abril 14, 2007

Pernetas


A manhã prometia o de sempre: caminhar até o metrô, ser prensado pela massa de suor, descer na estação, enfrentar duas filas para transpor as escadas rolantes, andar três quarteirões, fechar-se no escritório e deixar que o tempo passasse entre uma assinatura e outra.

Do lado de fora do apartamento – banho tomado, barba feita, terno e gravata impecáveis, camisa branquíssima, sapatos engraxados e cabelo emplastrado de brilhantina –, a chave não obedecia. As ranhuras não encontravam resistência na entrada, mas a haste se negava a girar. Colocou a pasta no chão e tentou novamente. Nada. Abriu e fechou a porta, usou de suavidade, assoprou na fechadura – em vão. Entrou, foi até a escrivaninha e trouxe de lá uma chave sobressalente. Nem sinal de girar. Bateu a porta. Não era possível. Telefonaria para um chaveiro? Seria preciso faltar da repartição? Andou pra lá e pra cá, tomou um copo d’água, assobiou a Marselhesa e resolveu insistir. Primeiro, do lado de dentro: funcionava. Depois, do lado de fora, com cuidado, sem tremer. Girou como sempre, enfim. Fez um novo teste, pois não queria surpresas na volta: perfeito.

Pensava que o contratempo iria complicar tudo. Mas ao chegar à estação, encontrou alguns gatos pingados, nada mais. Olhando o relógio, viu que não estava tão atrasado. Na plataforma, uma dúzia de pessoas nem um pouco afobadas. O trem foi parando e as janelas mostravam os interiores quase vazios. As portas se abriram, ele entrou, e apenas cinco cabeças viraram em sua direção. Se vinte minutos de diferença podiam mudar as coisas assim, o ideal seria atrasar-se todos os dias... Foi quando um dos passageiros se levantou e, apoiando-se na muleta e nos bancos vazios, veio sentar na sua frente. O homem tinha apenas uma perna. No lugar da outra, o pano dobrado e preso com alfinetes. Era moreno, semblante de índio, cabelos lisos e negros mal divididos do lado esquerdo. Olhava-o, inquiridor. O trem corria, rompendo a escuridão, e o perneta com os olhos nele. Mudou de lugar. Então se deu conta: todos os cinco tinham apenas uma perna. Todos usavam muletas. Todos o observavam, olhos fixos nas suas duas pernas, ou melhor, naquela segunda perna errada, fora de lugar, fora de propósito. Sentiu o suor escorrer pela nuca e, lentamente, encharcar o colarinho. O trem corria, e ele não tinha certeza de quantas estações faltavam. Mas o condutor anunciou a próxima parada: a sua. Pôs-se de pé, tenso, e aguardou, aguardou infinitamente, enquanto o olhavam. Assim que as portas abriram, correu como um doido, cruzou as escadas rolantes em poucos segundos, até chegar à rua, onde respirou fundo, seguro.

Ninguém percebeu o atraso. Quando o expediente se aproximava do final, acordou para o fato de que a secretária não o procurara nem uma vez. Abriu a porta devagar e olhou pela fresta: a moça estava sentada na mesinha, os olhos perdidos na parede, cantarolando. Fechou e deu voltas pela sala, preocupado. O que acontecia? A chave, os pernetas, agora isto. Um novo decreto que ele desconhecia? Fora exonerado e o superior aguardava a hora propícia para avisá-lo?

Decidiu voltar de táxi. Os engarrafamentos de costume, o calor no carro sem ar-refrigerado. Entrou no prédio e pegou o elevador. Rezando, enfiou a chave. Quando foi girá-la, a porta se abriu de repente e, sob a luz do hall, deparou-se com uma velhinha. Olharam-se sem nada entender, e ele estava a um passo de agredi-la por invadir seu apartamento, quando viu o número na porta: 71. Um misto de confusão e serenidade o preencheu. Sorrindo, sem graça, pediu desculpas e usou as escadas para subir ao oitavo andar. Relaxado, pronto a concluir o dia, enfiou a chave na fechadura. Mas o tambor não girava. Insistiu, forçou a porta, tentou novamente: nada. Sentou-se no chão, junto à entrada, esperando o mesmo milagre da manhã. Então escutou um barulho. Colou o ouvido na porta. Um arrastar de pé e um baque seco. De novo. E mais uma vez. Alguém caminhava lá dentro. Alguém com uma muleta.

(Crônica publicada na edição de 6 de abril de 2007 do jornal Bom Dia Jundiaí.)

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