junho 25, 2012

Nelson Rodrigues: tragédia, obsessão e liberdade


Em sua última entrevista, concedida à Revista Visão em fevereiro de 1974, Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, que viria a falecer poucos meses depois, diz que “conquistar a tragédia é [...] a postura mais popular que existe: em nome do povo brasileiro, a conquista, a descoberta da tragédia, você conseguir fazer uma tragédia, olhar nos olhos da tragédia e fazer com que ela seja dominada”. Ele próprio explica melhor sua ideia, ao afirmar, de maneira alegórica, que, diante da primeira tragédia, “o povo grego devia sair em passeata, em carnaval”, conclamando: “finalmente temos a nossa tragédia, descobrimos, olhamos, estamos olhando nos olhos os grandes problemas da nossa vida, da nossa existência, da condição humana”. 

Sem desmerecer a dramaturgia de Vianinha, esses comentários representam perfeita introdução à obra de Nelson Rodrigues, seu contemporâneo, com quem, aliás, se antagonizou no início da década de 1960. E não me refiro apenas às peças teatrais de Nelson, mas também aos romances e às crônicas, relançados pela Editora Agir. No volume O reacionário – memórias e confissões há exemplos do que afirmo, a começar de uma constatação facilmente observável: Nelson pode ser lírico, dramático ou histriônico, pode ser corrosivo ou meigo, mas é sempre desmesurado, chegando a paroxismos. Tal busca do excessivo é não só dramática, mas trágica. Não importa se o texto tem a acrimônia das suas posições antiesquerditas, a sagacidade de sua psicologia social, ou nasce carregado de lancinante autobiografia – Nelson Rodrigues é sempre trágico. E não há qualquer exagero em afirmar que, ao ler seus textos, muitas vezes temos a impressão de reencontrar Édipo, cego, conduzido por Creonte, enquanto o corifeu proclama: “Até o dia fatal de cerrarmos os olhos / não devemos dizer que um mortal foi feliz de verdade / antes dele cruzar as fronteiras da vida inconstante / sem jamais ter provado o sabor de qualquer sofrimento!”.

Essa plena expressão do trágico não é apenas fruto de leituras escolhidas ou de algumas qualidades literárias. Não. Nelson viveu a tragédia, foi seu personagem, embriagou-se dela. Vejamos o que ele fala ao recordar o assassinato de seu irmão, na crônica “Memória nº 25”:

Três anos depois, descobri o teatro. De repente, descobri o teatro. Fui ver, com uns outros, um vaudeville. Durante os três atos, houve, ali, uma loucura de gargalhadas. Só um espectador não ria: – eu. Depois da morte de Roberto, aprendera a quase não rir; o meu próprio riso me feria e  envergonhava. E, no teatro, para não rir, eu comecei a pensar em Roberto e na nudez violada da autópsia. Mas no segundo ato, eu já achava que ninguém deve rir no teatro. Liguei as duas coisas: – teatro e martírio, teatro e desespero. No terceiro ato, ou no intervalo do segundo para o último, eu imaginei uma igreja. De repente, em tal igreja, o padre começa a engolir espadas, os coroinhas a plantar bananeiras, os santos a equilibrar laranjas no nariz como focas amestradas. Ao sair do vaudeville, eu levava, comigo, todo um projeto dramático definitivo. Acabava de tocar o mistério profundíssimo do teatro. Eis a verdade súbita que eu descobrira: – a peça para rir, com essa destinação específica, é tão obscena e idiota como o seria uma missa cômica.   

Descontada a afirmação de que ali, em poucos minutos, assistindo àquela comédia, ele elaborara seu “projeto dramático”, fica evidente o processo intuitivo que norteou a obra rodriguiana.  

Em uma de suas crônicas mais clássicas, “A menina”, a pungência da tragédia se instala lentamente. O leitmotiv da cegueira se propaga desde a primeira linha, contaminando o texto até o último momento, quando a condenação do herói cai sobre o leitor num impacto avassalante. Em doze parágrafos, Nelson Rodrigues sintetiza e explora todos os elementos da tragédia: o sofrimento que provoca, ao mesmo tempo, terror e compaixão; a condição humana, vítima do engano ou de um estranho magnetismo que, muitas vezes, nos atrai para a ruína; a dor imerecida. E apesar da destruição, da queda que lança o protagonista da segurança à desgraça, a dignidade intocável do herói: ele observa o drama no qual está enredado, reconhece, num átimo, os caminhos que o levaram até o destino atroz, mas segue adiante, sofrendo conscientemente, aguardando que Deus volte a abençoá-lo. “A menina” é um texto que deveríamos ler de joelhos.      

