maio 17, 2012

A coragem de Jean Daniélou, cardeal jesuíta


Minha primeira ideia foi dar a este post um título provocativo – A crise dos jesuítas na América Latina, Parte 2 –, pois ele é, sob muitos aspectos, uma continuação do texto que publiquei no início deste mês, repercutindo, com informações sobre alguns dos jesuítas brasileiros, o artigo do vaticanista Andrés Beltramo, La crisis de los jesuitas (latinoamericanos).

Não o fiz, contudo, para salientar a figura do cardeal Daniélou, cujo pensamento foi objeto de recente jornada de estudos na Pontificia Università della Santa Croce, em Roma, e de quem o vaticanista Sandro Magister publicou, há poucos dias, uma incrível entrevista, originalmente feita em 1972, mas que apresenta respostas, infelizmente atualíssimas, sobre as causas da decadência da vida religiosa.

Magister afirma que, na época, “a entrevista foi lida como uma acusação lançada contra a Companhia de Jesus”, e que o jesuíta Bruno Ribes, então diretor da revista Études, mostrou-se como um dos mais ativos em destruir a reputação de Daniélou.

À parte essas questões, a corajosa entrevista fala por si mesma (em espanhol, italiano, inglês e francês). A seguir, alguns dos melhores trechos:

Penso que há, atualmente, uma crise muito grave da vida religiosa e que não se deve falar de renovação, mas, sim, de decadência. [...] Esta crise se manifesta em todas as esferas. Os ensinamentos evangélicos já não são considerados como consagração a Deus, mas são vistos numa perspectiva sociológica e psicológica. Preocupamo-nos em não apresentar uma fachada burguesa, mas, no plano individual, não se pratica a pobreza. A dinâmica de grupo substitui a obediência religiosa; com o pretexto de reagir contra o formalismo, abandona-se toda a vida de oração segundo as Regras [...].

A fonte essencial dessa crise é uma falsa interpretação do Vaticano II. As diretivas do Concílio eram claríssimas: maior fidelidade dos religiosos e religiosas às exigências do Evangelho, expressadas nas Constituições de cada instituto e, ao mesmo tempo, uma adaptação das modalidades dessas Constituições às condições da vida moderna. [...] Mas, em muitos casos, as diretivas do Vaticano II são substituídas por ideologias errôneas, colocadas em circulação por revistas, congressos e teólogos. Entre esses erros, podemos mencionar:

– A secularização. O Vaticano II declarou que os valores humanos devem ser levados a sério. Jamais disse que devemos ingressar num mundo secularizado, no sentido de que a dimensão religiosa já não haverá de estar presente na civilização; e é em nome de uma falsa secularização que religiosos e religiosas renunciam aos seus hábitos, abandonam suas obras para inserir-se em instituições seculares, substituindo a adoração a Deus por atividades sociais e políticas. Entre outras coisas, vão na contramão no que se refere à necessidade de espiritualidade que se manifesta no mundo de hoje.

– Uma falsa concepção de liberdade que leva consigo a desvalorização das Constituições e Regras, e exalta a espontaneidade e a improvisação. Isto é tanto mais absurdo quanto a sociedade ocidental sofre atualmente de uma ausência de disciplina da liberdade.

– Uma concepção errônea da mutação do homem e da Igreja. Ainda quando os contextos mudam, os elementos constitutivos do homem e da Igreja são permanentes [...].

Como afirmei acima, a entrevista tem incrível e triste atualidade. É como se o cardeal Daniélou tivesse acabado de falar à Rádio Vaticano. E torna-se impossível, depois de ler sua íntegra, não retornar aos textos de Andrés Beltramo [La crisis de los jesuitas (latinoamericanos) e Más de jesuitas latinoamericanos (impresentables)] ou às afirmações que fiz em meu post. E que repito: Não, não se trata de uma crise eventual, infelizmente. Trata-se, na verdade, de nítida ruptura, de escancarado desejo de insubordinação, de um patente movimento de secularização e laxismo – que, pelo visto, teve início há várias décadas.

Nenhum comentário: