dezembro 09, 2014

O bom escritor: mestre dos detalhes

"A literatura nos ensina a observar" — James Wood
Para que servem os detalhes na literatura?

Eles não são apenas o ponto de fuga de um cenário, para onde o olhar do personagem se desvia a fim de descobrir um centro de equilíbrio. Ou o elemento que o escritor utiliza para estabelecer um contraste com o restante do espaço e, assim, dar concretude às proporções.

Estas são funções importantes, sem dúvida, mas refiro-me a outro tipo de detalhe.

Falo daquele detalhe que, segundo James Wood, quando usado na literatura, “faz com que nos fixemos mais na vida”. Vida que, por sua vez, “nos faz melhores leitores dos detalhes na literatura”.

Nessa inter-relação entre vida e literatura, a segunda difere da primeira, pois, segundo a correta observação de Wood, “a vida está repleta de detalhes acumulados e raramente nos leva para eles, enquanto a literatura nos ensina a observar.”

Quem leu Madame Bovary deve lembrar da cena em que, numa das primeiras visitas de Charles à Quinta dos Bertaux, o futuro casal bebe licor. Depois de servir a si mesma uma dose pequena, Emma leva o copinho à boca e Flaubert escreve:

“Como estava quase vazio, ela inclinava-se para trás, para beber; e com a cabeça deitada, avançando os lábios, com o pescoço retesado, ria por nada sentir, enquanto, passando a ponta da língua entre os dentes finos, lambia aos poucos o fundo do copo”.

Prestem atenção ao riso, à língua que brota entre os dentes como se fosse uma delicada serpente: as diversas compulsões de Emma, que se revelarão ao longo do romance, estão todas concentradas nesse divertido, breve gesto de luxúria.

Em “A dama do cachorrinho”, de Anton Tchekhov, depois que Gurov e Ana têm a primeira relação amorosa, enquanto Ana sente-se culpada e sofre por ter traído o esposo, Gurov, então sempre pronto a odiar as mulheres, corta um pedaço de melancia e come “sem se apressar”, diz o narrador, passando meia hora em silêncio.

O ato de comer e o vermelho que brota da fruta intensificam o descaso do amante — e se contrapõem à mulher agora desolada, de traços murchos e “cabelos que pendem tristemente dos lados do rosto”.

Enquanto Gurov se lambuza na polpa da fruta, como se repetisse o que acabara de fazer com Ana, esta, sem qualquer vivacidade, sob a penumbra da vela que mal ilumina seu rosto, exala “a pureza de uma mulher correta, ingênua, que vivera pouco”.

As oposições que percebemos entre o prazer consumado, a indiferença e o sofrimento concentram-se todas no vermelho da melancia.

Esta é a força dos detalhes — eles destroem as generalizações e, como diz Vladimir Nabokov, carregam, nas suas incongruências, o poder de descrever fatos e personagens.

Um comentário:

Cleomar Santos disse...

É comum não nos determos nos detalhes, até por que, seria impossível sair de algum lugar se tentássemos o detalhar, mas, por vezes, é no detalhe que se expressa o elemento mais contundente da realidade. Difícil escolher entre a praticidade e o aprofundamento!