Mostrando postagens com marcador recursos para escritores. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador recursos para escritores. Mostrar todas as postagens

janeiro 28, 2015

5 motivos para usar Scrivener

Já escrevi, em dezembro do ano passado, sobre Scrivener, um programa para escritores. Agora, antes de publicar este post, o texto seencontra entre os mais acessados do blog.

Algumas pessoas também me mandam mensagens, pedindo que eu fale mais a respeito dessa ferramenta.

Resolvi, assim, explicar algumas das razões que tornaram Scrivener essencial no meu dia-a-dia:

1. A lógica de Scrivener é simples: tudo sempre à mão


O volume de informações a que tenho acesso cresce sem parar, numa escala inimaginável há 20 anos. Não se trata de utilizar ou não esses conhecimentos, mas de mantê-los sempre por perto, pois tenho certeza (ou a ilusão) de que, um dia, precisarei deles.

Scrivener resolve esse problema com as possibilidades que oferece para o autor se organizar.

Darei um exemplo prático:

Suponhamos que eu esteja escrevendo um texto sobre o escritor italiano Carlo Emilio Gadda. Tenho duas teses de doutorado sobre ele, no formato Word, que um amigo me enviou. Consegui também, na Web, o PDF de uma dissertação de mestrado. Como o ensaio que estou escrevendo é biográfico, fiz uma pesquisa iconográfica e reuni cerca de 50 fotos de Gadda, dos locais onde viveu e de fatos históricos de que participou, direta ou indiretamente. Além disso, tenho cerca de 30 páginas da Web reunidas sobre o tema — sites que visitei e fui adicionando a um caderno do Evernote.

Claro, não posso esquecer de minhas anotações pessoais: as que fiz lendo alguns de seus livros no Kindle; as que estão, feitas a lápis, nas margens de exemplares da minha biblioteca (e que escaneei); e notas de obras gerais, algumas histórias da literatura italiana.

Tenho também o mapa mental que desenhei para o ensaio, uma espécie de planejamento dos temas que pretendo abarcar.

Muito bem.

Como você faz para reunir tudo isso no Word? Simples: você não faz.

Se você depender do Word para escrever esse ensaio, terá de acumular um volume significativo de papel sobre a escrivaninha. Ou ter uma eficiente secretária, que arquive essas informações de maneira que ela possa localizar, com rapidez, exatamente aquilo de que você necessita, no momento em que necessita.

Com Scrivener, não.

Basta que, no Fichário, na pasta Pesquisa, eu abra uma subpasta denominada “Carlo Emilio Gadda” e coloque ali todo esse material. Posso acrescentar, inclusive, a entrevista que Gadda concedeu a certa rádio de Milão ou uma antiga gravação da tevê italiana que, de forma surpreendente, descobri no YouTube.

Quando começo a escrever meu ensaio, abro dois campos de trabalho no Editor: à minha esquerda, o ensaio; à direita, os arquivos que vou consultando à medida que escrevo.

E… pronto. Tudo está à mão — bastando um movimento rápido do mouse.

2. Scrivener fotografa as versões do meu trabalho


Outra suposição:

Depois de escrever duas laudas, descubro uma nova informação — e percebo que ela, sim, é o grande início do ensaio.

Claro, eu poderia “copiar” o que está escrito e “colar” num outro arquivo. Mas por que teria esse trabalho se, no Inspetor, tenho a opção de fotografar as versões do trabalho — por data, horário e com o nome que eu desejar?

Mas vamos complicar as coisas.

Você fotografou a primeira versão. Depois, começou a escrever o ensaio, agora com o novo início. Mas, quando chegou à terceira página, seu terrível senso crítico acendeu um sinal vermelho na sua cabeça: você não estaria sendo piegas nesta nova versão?

Scrivener resolve, mais uma vez, o seu problema: basta fotografar o novo ensaio e… o programa (na versão para Mac) permite que você compare — por parágrafo, oração e palavra — as duas versões.

3. Scrivener dá uma visão completa do meu trabalho


Ainda estamos no ensaio sobre Gadda. Ele está ficando maior do que imaginei. Estou na 4ª parte — e percebo que há muito mais para escrever.

Mas será que a ordem que estou seguindo é realmente adequada? E como posso alterá-la sem ter de renomear os arquivos ou, pior, sem me embaralhar ou perder partes do que escrevi?

Simples: com um clique do mouse, transformo o Editor, a parte central do programa, num quadro de cortiça em que os arquivos aparecem (com um título e uma sinopse) na forma de fichas que posso mover e remover até encontrar a seqüência adequada para meu trabalho.

Se eu preferir, o mesmo espaço pode ser transformado num “esboçador”, em que os textos aparecem de forma vertical, um sob o outro, mas também com a possibilidade de serem remanejados.

Mas ainda não estou satisfeito.

Gostaria de reunir, na terceira parte do ensaio, os trechos em que analiso Aquela confusão louca da Via Merulana. Terei de pesquisar arquivo por arquivo?

Não com Srivener. É simples: coloco os termos de minha busca no campo de pesquisa e o programa mostra todos os arquivos em que o título do livro aparece.

Resumindo: mudanças estruturais podem ser feitas a qualquer momento, de forma rápida e sem jamais perder a visão do conjunto.

4. As estatísticas são perfeitas

Não se trata apenas de saber quantas palavras escrevi em cada arquivo. Ou quantos caracteres.

Trata-se de ter objetivos.

Meu editor estabeleceu um número de palavras máximo para o ensaio — e tenho de dividi-lo entre as partes do trabalho, mas de maneira a nunca perder de vista o número total.

Scrivener oferece todos os números — além de uma simpática barra, na parte inferior do Editor, que muda de cor à medida que me aproximo do meu objetivo.

Mas não é tudo.

O programa também mostra quantas vezes repeti cada uma das palavras utilizadas — o que ajuda a corrigir possíveis cacoetes verbais.

5. Posso trabalhar em diferentes computadores

Scrivener grava automaticamente seu trabalho a cada dois segundos — sem que você perceba.

Mas gosto de fazer backups em dois locais diferentes: num pen-drive e num serviço de nuvem.

À noite, ao terminar o trabalho, gravo o arquivo no formato “zip” (o que Scrivener faz automaticamente, incluindo a data) nos dois locais.

No dia seguinte, não trabalharei em casa, mas num café em que gosto de passar as tardes.

Se tenho Scrivener no notebook, posso acessar meu trabalho, exatamente como o deixei na noite anterior, abrindo o projeto a partir da nuvem ou do pen-drive.

E o melhor: se você costuma trabalhar num PC e seu notebook é um Mac, não importa: o arquivo “zip” abre nos dois.

— Há várias outras funções de Scrivener que são sedutoras. Falarei sobre elas no futuro.

janeiro 16, 2015

O escritor precisa ser um mestre da atenção

Todos os aspectos da realidade interessam ao escritor
Imagine uma cena: você está no ponto do ônibus, voltando do trabalho; anoitece; a fila é grande, algumas pessoas reclamam, a maioria está muda e cansada. O ônibus, com o motor ligado, mantém as portas fechadas, o que aumenta a impaciência de todos. Faz calor. Você está no meio da fila, pensando se conseguirá sentar ou não. Atrás de você, uma mulher; você a observou rapidamente há alguns segundos, mas não percebeu nada de especial. De repente, um barulho estranho: você se vira instintivamente e vê a mulher aos prantos, transtornada — há desespero no choro, ela se curva sobre si mesma e, soluçando, cai de joelhos na calçada.

Qualquer pessoa normal tentará ajudá-la, não é mesmo?

E um escritor, o que faria?


Ele ajudaria também, claro!

Quando chegasse em casa, contudo, seria capaz de reconstituir a cena — toda a cena —, do momento em que chegou no ponto até o choro inesperado e o que ocorreu depois.

