Uma de minhas
decisões mais acertadas foi, por influência de minha esposa, abandonar o
charuto e migrar para o mundo dos cachimbos. A variedade de tabacos, a
verdadeira arte que há em produzir e mesclar tabacos, além dos próprios
cachimbos, com sua infinidade de tipos, marcas e formatos, dá vida a um
universo muito mais interessante, sedutor e saboroso do que o dos charutos. Cada
novo blend é uma viagem ao interior
de sabores e perfumes inesperados; cada novo cachimbo carrega em suas curvas,
em seu design, parcela dessa característica,
infelizmente não muito comum nos homens, de continuamente se aperfeiçoar. Ainda estou nos
primeiros passos, mas já experimentei horas agradáveis utilizando o cachimbo
como ponte para o mundo das abstrações, para a meditação, o simples e descomprometido
lazer – e também para, no silêncio da madrugada, orar. O cachimbo é um
permanente convite à introspecção. Nas últimas semanas, fiz rápida
pesquisa sobre livros que, publicados no Brasil, tratassem do tema. O
resultado, é claro, foi decepcionante. Mas descobri, nesse deserto
bibliográfico, um verdejante arbusto: Tabacos
e cachimbos – de Cristóvão Colombo até hoje, de Alfredo A. Maia. O autor é decano
da Confraria dos Amigos do Cachimbo e
tem muito a ensinar. Coloco abaixo a capa e o Sumário, para que possam ter
idéia do conjunto de informações – e recomendo a obra, manual seguro para os
que se iniciam nessa nobre arte. O livro, infelizmente, não está disponível nas
livrarias e só pode ser adquirido com o próprio autor via e-mail.
Carmen
Laforet pertence àquele grupo de escritores notabilizados por uma única obra, que
alcançou sucesso graças à confluência de vários fatores, incluindo o
literário. No caso específico dessa catalã, é curioso que, depois do seu
primeiro e famoso romance, Nada, a
crítica tenha deixado de se empolgar com os poucos trabalhos que ela publicou –
e há certa estranheza na maneira como Laforet acaba enveredando por uma senda
de progressivo isolamento. Nem mesmo seu terceiro livro, La mujer nueva, narrativa de sua angustiada reconversão ao
catolicismo – que lhe valeu o Prêmio Menorca, o Prêmio Nacional de Literatura e
alguns problemas com a censura eclesiástica que vigorava na Espanha franquista
–, demonstrou ter força suficiente para não apenas impor-se no quadro da
literatura espanhola, mas, principalmente, convencer a escritora do seu próprio
valor. Em 1963 surgiria um novo romance, La
insolación, mas a partir desse ponto a voz de Laforet murcha até alcançar completo
silêncio, sem cumprir o plano da trilogia intitulada Tres pasos fuera del tiempo, da qual La insolación seria o primeiro volume. O segundo, Al volver la esquina, surgirá postumamente,
em 2004. Assim,
chega a ser desolador que o furacão provocado por Nada não tenha se repetido. Depois de vencer a primeira edição do
Prêmio Nadal, o romance, publicado em 1945, ganhou reimpressões quase que
imediatas. Mais tarde, em 1948,
a Real Academia Espanhola distingue Laforet com o Prêmio
Fastenrath, o que assegura ao livro um êxito que repercutiria nas décadas de
1950 e 1960, conquistando, até hoje, leitores e o respeito da crítica. Sem
diminuir o valor da obra, essa reação, quando analisada passado mais de meio
século, pode ser facilmente compreendida: na Espanha em que o ódio entre
franquistas e republicanos permanecia latente, com algumas das melhores vozes
literárias exiladas, mortas ou silenciadas pela censura, parece natural que a
jovem Carmen Laforet e sua personagem/narradora Andrea – ingênua, tímida e
frágil, tentando se libertar de uma família moralmente devastada, e ao mesmo
tempo ansiando por amizade, amor e segurança – arrebatassem o país. Elas se tornaram,
sem dúvida, a metáfora de uma Espanha que, apesar da destruição e dos miasmas
da guerra que também devastara a Europa, buscava renascer. Pássaros escuros O
primeiro capítulo de Nada já
