maio 30, 2009

Clube dos colecionadores de figurinhas do sabonete Eucalol


Analisando os comentários do post abaixo – e agradeço aos comentaristas que aceitaram participar do debate –, vejo que ao menos em um ponto a maioria concorda: repete-se, entre nós, o hábito de entender a crítica literária como ofensa pessoal. E quando isso ocorre, a reação é sempre a mesma: desqualificar o crítico, muitas vezes de maneira injuriosa.

A outra face da moeda – representada pelo crítico servil ou pelos resenhistas (muitos deles também escritores) que se especializaram nos elogios mútuos – é, assim, o complemento perfeito, adequado, à realidade promíscua que caracteriza, em grande parte, a vida literária brasileira.

O escritor e tradutor Francisco Carlos Lopes – autor de Nó de sombras e Dobras da noite (ambos publicados pelo Instituto Moreira Salles) – defende uma tese curiosa sobre todos esses fenômenos, tese que poderia ser resumida em um só pensamento: a relação de compadrio, presente na política desde sempre, também corrompeu a literatura.

O longo comentário de Chico Lopes – enviado por e-mail na última quinta-feira –, que, com autorização do escritor, reproduzo abaixo, é um exercício de lucidez, de grande honestidade:

Rodrigo:

[...]

Em todo caso, o que queria dizer é que esse negócio de não poder julgar os trabalhos de amigos escritores com isenção, em termos puramente literários, é uma miséria tipicamente brasileira (outra delas). Deriva do espírito de "patota", que é inevitável entre nós, e que faz com que a literatura, tão minoritária, tão "clube dos colecionadores de figurinhas do sabonete Eucalol" em termos numéricos e expressivos na inculta sociedade brasileira, se componha de gente excêntrica cujo único motivo para existir é uma vaidade renitente.

Ora, tendo este como único motivo, na verdade, cumpre manter o compadrismo, não ofender ninguém, ser um sujeito sempre simpático, prestativo, generoso, nada crítico.
Não há, na verdade, clima para discussões estritamente literárias e estéticas e vontade de aperfeiçoar nada por esse lado. Aperfeiçoa-se, isto sim, as relações, como se beneficiar (e até de maneiras extra-literárias) delas, como chegar a editores e gente mais famosa etc. e aperfeiçoa-se a arte de nada dizer que possa afetar ilusões compartilhadas.
O sujeito que insistir nisso – na crítica, desprovida de "amizade" por amor à crítica, à mera verdade – será visto como antipático, discriminado e, se não for excluído do clubinho, será ao menos um membro muito evitado e pouco convidado, digamos...

Porque, na verdade, a Literatura aí, como arte que se depura, interessa pouquíssimo. E fica proibido, como em outros clubes de outras finalidades, que se toque em temas-tabu – já que a estrutura é tão frágil, a coisa tão presunçosa e baseada em tão voláteis famas e tão poucos talentos reais, que a verdade pode pôr tudo abaixo facilmente, e aquele que ousou proferi-la será odiado.

O que você disse é verdade – a festa é pequena e os dançarinos são poucos, e é feio ser muito exigente, quando se está em minoria – é preciso ser, acima de tudo, solidário e compassivo, não apresentar critérios ou requisitos de qualidade muito rígidos, levando em conta que todo mundo dança mais ou menos mal ou é francamente capenga.

A gente, por educação, consideração e, em não raros casos, compaixão, se abstém de dizer o óbvio – que o livro que Fulano nos mandou, na esperança de uma força, é medíocre ou precisaria passar por muita purgação e reescritura para se tornar melhor ou apenas digno de consideração.

Já passei muito por isso, cometi vários pecados de bondade ou complacência, ganhando amizades que passavam, então, a ter precisamente o tabu supracitado: nada de dizer a verdade sobre o trabalho do amigo, que ele tinha que ser mais humilde, se aperfeiçoar, escrever melhor, ouvir críticas. Um dia, porém, a complacência acaba, alguma coisa mais real se ventila, e tudo vai por água abaixo, já que o narcisismo primário que preside esses clubinhos é implacável, nesses momentos. Tudo acaba em carrancas, diz-que, diz-que, nas intrigas mais baixas, com os vaidosinhos se digladiando e propagando venenos e escrotidões. O reino da verdade acaba, por pura perversão, sendo o reino da realidade recalcada, o terreno minado onde ninguém de bom-tom deveria ter pisado...

Então acontece, com frequência fatal, que o sujeito mais verdadeiro se esquive voluntariamente, fique mais insociável, digamos, mais eremita, para evitar ser mal-educado ou simplesmente autêntico, mas seus escrúpulos serão mal compreendidos e isso acabará por ser tomado como arrogância.

O que se pretende é abolir toda e qualquer hierarquia de qualidade em nome de uma solidariedade grupal muito falsa e eufórica. O que se pretende é que a música continue tocando e os dançarinos, bons, ruins, chinfrins, proibidos de serem refinados e exigentes, continuem dançando.
O sujeito mais consciente, que se absteve de entrar na dança e segue mudo, é um desmancha-prazer, um chato ressentido, nada mais que isso...

Não somos, brasileiros dados a escritores, digamos, amigos da severidade, da análise, da tarefa óbvia de separar joio do trigo. Não queremos ser desmentidos em nossas ilusões, queremos euforias, números falsos, estímulos, festinhas, beijos, abraços, elogios, nada mais que foguetório...
Por isso é tão difícil lidar com isso – porque apela-se mais para o talento de festeiro e mentiroso, compadre e sujeito simpático, que para a qualificação real. Não há jeito...O sujeito dotado de lucidez e espírito crítico acabará fora do baile.

Era o que eu queria dizer.
Abraços e parabéns.

Chico Lopes

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