Mas não só.

Suponhamos que a mulher não tenha verbalizado o motivo do seu choro. Suponhamos que, passados cinco minutos, restabelecida, ela tenha ido embora — ou entrado no ônibus e, em silêncio, descido alguns pontos depois.

Você continuou a observá-la, sem dúvida, apesar do ônibus lotado. Observou-a tanto, que pode descrever seu rosto, seu cabelo, a roupa,  vários outros detalhes.

Esse interesse e essa capacidade fazem de você um candidato a escritor.

Mas não só.

Faltam elementos para completar essa forma especial de atenção: você precisa ser capaz de imaginar 10 motivos — ou 20 — para o comportamento dessa mulher.

10 motivos verossímeis.

Você precisa conectar essa mulher — seus traços, seu modo de andar, sua forma de chorar, suas roupas, o detalhe do esmalte gasto nas unhas das mãos, o couro puído da bolsa que ela carregava —, você precisa conectar esses pormenores ao cenário da rua e, principalmente, a um passado e a um futuro.

Se você consegue imaginar, de forma consistente, o passado e o futuro dela, ligando-os aos possíveis motivos do seu choro, então você está se tornando — ou já é — um escritor.

Claro, não falo aqui sobre o ato de escrever, de realmente dar vida à história, pois o objeto deste post é a forma especial de atenção que o escritor precisa ter.

Por causa dessa atenção, muitos dizem que os escritores sofrem de uma doença terrível: vampirismo.

Eles estão certos.

Todos os aspectos da realidade interessam ao escritor. Ele deve possuir uma perspicácia especial, uma inteligência atenta, uma forma de ver os acontecimentos sem se prender a eles, mas indo além, tentando sempre descobrir o porquê, o como, as conseqüências.

Às vezes, da janela do meu apartamento, vejo um menino que desce para jogar bola à noite, na pequena quadra do condomínio. Ele sempre está sozinho. E fica chutando sua bola contra o gol durante longo tempo. Eu o observo. O som da bola batendo contra o aramado repercute no vão entre os prédios e sobe até meu andar.

Para um escritor, esse menino não é apenas um garoto solitário. Não. Esse menino é uma história. Um drama, talvez. Nele se concentram dores, expectativas, alegrias.

O escritor o observa, senta à escrivaninha e sabe tudo: sabe o que se esconde em cada chute, o que pulsa no coração do menino.

E sabe, principalmente, porque esse menino o faz escrever. Afinal, o escritor só consegue ser um bom observador dos outros porque observa a si mesmo.

janeiro 14, 2015

Alegria, ansiedade e planejamento caminham juntos na escrita

Cada autor cria um método particular de vencer obstáculos
Sempre que falo sobre a disciplina que o escritor precisa ter, lembro-me de outras questões importantes.

Todos os dias, no mesmo horário, cumprindo seu ritual, o escritor impõe a si mesmo a tarefa de arrancar da imaginação certo número de páginas.

Ele não segue um padrão, a não ser as variações do seu próprio estilo. Qualquer outro padrão significaria tornar-se repetitivo, enfadonho, como certos escritores que, de livro a livro, confundem ter estilo com repetir os mesmos cacoetes linguísticos.

O estilo é a marca do escritor. Mas isso não significa que ele segue, a cada livro, a mesma fórmula — ou que utiliza manuais com modelos de cartas de amor, redações para vestibular ou petições forenses, a fim de simplesmente adaptá-los à sua necessidade.

Seu estilo é sua personalidade, que se expressa por meio do tom de narrar, da forma de construir as frases, das escolhas vocabulares e de tantos outros elementos que compõem um texto. E, como toda personalidade, é cambiante, apresenta variações.

Caso tenha planejado seu livro, o escritor tem um norte, sabe para onde deseja levar sua história, seus personagens — mas ainda precisa obrigar as palavras a dizerem exatamente o que ele quer.