mostra a desenvoltura de Laforet. Em meio à chegada solitária na Barcelona noturna,
carregando a mala repleta de livros, Andrea registra as primeiras impressões da
cidade – intensas, marcadas por um poder de síntese que recupera odores, luzes,
sons – e o clima de crescente expectativa, rompido abruptamente, logo no
primeiro contato com os familiares, “figuras alongadas, quietas e tristes, como
luzes de um velório de interior”. A partir daí, a ansiedade da jovem se
transmuta em pesadelo. O apartamento da rua Aribau fede, o banheiro parece
povoado de figuras fantasmagóricas e a cama, preparada às pressas, coberta pela
manta preta, assemelha-se a um ataúde. As ilusões se desfazem. A
família neurótica que a acolhe vive impulsionada por crises e escândalos. A violência
entre irmãos impera. E o drama será levado ao extremo pela crescente pobreza,
pela fome. Relacionando-se com desrespeito e cinismo, os parentes se apegam a
seus mundinhos particulares, a certezas mesquinhas, afundando cada dia mais. Naquele
apartamento se concentram os vícios humanos – e a narradora compara os moradores,
acertadamente, aos personagens dos Caprichos
de Goya. O texto de Laforet não tem a corrosão, a sátira ou o grotesco das
gravuras do pintor, mas é igualmente implacável. Angustias, a tia hipócrita e
autoritária, é “uma daquelas últimas folhas de outono, mortas na árvore antes
de serem arrancadas pelo vento”. Em certo trecho, a narradora lembra: “Vejo que
eram como pássaros envelhecidos e escuros, com os peitos arfantes por terem
voado muito num pedaço de céu muito pequeno”. A única que guarda alguma
dignidade é a avó, crédula, protegida em seu casulo quase arteriosclerótico,
movendo-se pelo apartamento às escuras com “distinção espectral”. Orfandade A
esses exemplares de uma classe média fracassada, Laforet contrapõe o mundo da
universidade, com os amigos igualmente burgueses, mas abastados. Pouco
saberemos dos estudos, das leituras de Andrea, mas acompanhamos a vergonha que
sente por causa dos sapatos envelhecidos, o sentimento de inferioridade
provocado pela pobreza e a renitente mania de presentear a amiga Ena e sua mãe,
mesmo que isso signifique não ter dinheiro para comer. É a forma de Andrea
mendigar atenção, amor. A
jornada da protagonista oscila entre preservar sua individualidade e construir
relações que possam libertá-la da família – e também de seus medos, da
insegurança, de suas carências. Sem amor-próprio, porém, ela se torna uma presa
fácil das armadilhas que se escondem na vida social. Mesmo a amizade com um
grupo de jovens boêmios ricos, supostos artistas, não se concretiza – ao
contrário, todos os relacionamentos são pouco profundos, contaminados por um persistente
sentimento de inadequação. Os dias mais felizes serão passados ao lado de Ena e
seu namorado, Jaime. Andrea se alegra sinceramente pelos dois, mas sente-se deslocada;
e, terminados os passeios, ela voltará a experimentar a solidão. Há
uma orfandade que supera o fato de ela ter perdido os pais. Seu desamparo é
mais vasto, mais denso. E para amadurecer, Andrea pagará alto preço, nada
aviltante, é verdade, mas constituído por uma série de descobertas dolorosas. E
ela só consegue vencer algumas de suas inseguranças e abandonar a família depois
de agir exatamente como não desejava: unindo seus dois mundos, ainda que durante
brevíssimo tempo. A
solução para parcela dos problemas de Andrea virá na forma de um convite
inesperado, o que interrompe a narrativa abruptamente. Fica-se, portanto, com a
impressão de que o processo de amadurecimento não se completou. Ela se despede
de nós – e jamais saberemos quais dos seus sonhos se concretizaram. Assim,
diferente do que alguns dizem, Nada
não é um clássico bildungsroman, pois
enfoca tão-somente uma fase crítica da existência, passageira, aquela que ultrapassamos
