janeiro 09, 2015

Não acredite que a inspiração fará o trabalho pesado

Nenhum escritor se submete ao que desconhece
Certos escritores insistem na idéia de que o ato de narrar tem algo de místico.

Já falei aqui sobre autores que se dizem dominados por suas personagens. Mas há também aqueles que afirmam não escolher suas próprias histórias: “Elas se impõem”, falam alguns, como se narrativas surgissem do nada ou fossem desfiadas por um gênio semelhante à criança que, sem saber o que faz, puxa o fio de um novelo.

É evidente que há uma base de intuição no processo criativo — mas é também evidente que, dentre as várias histórias possíveis, a escolha de uma em especial obedece a determinado conjunto de auto-imposições: ninguém, em sã consciência, decide escrever sobre o que desconhece ou não pesquisou.

Um autor não precisa ter a experiência de Joseph Conrad para escrever aventuras marítimas, mas será obrigado, como Patrick O’Brian, por exemplo, a fazer minuciosas pesquisas, consultar especialistas, viajar. (Leiam a entrevista de O’Brian na Paris Review.)

E não bastam apenas pesquisas. Devemos pensar no planejamento que uma obra requer — para evitar incongruências, absurdos.

Hoje, quando qualquer conto ampliado recebe o nome de “romance”, o planejamento tem merecido o menosprezo de alguns supostos experts e de muitos escritores.

Mas quem se dispuser a ir além de um conto estendido deve se preparar para escolher um tema que lhe seja de alguma forma próximo — ou se dispor a planejamento e pesquisa exaustivos. Sua história não descerá rutilante e pronta dos céus.

E se uma história, como alguns escritores místicos gostam de dizer, se impõe, ela certamente o faz porque foi alimentada no imaginário. Estava ali, nas sombras da mente do autor, tomando forma, aguardando para escapar. E ele não pode dizer que a desconhecia.

Nenhum escritor se submete ao que desconhece. Só os navegantes de primeira viagem cometem o erro de abraçar um tema que não dominam ou que sequer imaginam como poderão dominar.

Quando um principiante percebe o erro que cometeu, sua primeira reação é tentar resumir, em 50 páginas, o que precisaria de 400 para ser narrado. Um autor experiente abandonaria o projeto ou faria um conto. Ou enfrentaria as dificuldades — e teríamos 400 páginas empolgantes.

Além disso, dizer que a história se impõe é autodepreciar-se. E toda a habilidade técnica, todo o domínio do idioma, da capacidade de imaginar e narrar?

Tudo nasce da inspiração? E as anotações feitas? E o número de horas debruçado sobre o papel, além dos longos dias em que, fazendo outras coisas, o escritor, na verdade, só pensa na sua história?

Os novatos, portanto, devem acreditar menos nas afirmações quase sobrenaturais de certos autores — e confiar mais na certeza de que escrever exige dedicação, reflexões, esforço, aperfeiçoamento constante, domínio do idioma. Além de um mergulho sem volta na psicologia humana.

Portanto, se, no início, sentindo-se inseguro, você não consegue ir além de um ou dois personagens, de um ou dois cenários, de uma trama simples, não se angustie: escreva sua história como for possível, dentro dos seus limites. Mas não acredite que a inspiração fará o trabalho pesado.

Certa imagem, um gesto, a leitura de uma notícia, o fragmento de conversa no ônibus podem desencadear, sem dúvida, a imaginação. Mas esse é apenas o início, o primeiro passo de um longo trabalho.

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