Nessa luta para não ser controlado pela língua, para trabalhar a linguagem não como um limite, mas como meio maleável de expressão, várias forças se debatem: o que existe em potência na mente do autor; as emoções que despertam à medida que ele escreve; seu conhecimento dos recursos da língua; o ambiente em que ele se encontra — com todas as solicitações que podem desorientá-lo; seu estado físico e mental; os escritores que o marcaram.

Karl Kraus, infelizmente pouco traduzido no Brasil, expressa bem essa relação conflituosa com a língua: “Não domino a língua, mas a língua me domina completamente. Ela não é a criada de meus pensamentos. Vivo numa relação com ela em que concebo pensamentos, e ela pode fazer de mim o que bem quiser. Eu a obedeço à letra. Pois das letras salta o jovem pensamento ao meu encontro e dá forma retroativa à língua que o criou. Semelhante graça de gestar pensamentos me obriga a ficar de joelhos e transforma todo dispêndio de cuidado trêmulo em dever. A língua é uma senhora dos pensamentos; ela pode ser útil na casa de quem consegue inverter essa relação, mas lhe fecha o útero”.

Tratando a língua como senhora ou escrava, a ansiedade é consequência natural desse embate, desse enfrentamento que o escritor repete a cada dia.

Dominar essa tensão exige autocontrole e descobrir, passo a passo, formas de obedecer ou ludibriar sua oponente.

comentei aqui sobre a receita encontrada por Hemingway. Interromper o trabalho no momento em que, “ainda não tendo perdido o gás”, ele poderia “antecipar o que vem em seguida” permite superar uma forma de ansiedade. Mas dá vida a outra, como o próprio Hemingway confirma: “A interrupção dá uma sensação de vazio, como quando se faz amor com quem se gosta. E ao mesmo tempo não é um vazio, mas um transbordamento. Não há nada que o atinja, nada acontece, nada tem sentido até o dia seguinte, quando você faz tudo de novo. Difícil é viver a espera até o dia seguinte”.

Cada autor cria um método particular de vencer obstáculos, mas ainda considero o planejamento a melhor ferramenta para o escritor principiante.

Um planejamento minucioso contribui, inclusive, para eliminar a dependência da inspiração, ainda que ela seja útil e se faça presente.

Um planejamento detalhado, que não descarte possíveis mudanças de rumo, que esteja aberto à reelaboração, pois nem sempre é possível seguir a bússola — o navio, às vezes, precisa fazer uma ampla curva para contornar certa dificuldade e, só então, chegar ao destino.

Trata-se também de não enxergar a escrita como uma carga, mas como um ofício. Um ofício que o escritor impõe a si mesmo e realiza, apesar dos obstáculos, com arrojo e alegria. O mesmo Kraus que afirma ser escravo da língua exclama em outro aforismo: “Oh deleite das experiências da língua, devorador da medula! O perigo da palavra é o prazer do pensamento”.

Escrever é esse ofício que se reconstrói, que se redescobre a cada dia — um “caminho que se faz ao caminhar”, como afirma o sábio poema de Antonio Machado.

janeiro 09, 2015

Não acredite que a inspiração fará o trabalho pesado

Nenhum escritor se submete ao que desconhece
Certos escritores insistem na idéia de que o ato de narrar tem algo de místico.

Já falei aqui sobre autores que se dizem dominados por suas personagens. Mas há também aqueles que afirmam não escolher suas próprias histórias: “Elas se impõem”, falam alguns, como se narrativas surgissem do nada ou fossem desfiadas por um gênio semelhante à criança que, sem saber o que faz, puxa o fio de um novelo.

É evidente que há uma base de intuição no processo criativo — mas é também evidente que, dentre as várias histórias possíveis, a escolha de uma em especial obedece a determinado conjunto de auto-imposições: ninguém, em sã consciência, decide escrever sobre o que desconhece ou não pesquisou.

