abril 26, 2009

Euclides da Cunha: leitor de Rimbaud?

Leopoldo Bernucci já demonstrou (em A imitação dos sentidos, Edusp/University of Colorado at Boulder), ao tratar do problema da mimese na obra de Euclides da Cunha – mimese não como representação da semelhança, mas, sim, da diferença –, as relações intertextuais que Os sertões mantém com, entre outros, Victor Hugo e Domingo Sarmiento.

Sabe-se, também, da influência que teve – não só no que se refere a sugestões de leitura, mas, ainda que de maneira indireta, na própria elaboração de Os sertões – o intendente de São José do Rio Pardo, Francisco Escobar. Entre 1898 e 1901, período durante o qual Euclides viveu nessa cidade, ocupando-se da reconstrução da ponte que ruíra, os dois estabeleceram profunda relação de amizade, prolongada depois em razoável número de cartas.

Escobar foi um autodidata extremamente culto, além de bibliófilo. Se os números apresentados por Ângelo Caio Mendes Correa Jr. estão corretos, sua biblioteca, com sete mil volumes, deve ter representado um universo sem precedentes para Euclides. Há quem afirme, inclusive, que Escobar apresentou ao amigo os clássicos de Portugal, como Alexandre Herculano, por exemplo, além de inúmeros outros escritores, exercendo, assim, influência sobre o estilo do autor de Os sertões.

Pergunto-me, no entanto, que outros livros Escobar teria emprestado a Euclides. A resposta talvez possa ser encontrada na biblioteca do intendente, que, anos depois, foi prefeito de Poços de Caldas. Onde estariam esses livros? Que surpresas esses alfarrábios, que pertenceram a um homem de vasta cultura, à frente do seu tempo e do seu atrasado país, escondem? Que pistas eles poderiam oferecer sobre aqueles anos fecundos em São José do Rio Pardo, que permitiram a Euclides elaborar, dar forma definitiva a Os sertões?

Há bom tempo guardo comigo uma suspeita: Escobar apresentou Rimbaud a Euclides.

Um poema de Rimbaud, “Le dormeur du val” (“O adormecido do vale”), sempre me interessou pela semelhança que guarda em relação a um dos trechos mais belos de Os sertões, conhecido pelo título de “Higrômetros singulares”.

O poema aparece em duas primeiras edições: Reliquaire, poésies, L. Genonceaux, Paris, 1891 (prefácio de Rodolphe Darzens) e Poésies completes, L. Vanier, 1895 (prefácio de Paul Verlaine). Um desses livros faria parte da biblioteca de Francisco Escobar?

A semelhança entre os textos (que coloco abaixo) é fascinante. Em Euclides, “um velho jardim em abandono”, com uma “árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a vegetação franzina”. Em Rimbaud, na tradução de Ivo Barroso, “um recanto verde onde um regato canta / doidamente a enredar nas ervas seus pendões / De prata”.

Em Euclides, “o sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão”. Em Rimbaud, “o sol, no monte que suplanta, / Brilha: um pequeno vale a espumejar clarões”.

Se o soldado, em Os sertões, tem “os braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes...”, no poema ele apresenta a “boca aberta, fronte ao vento, / [...] estendido sobre as relvas, ao relento, branco em seu leito verde onde chovia luz”.

Euclides fala da “ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranqüilo sono, à sombra daquela árvore benfazeja”. No poema de Rimbaud, o verbo dormir surge duas vezes.

A transposição me parece clara. Euclides tirou o soldado do vale verdejante de Rimbaud e colocou-o na aridez da caatinga, concedendo-lhe um novo e mais elaborado contexto, descrevendo-o no seu estilo às vezes hiperbólico, que em nada se assemelha ao de Rimbaud.

Escobar teria importado um dos volumes? Ele acompanhava os lançamentos editoriais franceses, hábito comum entre os brasileiros cultos daquela época? Ou trata-se apenas de um tema recorrente na literatura, mera coincidência, como em vários outros casos?

Fico com a primeira hipótese. E não apenas pela semelhança entre os textos, mas pelo fato de que grande parte do que é descrito em Os sertões não pertence ao gênero histórico, mas à pura ficção.


O adormecido do vale

Era um recanto verde onde um regato canta
Doidamente a enredar nas ervas seus pendões
De prata; e onde o sol, no monte que suplanta,
Brilha: um pequeno vale a espumejar clarões.

Jovem soldado, boca aberta, fronte ao vento,
E a refrescar a nuca entre os agriões azuis,
Dorme; estendido sobre as relvas, ao relento,
Branco em seu leito verde onde chovia luz.

Os pés nos juncos, dorme. E sorri no abandono,
De uma criança que risse, enferma, no seu sono:
Tem frio, ó Natureza – aquece-o no teu leito.

Os perfumes não mais lhe fremem as narinas;
Dorme ao sol, suas mãos a repousar supinas
Sobre o corpo. E tem dois furos rubros no peito.

Outubro de 1870.
(in Poesia completa, 2ª edição revista, Editora Topbooks, 1994, tradução de Ivo Barroso)


Higrômetros singulares

[...]
Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos, fugindo à monotonia de um canhoneio frouxo de tiros espaçados e soturnos, encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colinas se dispunham circulando um vale único. Pequenos arbustos, icozeiros virentes viçando em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes, davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim em abandono. Ao lado uma árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a vegetação franzina.

O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão e protegido por ela – braços largamente abertos, face volvida para os céus – um soldado descansava.

Descansava... havia três meses.

Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha da mannlicher estrondada, o cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra, certo, derreando-se à violenta pancada que lhe sulcara a fronte, manchada de uma escara preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos, não fora percebido. Não compartira, por isto, a vala comum de menos de um côvado de fundo em que eram jogados, formando pela última vez juntos, os companheiros abatidos na batalha. O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afina uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e deixara-o ali há três meses – braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes...

E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranqüilo sono, á sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme – o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria – lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares.

[...]
(in Os sertões – Campanha de Canudos, Ateliê Editorial/Imprensa Oficial – SP/Arquivo do Estado, 2002 – edição, prefácio, cronologia, notas e índices de Leopoldo M. Bernucci)

Um comentário:

Marcia C disse...

Prezado Sr. Rodrigo Gurgel,

Muito obrigada pelo seu post excelente. Apesar do atraso de anos, eu o encontrei agora que estou fazendo um artigo sobre as leituras de Euclides para escrever seus textos amazônicos, começando por Milton, com Paradise Lost. Seu texto é muito interessante, também acho que havia uma influência de Rimbaud em vários aspectos de Euclides. Abs,

Marcia Caetano