinção espectral”.

Orfandade

A esses exemplares de uma classe média fracassada, Laforet contrapõe o mundo da universidade, com os amigos igualmente burgueses, mas abastados. Pouco saberemos dos estudos, das leituras de Andrea, mas acompanhamos a vergonha que sente por causa dos sapatos envelhecidos, o sentimento de inferioridade provocado pela pobreza e a renitente mania de presentear a amiga Ena e sua mãe, mesmo que isso signifique não ter dinheiro para comer. É a forma de Andrea mendigar atenção, amor.

A jornada da protagonista oscila entre preservar sua individualidade e construir relações que possam libertá-la da família – e também de seus medos, da insegurança, de suas carências. Sem amor-próprio, porém, ela se torna uma presa fácil das armadilhas que se escondem na vida social. Mesmo a amizade com um grupo de jovens boêmios ricos, supostos artistas, não se concretiza – ao contrário, todos os relacionamentos são pouco profundos, contaminados por um persistente sentimento de inadequação. Os dias mais felizes serão passados ao lado de Ena e seu namorado, Jaime. Andrea se alegra sinceramente pelos dois, mas sente-se deslocada; e, terminados os passeios, ela voltará a experimentar a solidão.

Há uma orfandade que supera o fato de ela ter perdido os pais. Seu desamparo é mais vasto, mais denso. E para amadurecer, Andrea pagará alto preço, nada aviltante, é verdade, mas constituído por uma série de descobertas dolorosas. E ela só consegue vencer algumas de suas inseguranças e abandonar a família depois de agir exatamente como não desejava: unindo seus dois mundos, ainda que durante brevíssimo tempo.

A solução para parcela dos problemas de Andrea virá na forma de um convite inesperado, o que interrompe a narrativa abruptamente. Fica-se, portanto, com a impressão de que o processo de amadurecimento não se completou. Ela se despede de nós – e jamais saberemos quais dos seus sonhos se concretizaram. Assim, diferente do que alguns dizem, Nada não é um clássico bildungsroman, pois enfoca tão-somente uma fase crítica da existência, passageira, aquela que ultrapassamos para garantir o direito de entrar na vida adulta.

Nômade

Fernando Valls, professor de literatura espanhola contemporânea da Universidade Autônoma de Barcelona, em artigo publicado no El País, em 23 de março de 2004, questiona-se sobre o misterioso silêncio de Carmen Laforet, do qual falávamos no início desta resenha. Na opinião de Valls, “tem-se a sensação de que, uma vez realizadas as obras que tinham como fundo as vicissitudes de sua própria biografia, ela não foi capaz de obter os mesmos sucessos com a invenção de outras vidas”. Mas o crítico também aponta, com absoluta razão, o caráter ético dessa escritora, salientando a “sensatez” e a “exigência incomuns que ela demonstrou ao reconhecer sua incapacidade para alcançar de novo essa arte sincera, humilde e verdadeira à qual aspirava com tamanho afã”.

Faltam-me elementos para avançar nessas reflexões. Mas tenho a viva impressão de que Laforet passou sua vida em permanente crise, sem jamais encontrar a resposta que pudesse satisfazê-la plenamente. Em 1956, cinco anos depois de reabraçar a fé, ela renunciaria ao catolicismo. E à medida que abandona a escrita, parece navegar sem rumo, nômade em busca de certezas, como se a descoberta de Andrea repercutisse em seu íntimo: “Eu então percebia, pela primeira vez, que tudo segue, desbota, estraga enquanto a vida continua. Que não existe final na nossa história até que chega a morte e o corpo se desfaz...”. Não por outro motivo seu principal romance chama-se Nada. Mas é terrível imaginar que a melancolia ou a sensação de vazio tenham dominado sua existência. Viver imersa em uma atmosfera soturna teria sido um peso excessivo, injusto, para essa mulher cuja voz renovadora conseguiu iluminar a Espanha submersa na cisão e no ódio.