Um autor não precisa ter a experiência de Joseph Conrad para escrever aventuras marítimas, mas será obrigado, como Patrick O’Brian, por exemplo, a fazer minuciosas pesquisas, consultar especialistas, viajar. (Leiam a entrevista de O’Brian na Paris Review.)

E não bastam apenas pesquisas. Devemos pensar no planejamento que uma obra requer — para evitar incongruências, absurdos.

Hoje, quando qualquer conto ampliado recebe o nome de “romance”, o planejamento tem merecido o menosprezo de alguns supostos experts e de muitos escritores.

Mas quem se dispuser a ir além de um conto estendido deve se preparar para escolher um tema que lhe seja de alguma forma próximo — ou se dispor a planejamento e pesquisa exaustivos. Sua história não descerá rutilante e pronta dos céus.

E se uma história, como alguns escritores místicos gostam de dizer, se impõe, ela certamente o faz porque foi alimentada no imaginário. Estava ali, nas sombras da mente do autor, tomando forma, aguardando para escapar. E ele não pode dizer que a desconhecia.

Nenhum escritor se submete ao que desconhece. Só os navegantes de primeira viagem cometem o erro de abraçar um tema que não dominam ou que sequer imaginam como poderão dominar.

Quando um principiante percebe o erro que cometeu, sua primeira reação é tentar resumir, em 50 páginas, o que precisaria de 400 para ser narrado. Um autor experiente abandonaria o projeto ou faria um conto. Ou enfrentaria as dificuldades — e teríamos 400 páginas empolgantes.

Além disso, dizer que a história se impõe é autodepreciar-se. E toda a habilidade técnica, todo o domínio do idioma, da capacidade de imaginar e narrar?

Tudo nasce da inspiração? E as anotações feitas? E o número de horas debruçado sobre o papel, além dos longos dias em que, fazendo outras coisas, o escritor, na verdade, só pensa na sua história?

Os novatos, portanto, devem acreditar menos nas afirmações quase sobrenaturais de certos autores — e confiar mais na certeza de que escrever exige dedicação, reflexões, esforço, aperfeiçoamento constante, domínio do idioma. Além de um mergulho sem volta na psicologia humana.

Portanto, se, no início, sentindo-se inseguro, você não consegue ir além de um ou dois personagens, de um ou dois cenários, de uma trama simples, não se angustie: escreva sua história como for possível, dentro dos seus limites. Mas não acredite que a inspiração fará o trabalho pesado.

Certa imagem, um gesto, a leitura de uma notícia, o fragmento de conversa no ônibus podem desencadear, sem dúvida, a imaginação. Mas esse é apenas o início, o primeiro passo de um longo trabalho.

janeiro 07, 2015

A disciplina é a liberdade do escritor

Sem constância, não há escritor
Qual o lugar perfeito para escrever?

É o local que conseguimos criar dentro das nossas possibilidades, nas circunstâncias em que vivemos.

Se escrever é realmente essencial, as dificuldades não importam: você conseguirá criar seu espaço.

Nos últimos 12 anos, mudei três vezes de residência. Na primeira, a janela do quarto dava para duas paisagens paulistanas: a rua movimentada, que os ônibus subiam forçando os motores, e a quadra de uma escola. Eu escrevia obedecendo aos horários de entrada, recreio e saída das crianças. Quando chegava o final de semana, pronto a comemorar o relativo silêncio, descobria que a escola cedera a quadra para um show de rock.

Mas há situações diferentes: conheço escritores que lêem e escrevem num apartamento minúsculo, com 3 filhos brincando à sua volta.

Você pode e deve buscar o lugar ideal — mas a necessidade de escrever, tão premente em certos casos, sempre se adapta à realidade.

Além disso, se ficamos esperando pelo espaço ideal, jamais escreveremos.

A urgência de escrever cria os locais — a urgência de escrever força situações. Um banco de jardim, um café no qual possamos ficar esquecidos em alguma mesinha, o balcão da padaria, uma biblioteca pública — qualquer lugar serve, desde que você possa se concentrar.