E como poderíamos definir a crônica “Paulo Rodrigues”? É um altar erigido em memória daqueles que amamos e, infelizmente, morreram antes de nós. A lamentação fúnebre nos surpreende no meio da noite, quando estamos indefesos, certos de que tudo está bem. Trata-se de um exemplo da ampla coleção de crônicas autobiográficas nas quais Nelson se coloca no papel do herói trágico: personagem e narrador; paciente e testemunha – mas submetido aos desígnios do destino.

Os trágicos nunca olham a morte como algo fortuito ou previsível, mas como a força que, inerente ao homem, o condena à fragilidade. “Na hora de morrer, e quando sabe que está morrendo – o homem tem um olhar súplice e insuportável de criança batida. Não, não, um olhar de contínuo. Sempre imagino que o arquiduque austríaco, com os intestinos de fora, morreu como o último dos contínuos”, diz Nelson Rodrigues.

A experiência da tragédia não se resume, no entanto, às mortes familiares. A tuberculose também se encarregou de moldar a forma de Nelson ver a existência. Os meses que viveu em contato íntimo com a morte – ouvindo as tosses que se repetiam noite adentro, compartilhando as frustrações de um tratamento que em nada se assemelha aos métodos da medicina contemporânea, podendo testemunhar a decadência física e moral dos companheiros de enfermaria – estão relatados em inúmeras crônicas. Mas “A casa dos mortos” guarda elementos peculiares: há nesse texto a síntese da técnica rodriguiana. O começo despretensioso engana o leitor. Segundos depois, percebemos que adentramos um túnel povoado de lembranças infelizes. Então, talvez desejando nos despistar mais uma vez, Nelson torna-se tragicômico. Mas há um tom grotesco que sibila por trás da narrativa, como se a tragédia não aceitasse ser destronada pela comédia. Até que, três parágrafos antes do fim, a primeira vence, qualquer possibilidade de riso desaparece, e a derrota humana surge na sua forma mais abjeta: espelhando-se na derrota animal. O escritor se lembraria para sempre daquele primeiro período em que lutou contra a doença, em Campos de Jordão: “No Sanatorinho, aprendi a olhar no fundo da nossa brutal e indefesa fragilidade. Ninguém é forte”.

Igualmente trágica é a sinceridade de Nelson. Seus relatos sobre como pedia aos colegas para que escrevessem elogiando suas peças, ou a confissão de ter escrito artigos furiosos contra o crítico Álvaro Lins, que repugnara Álbum de família, mas assinando-os, pusilânime, com os nomes dos amigos, colocam-no na condição do herói que busca purgar a própria culpa. Herói solitário, cujo isolamento ganha uma dolorosa concretude no contraponto da crônica “O autor sem apoteose”: de um lado, a fama, o sucesso brilhando nas “cintilações delirantes do lustre do Municipal”; de outro, a fria realidade do bife com fritas, na solidão depois da primeira apresentação de Vestido de noiva.

As coisas ditas uma vez

O estilo de Nelson Rodrigues é uma prova de que os manuais nem sempre estão certos. Ele caminha, por exemplo, na contramão do ideário poundiano, incansavelmente disseminado no Brasil, e não se preocupa em condensar a mensagem num mínimo pouco inteligível de palavras, como as novíssimas gerações gostam de fazer. Ao contrário, sua adjetivação desconhece barragens e os superlativos são usados sem pudor.

