— Tradução de
Péricles Eugênio da Silva Ramos.
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março 20, 2014
julho 19, 2011
Poesia e silêncio
Como se descobre “que não é a razão que traz tristeza ou alegria”? O homem aberto às epifanias que podem nos engolfar é um místico – e também, escreva ou não, um poeta.
O fato de poetas e místicos viverem êxtases e descreverem seus momentos de arrebatamento, mas submetidos aos limites dos sentidos e dos signos da linguagem, em nada desmerece os resultados. Estes, ao contrário, apenas reafirmam que o homem “não poderá nunca suprimir de todo a ansiedade que o impulsiona para uma meta que todavia não pode ser alcançada no tempo”, como afirmou um sábio teólogo contemporâneo, Divo Barsotti – “il cercatore di Dio”.
No caso dos poetas, o texto que nasce de um arroubo, ainda que não se assemelhe, na forma, às descrições místicas que podemos encontrar, por exemplo, nos escritos de Santa Teresa de Ávila, revela a mesma “inadaptação do nosso psiquismo às experiências espirituais insólitas” – segundo a perfeita descrição de êxtase que São João da Cruz elaborou.
É nesse contexto que se inscreve “Of mere being”, de Wallace Stevens:
A palmeira no final da mente,
Além do pensamento último, se eleva
Na brônzea distância,
Um pássaro de penas de ouro
Canta na palmeira, sem sentido humano,
Nem sentimento humano, um canto estrangeiro.
Então compreende-se que não é a razão
Que traz tristeza ou alegria.
O pássaro canta. As penas brilham.
A palmeira paira no limiar do espaço.
O vento roça devagar seus galhos.
As penas de fogo do pássaro pendem frouxas.
O estranho pássaro de Stevens é certamente o mesmo que Keats ouviu, aquela ave que “não nasceu para a morte” e que já havia sido escutada “no triste coração de Rute, quando, ansiando pelo lar, ela ficou chorando em meio ao trigo do estrangeiro”. Um “canto estrangeiro”, diz Stevens, sem “sentido” ou “sentimento” humanos. Visão ou sonho que sonhei desperto?, pergunta-se Keats em seu “Ode to a Nightingale” – e o próprio poema é a resposta, a frágil composição que restou do súbito encantamento.
Não é diferente o assombro de Eugenio Montale:
Talvez uma manhã andando num ar de vidro,
Voltando-me, verei cumprir-se o milagre:
O nada às minhas costas, detrás de mim
O vazio, com um terror de bêbedo.
Depois como numa tela, acamparão de um jato
Árvores casas colinas para a ilusão costumeira.
Mas será tarde já; e eu partirei calado
Entre os homens que não se voltam, com o meu segredo.
O caminhante na manhã envolta de um brilho inusual vê algo que se assemelha ao ouro e à “brônzea distância” do poema de Wallace Stevens. E o que, a princípio, parece um ofuscamento, transforma-se na revelação difícil de suportar. O “segredo”de Montale é parte do preço da experiência mística: “Se o homem”, afirma Divo Barsotti, “pudesse alcançar a finalidade de sua vida no tempo, depois de o haver conseguido, recairia no vazio de uma vida que não teria mais sentido”. Não por outro motivo as descrições dos êxtases – de místicos e poetas – são, quase sempre, sucintas e sempre algo incomuns, quando não confusas: como descrever o transporte cuja violência ofusca os sentidos, bem como a consciência de si e da realidade exterior?
julho 05, 2011
Diálogo com o “Endymion”
A nova manhã é um dom graças ao qual afastamos a mortalha de nossas almas. O angustiado insone; o trabalhador que percorre, madrugada adentro, os corredores mal iluminados do imenso galpão; o solitário que aguarda um telefonema improvável; o dorminhoco acossado por pesadelos repletos de culpa; o jovem cuja ansiedade estilhaça o sono em dezenas de partículas que debilitam ao invés de revigorar; o noctívago que, satisfeito por qualquer vício, se aproxima de sua morada e vê, por um instante, no reflexo da janela, o sol nascer às suas costas, como a lembrá-lo de que o seu prazer jamais será completo – todos eles, como diz John Keats, “malgrado o desespero, a carestia cruel de nobres naturezas e os sombreados e malsãos caminhos abertos para a nossa busca”, todos eles podem, graças à manhã, reencontrar a promessa que a Beleza esconde nas coisas mais improváveis: “a majestade dos destinos que imaginamos para os mortos poderosos, os lindos contos que nós vemos ou ouvimos ou as árvores que lançam a dádiva da sombra às ovelhas sem mal”. Tudo respira – e não por uma “curta hora”, mas para sempre. Assim, no último domingo, quando os sinos tocaram, chamando para a missa, e eu não estava lá fora – em algum velho quarto, remoendo minhas frustrações, ou circundado de pessoas que riem como profissionais e apenas contam, umas às outras, suas ínfimas vantagens –, mas acolhido na penumbra e no silêncio, ouvindo as badaladas repercutirem pela nave, então entendi como cada mínimo gesto pode se tornar sagrado; e imaginando até onde o repique dos sinos alcançaria, lembrei-me dos versos do Endymion: se, “como as árvores que murmuram em torno a um templo logo estão preciosas como o próprio templo”, então, de algum modo, todas as formas de Beleza se uniam a nós, ali, concentradas naquele Sacrifício que nos aturde e alegra, que se renova e é irrepetível. A vida inteira estava ali, pronta a renascer, “luz que incita nossa alma” – e une-se “a nós de modo tão estreito, que existam sobre nós trevas ou fulgor, ela deve estar sempre conosco, ou morremos”.
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