Meu sonho é escrever diante de uma janela aberta sobre o horizonte amplo, montanhoso, e ouvir, ao fundo, o murmurar de um riacho. Mas passei dois anos escrevendo no quarto de um apartamento em que, ao abrir a janela, se estendesse o braço, tocaria o prédio vizinho.

Na verdade, abstrair-se, concentrar-se, requer expediente. Isto é, decisões rápidas (e muitas vezes simples) para se livrar das dificuldades. E persistência.

Quando a empregada do apartamento grudado ao meu ligava o rádio no último volume, eu colocava fones de ouvido e escutava Brahms. Depois de alguns minutos, não ouvia nada: nem as musiquinhas suburbanas nem o meu clássico. Escutava apenas minhas próprias idéias, ouvia as frases que se formavam e a voz que dialogava comigo sobre qual verbo, qual substantivo expressaria melhor o que eu tinha a dizer.

Todos os escritores repetem essa experiência: há minutos de aquecimento, em que as idéias parecem emperradas, em que tudo incomoda — depois, mergulha-se numa espécie de alheamento. Não é um transe, não perdemos contato com a realidade, mas nosso mundo interior nos domina, ganha força, se sobrepõe às coisas que nos limitam.

Escrevemos, então, numa espécie de umbral localizado entre nossas construções mentais, o espaço em que estamos e a consciência de nosso corpo.

Reviver essa experiência dia após dia exige disciplina — um ritual que precisa ser construído, descoberto.

Em que horário sua produção flui com facilidade? Tenho amigos notívagos, outros preferem o amanhecer, alguns precisam de solidão, outros gostam da presença quieta de alguém, dos movimentos cotidianos e simples de uma casa.

Alguns necessitam que a mesa esteja limpa — ou que os objetos a seu redor fiquem perfeitamente organizados. Um amigo só escreve depois de repetir determinados gestos.

É preciso descobrir esse sistema pessoal de trabalho — e repeti-lo. Mas a descoberta só ocorre se o escritor estiver atento a si mesmo.

A palavra disciplina pode parecer pesada, mas uso-a no sentido de comportamento metódico. Sem constância, não há escritor.

A disciplina liberta a mente para o que mais importa: escrever. O escritor se prepara, repete seu ritual, sente-se dono do seu minúsculo espaço, comanda aquele período de horas em que dialogará consigo mesmo. E cria.

Depois de algum tempo, conhecemos o caminho da luz solar sobre a escrivaninha — e como ele muda à medida que os meses passam. Esse conhecimento nos conforta, nos liberta para o desgastante e prazeroso exercício de escrever.

Quando o dia termina, quando o tempo dedicado ao ritual se encerra, as páginas estão cheias — e não de rabiscos sem sentido.

A disciplina é a liberdade do escritor.

dezembro 22, 2014

Literatura não é apenas “colisão com a realidade”

Cada artista segue um percurso único
Os caminhos que a imaginação percorre são irrepetíveis.

A própria maneira como nos aproximamos da arte, para depois reelaborá-la e criar novas formas de beleza, é surpreendente.

Leiam os diários, as cartas, as entrevistas dos escritores: diferentes estados psicológicos, hábitos opostos, sentimentos antagônicos — não importa se na raiz do ato criativo há dor ou alegria —, tudo no artista leva-o a criar.

Numa de suas inúmeras tentativas de compreender como a literatura nasce, o crítico e ensaísta Edmund Wilson afirma nos seus diários: 

“As novas anomalias e acidentes da vida constantemente sendo assimilados pela faculdade artística — imediatamente tomados e incrustados, tornados simétricos e iridescentes, como a pérola da ostra — até que, quando as ostras morrem e só resta sua obra, os anais da espécie humana parecem ser não uma sucessão de mortes, e sim um colar de pérolas”.

Sempre penso a respeito do caminho peculiar de cada artista — e guardo a certeza crescente de que todas as explicações simplificadas são errôneas, pois cada pérola é um exemplar único e inesperado.