para garantir o direito de entrar na vida adulta. Nômade Fernando
Valls, professor de literatura espanhola contemporânea da Universidade Autônoma
de Barcelona, em artigo publicado no El
País, em 23 de março de 2004, questiona-se sobre o misterioso silêncio de
Carmen Laforet, do qual falávamos no início desta resenha. Na opinião de Valls,
“tem-se a sensação de que, uma vez realizadas as obras que tinham como fundo as
vicissitudes de sua própria biografia, ela não foi capaz de obter os mesmos
sucessos com a invenção de outras vidas”. Mas o crítico também aponta, com
absoluta razão, o caráter ético dessa escritora, salientando a “sensatez” e a
“exigência incomuns que ela demonstrou ao reconhecer sua incapacidade para
alcançar de novo essa arte sincera, humilde e verdadeira à qual aspirava com tamanho
afã”. Faltam-me elementos
para avançar nessas reflexões. Mas tenho a viva impressão de que Laforet passou
sua vida em permanente crise, sem jamais encontrar a resposta que pudesse
satisfazê-la plenamente. Em 1956, cinco anos depois de reabraçar a fé, ela
renunciaria ao catolicismo. E à medida que abandona a escrita, parece navegar
sem rumo, nômade em busca de certezas, como se a descoberta de Andrea
repercutisse em seu íntimo: “Eu então percebia, pela primeira vez, que tudo
segue, desbota, estraga enquanto a vida continua. Que não existe final na nossa
história até que chega a morte e o corpo se desfaz...”. Não por outro motivo
seu principal romance chama-se Nada. Mas
é terrível imaginar que a melancolia ou a sensação de vazio tenham dominado sua
existência. Viver imersa em uma atmosfera soturna teria sido um peso excessivo,
injusto, para essa mulher cuja voz renovadora conseguiu iluminar a Espanha submersa
na cisão e no ódio.
Perdemos,
ontem, um dos maiores críticos literários da atualidade: Marcel Reich-Ranicki. Como
tantos outros pensadores essenciais, desconhecido no Brasil.
A
idéia de reunir os colegas foi de Cristiano Ramos, que também criou o site.
Como já afirmei, CRITICON reúne críticos literários com algumas
afinidades: nada de acariciar cocurutos de escritores, nada de chamar de ótimo
o que é medíocre, nada de temer a honrosa tarefa de julgar. Estamos irmanados
pela crítica humanista, avessa ao compadrio; e pela rejeição aos dogmatismos
teóricos, pretensamente científicos. Como afirmava José Guilherme Merquior,
citado por Cristiano Ramos no texto de apresentação do site, “temos coisa
melhor para fazer do que permitir que nosso pensamento e sensibilidade se
escravizem a uma sovada e infundada ideologia de negação e desespero”.
Quando
comecei a preparar o curso “A Descoberta do Ensaio”, minha consciência sobre o
isolamento cultural brasileiro ganhou dimensões angustiantes. Sempre reclamei
sobre o fato de Samuel Johnson e William Hazlitt serem ignorados entre nós; e, claro, que
Matthew Arnold, um pouco posterior a esses dois gênios ingleses, representasse
apenas certa sombra incômoda numa intelectualidade devastada pelo marxismo e
pelos estruturalistas franceses. Já havia lido, com prazer, Hume e Carlyle – o primeiro,
certamente não por causa do seu ceticismo. Mas, então, ao selecionar os autores
que enfocaria no curso, fui me lembrando de Charles Lamb, Ruskin, Walter Pater,
Macaulay, Fielding, Dryden, Cowley, Froude, Bagehot, Coleridge... e ainda Oliver
Goldsmith e Thomas De Quincey... Lista interminável de magníficos ensaístas
ingleses... desconhecidos, completamente desconhecidos no Brasil. Vejam, por
exemplo, De Quincey: qualquer vanguardista de meia tigela já leu, é claro, “Confessions
of an English Opium Eater”, traduzido, creio que pela Brasiliense, há algumas
décadas – afinal, tudo que nos rebaixar ao underground
é bem visto entre nós... De Quincey, no entanto, é muito mais que “Opium”. Há
uma grave lacuna a preencher na nossa cultura. Lacuna humilhante, que demorará
séculos para ser apagada, infelizmente.