novembro 10, 2007


Um final farsesco


Acabo de ler As Benevolentes, de Jonathan Littell. Decepcionante, para dizer o mínimo. O autor consegue destruir, nas páginas finais, um belo romance. Da página 882 em diante, até a última linha, na página 896, o castelo que ganhou o Goncourt de 2006 desmorona. A weltanschauung do jurista e oficial da SS Maximilian Aube, sua formidável personalidade, dividida entre o cinismo, a culpa, a neurose, a obediência cega, a paixão pela irmã e uma rara capacidade de auto-análise, tudo vem abaixo, num formidável e inesquecível gesto de desrespeito pelo leitor, que se vê transportado, subitamente, a uma verdadeira farsa. Assim, as quase 900 páginas tornam-se uma ardilosa mentira, um embuste. E a obra que poderia ser, como apregoaram os exaltados de sempre, um novo Guerra e paz, transforma-se numa estupidez pueril, numa pilhéria. Se há, como propôs Wayne Booth, uma "ética da ficção", ela deveria ser esfregada nas fuças de Littell. Aliás, agora percebo que 99% do que li sobre o livro na imprensa brasileira e internacional foi escrito por pessoas que não leram a obra até o fim. Ou seja, o autor é só o primeiro agente desse engodo editorial.

10 comentários:

Gregório Dantas disse...

Li o primeiro capítulo muito empolgado, e ainda pensava em comprar o livro. Não sei se vou encarar. Entendo sua frustração: suponho (apenas suponho, pois não sei direito do que você está falando) que a farsa seja um atenuante para o que veio antes. Talvez por isso tanta gente tenha gostado: pode haver um narrador gay e nazista pode, mas só se for de mentirinha.

Eu disse bobagem ou é por aí?

digo disse...

Salve, Gregório! O narrador não é apenas gay e nazista -- mas muito mais. Trata-se de um personagem dividido, angustiado, muitas vezes contraditório. E por trás dessa personalidade luxuriante há um meticuloso trabalho de reconstituição histórica. Contudo, subitamente, o que, durante 800 páginas, foi tratado como épico e dramático, se transforma em gozação. De repente, o leitor se vê traído, alvo da troça, da chacota de um autor que ou foi imaturo, ou -- o que seria pior -- preferiu, de maneira proposital, inocular farsa -- uma comicidade grotesca, de péssima qualidade --, ao drama. Da página 882 em diante, o leitor pára e, tristemente, percebe que caiu numa armadilha. E as páginas restantes não apenas destoam de todo o universo apresentado, mas se restringem a uma decepcionante zombaria. Talvez você esteja certo quando diz que "talvez por isso tanta gente tenha gostado: pode haver um narrador gay e nazista pode, mas só se for de mentirinha"... Mas é triste perceber que o autor não teve coragem e hombridade para permitir ao seu protagonista/narrador a grandiosidade que ele merecia.

Gregório Dantas disse...

É, Rodrigo, eu entendo. Afinal, nós, como leitores, fazemos um investimento no livro. Em um megaromance de 900 páginas, com grandes personagens, um romance que se mostra corajoso ao abordar certos temas e assumir um cinismo terrível, nesse caso o investimento é ainda maior.

Também não gosto quando brincam com coisa séria...

Grande abraço!

digo disse...

Ainda refletindo sobre o livro, Gregório, o autor parece não ter suportado o peso da sua criação. Conceder à narrativa e ao personagem o fim que eles mereciam seria abdicar do "politicamente correto", um ônus para o qual Littell não estava preparado. Dividido, ele optou pela solução mais fácil -- e também mais covarde: transformar tudo numa comédia de baixo nível.

J.L. disse...

Nossa. Estou na página 840 dele. Até fiquei com medo de terminá-lo, agora. Daqui a algumas horas, saberei..

digo disse...

Vamos ver o que vc acha, Jonas... Grande abraço!

Beatriz disse...

Rodrigo, o ronald Lino achou a mesma coisa. Olha só que coincidência, ontem ele me falou disso!

Beatriz disse...

meu palpite? diante do nazismo não há nada coerente! qualquer um se atrapalha.

Anônimo disse...

Caro Rodrigo,
Lendo seu blog revivi a frustração que tive ao terminar de ler o livro.
Cheguei mesmo a ficar com raiva!
Concordo com você. Uma perspectiva bem interessante de se enxergar a experiência vivida durante a Segunda Guerra tornou-se uma farsa burlesca.
Um abraço, Ronald

digo disse...

Meu caro Ronald, essa observação, vinda de um leitor obstinado como você, só me acalenta. Obrigado pela visita e um saudoso abraço!