Ontem recebi o depoimento de uma aluna, a designer e ilustradora Laura Barreto, que só confirmou minhas certezas sobre a complexidade do processo criativo.

Vejam o que Laura diz:

“Quando eu era pequenininha juntava pilhas de livros no recreio e passava todo tempo lá, rodeada deles, mesmo sem saber ler nenhuma palavra. Quando me perguntavam o que eu estava fazendo respondia que estava lendo imagens. Depois passei a odiar a escola e ler virou uma obrigação chatíssima. Mas eu amava o português! Minha professora era a melhor. Lemos vários clássicos da literatura brasileira. E aprendi muito com ela... Enfim... Estudei Artes Visuais na UFMG, depois Design Gráfico na UEMG... Aos poucos percebi que me tornei uma contadora de histórias. Mas o fato curioso é que eu continuei lendo imagens e falando por imagens. Tinha algo de indecifrável nas palavras e de indizível também. Agora eu estou fazendo uma experiência de leitora!!!! Eu me apaixonei pela literatura da Jane Austen. E eu amo a forma de Deus falar conosco através da Bíblia. Descobri a filosofia tomista e tantas outras coisas incríveis! A experiência de leitora apaixonada tem feito muito bem a mim e ao meu trabalho de designer e ilustradora!”.

Ninguém pode delinear os caminhos que trouxeram Laura até este momento, em que ela redescobre ou reencontra formas diferentes de expor suas idéias, alimentar sua criatividade, dialogar com a beleza.

O Edmund Wilson da década de 1920 dizia que “a literatura é apenas o resultado de nossas brutais colisões com a realidade, cujas repercussões, depois de nos recolhermos ao abrigo de nosso íntimo, tentamos explicar, justificar, harmonizar, colocar numa ordem lógica na corrente uniforme de um pensamento que se reestrutura depois de ser, por um momento, destroçado e dilacerado por elas”.

Já pensei como Wilson. Já admirei a relação entre arte e vida com o mesmo olhar que se supõe realista, mas esconde pessimismo e simplificação exagerada.

Hoje penso de forma diversa. Há mais do que meras “colisões com a realidade” no ato de criar. A menina que, no recreio, juntava pilhas de livros sem ler uma só palavra não estava apenas “colidindo com o real”, mas abria-se, por motivos insondáveis, à busca da beleza.

E você? Como descobriu a literatura? Por que se dedica à escrita ou outras formas de arte?

dezembro 18, 2014

Scrivener: a ferramenta essencial para o escritor

Scrivener é, como dizem seus criadores, a libertação do caos
Se você está acorrentado à lógica do Word, certamente não entenderá os benefícios que Scrivener tem a oferecer.

No começo, eu mesmo não entendi. Mas depois de uma semana lendo artigos na Web e trabalhando com esse incrível processador de textos, acredite, o Word tornou-se uma pintura na Gruta de Lascaux: ainda tem alguma importância, mas muito limitada.

O programa Word nos acostumou a ver nossos textos como produções isoladas — e não como eles realmente são: criações interdependentes.

Imagine que você está escrevendo um livro dividido em vários capítulos. Que opções de organização o Word lhe oferece? Você pode abrir uma pasta com o nome do seu livro — e incluir nela os capítulos numerados. Ou pode abrir um único arquivo: e escrever seu livro numa longa seqüência.

Pense nessas duas opções.

Imagine você trabalhando num livro — ficção ou não ficção — com 20 capítulos, cada capítulo com 15 ou 30 páginas.

Muito bem. Agora responda:

— Onde estão as anotações que você usa para cada capítulo?

— O que você tem de fazer quando está no Capítulo 19, quer comparar um trecho com o Capítulo 3 e também verificar se a mesma informação não foi repetida no Capítulo 8?

— Quantos arquivos do mesmo capítulo você precisa fazer se quiser escrever versões diferentes do seu trabalho e, depois, compará-las?