A composição de sua frase ganha, assim, uma potência que reanima os substantivos; e suas metáforas, ainda que paguem, algumas vezes, o preço da grandiloquência, guardam certa brutalidade, certa carga muitas vezes quase indecorosa, que coloca a língua em um surpreendente patamar. A psicanálise é a “joia da ociosidade”, a “flor do lazer”. Um amigo “tinha a tal voz fininha de criança que baixa em centro espírita”. Ao falar de sua própria ingenuidade, trata-a como “crassa e espessa”. Há “homens fluviais”, aqueles que fertilizam várias gerações com suas ideias. E há também as “verdades totais”, o “extrovertido ululante” (“ululante” é um dos seus qualificativos prediletos), a “polidez hedionda”. A dignidade de Quintino Bocaiuva torna-se incontestável diante da afirmativa: “Saía da redação como uma estátua que volta ao seu monumento”. “No centro de Londres, com um sol de rachar catedrais”, um amigo vê “um inglês, de casaca e cartola, deslizando como um cisne”. Os suspensórios que trazem desenhos de vaquinhas, carneirinhos, etc., são definidos como “um presépio liliputiano”. E falando de si próprio, ele diz, “eu era pequenino e cabeçudo como um anão de Velásquez”.

Somemos essa linguagem aos personagens recorrentes – o milionário paulista, a estagiária de calcanhar sujo, o padre e a freira de passeata, etc. –, aos temas que ele ataca de maneira obsessiva – Nelson confessaria: “eu sou uma flor de obsessão” –, e teremos um todo multifacetado e coerente, centenas de crônicas que, enfeixadas, poderiam ser um vasto romance, o grande romance brasileiro, o panorama de uma época. E não nos enganemos: tudo é intencional nessa obra. O próprio Nelson nos diz: “Aprendi que as coisas ditas uma vez e só uma vez, morrem inéditas”.

Rei dos oximoros, Nelson também é o cultor por excelência das contradições. Moralista ao estilo de La Rochefoucauld, ele pode desacreditar dos homens e, ao mesmo tempo, endeusar aqueles que escolhe. Defende o amor eterno, o amor predestinado de almas supostamente gêmeas, mas também afirma que “sem um mínimo de morbidez, ninguém consegue gostar de ninguém. O amor ou é puro desejo ou, menos do que isso, a posse sem desejo”. Em “A mulher da gargalhada”, faz um estudo antropológico sobre a decadência da civilidade e do pudor, mas páginas depois se deixa arrebatar por alguma vulgaridade, estarrecendo seus leitores, que não sabem quanto do seu discurso é puro sarcasmo. Na crônica “O milionário não sabe comer”, revela-se um refinado psicólogo social, mas nega-se a aceitar ou compreender os movimentos sociais que se opõem à ditadura, a chamada “opinião pública”, para ele, “uma doente mental”.

Vaticínios

Carlos Heitor Cony acertou em grande parte do que escreveu no prefácio que abre O reacionário – memórias e confissões, mas erra ao dizer que “as crônicas de Nelson são datadas”.

Na verdade, Nelson Rodrigues foi profético. Se as críticas que fazia aos regimes comunistas, entre as décadas de 1960 e 70, pareciam reacionárias, o tempo as transformou em peças de clarividência e sensatez. Não é magnífico ler essas crônicas e ver as tolices que já foram escritas neste país? Imaginem Alceu de Amoroso Lima defendendo a Revolução Cultural chinesa. Devia provocar orgasmos na esquerda de 1971. Mas, hoje, quem se atreveria a tal disparate, a não ser – outro adorado personagem de Nelson – o eterno “débil mental por simples pose ideológica”?

Fiel às suas contradições, Nelson Rodrigues, censurado diversas vezes, tripudia sobre a esquerda em nome da liberdade – “Eu sou um homem que põe a liberdade acima do pão”, ele diz –, e, vivendo sob a ditadura militar, chega a tecer elogios ao general-presidente Garrastazu Médici. Mas ninguém pode acusá-lo de ser tímido ou hipócrita. Ele jamais teceu um discurso melífluo, que se autodesculpa a cada parágrafo ou faz contorcionismos retóricos para edulcorar o que deseja dizer e, assim, agradar igrejinhas, manter-se amigo de todos. A seu modo, permaneceu coerente até o fim, ironizando os que defendiam “a marcha irreversível para o socialismo”: “Acho admirável a simplicidade com que o mestre [Alceu Amoroso Lima] administra a História, sem dar satisfações a ninguém, e muito menos à própria História. Não lhe faria mal um pouco mais de modéstia”.

Hoje, quando as utopias mostraram-se falsas e inexequíveis, quando o pensamento anti-histórico foi derrotado, a arte de Nelson Rodrigues permanece atual e incólume. E se, como ele bem anteviu, a “ascensão dos idiotas” prossegue, voltar à sua obra representa – neste império de filisteus – um exercício de prazer e lucidez.

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