— Como você consegue ter uma visão completa do conjunto de sua produção, incluindo a seqüência dos capítulos, o tamanho de cada um, os temas enfocados, as diferentes versões de cada capítulo e, principalmente, os metadados?

Sim, os metadados! Ou seja, todos os trechos em que a personagem C aparece; ou todos os trechos em que a personagem D interage com a personagem A. Ou, se você está escrevendo um ensaio, ter à mão a recorrência de certas idéias — e também a relação delas com outras informações.

As perguntas parecem complicadas apenas por um motivo: você está preso à lógica do Word. Uma lógica linear, que só permite que você pense e escreva como se desenrolasse um imenso rolo, no qual as folhas de papiro ou pergaminho estão emendadas.

A lógica de Scrivener não é linear. E por um simples motivo: ele foi pensado para escritores, para profissionais da escrita — e não apenas para quem precisa produzir um ou mais textos.

Para Scrivener, não existem apenas “textos” ou apenas “arquivos” — mas, sim, projetos.

Quando você abre seu projeto em Scrivener encontra três campos: o “Fichário” (à esquerda), o “Editor” (no centro) e o “Inspetor” (à direita):


No fichário você organiza os capítulos ou os diferentes textos do seu projeto, dividindo-os da forma que considerar melhor. Por exemplo: tenho todos os posts do meu blog num único projeto, seguindo uma primeira grande divisão, por anos — e depois subdivisões por meses.

Na parte inferior do Fichário você encontra a pasta “Pesquisa”, que aceita arquivos de imagem, PDFs e outros textos que possam ajudá-lo de alguma maneira.

No Editor, o lugar em que você escreve, Scrivener oferece três formas de visualização do seu trabalho:

— Um único arquivo:


— Um quadro de cortiça:


— Um esboçador em que você visualiza todos os capítulos numa ordem contínua:


No “Inspetor” você tem todas as notas do capítulo (ou, se preferir, as notas mais gerais do projeto), as referências bibliográficas, as palavras-chave, os metadados (que você pode personalizar como quiser), as imagens de todas as versões de um mesmo capítulo (para que você possa compará-las), além das notas de rodapé e dos comentários que você produz por diferentes motivos.

Há muito, muito mais.

Quando você coloca o ponto final no seu livro, pode exportá-lo com todos os capítulos reunidos na ordem que você desejar (incluindo notas, cabeçalhos, folha de rosto, etc.) E pode exportá-lo como Word, PDF ou um e-book pronto para ser publicado no formato Kindle (além de outras opções).

E se você gosta de escrever sem distrações visuais, pode optar pela “tela cheia”:


Você pode baixar uma versão completa de Scrivener e experimentar o programa durante 30 dias (ele vem com dois tutoriais, um deles autoexplicativo — ambos em inglês, mas numa linguagem clara e direta, que, se você precisar, o tradutor do Google não complicará).

Scrivener, como dizem seus criadores, é a libertação do caos.

dezembro 17, 2014

Ferramentas para facilitar a escrita: Freedom e Anti-Social


A tecnologia pode ajudar o escritor a ter disciplina
No mundo conectado, em que a Web e as redes sociais consomem nossa atenção, como o escritor pode manter sua disciplina de trabalho, isolar-se e, inclusive, ampliar sua produtividade?

Se, como afirmei ontem, Evernote é essencial para reunir um grande e variado volume de informações, o escritor também precisa de recursos que o ajudem a manter o foco em seu trabalho e nas metas que ele se autoimpõe.

Há dois softwares que uso sempre. Eles fazem com que eu me concentre no que realmente importa: escrever. Contribuem para minha autodisciplina.

O mais radical é Freedom. Trata-se de um software que bloqueia todas as distrações da Internet: você estabelece o tempo que deseja ficar desconectado e ele interrompe de forma drástica a sua conexão — e você só poderá se reconectar caso reinicie o computador.

Vários escritores contemporâneos lutam contra as distrações oferecidas pela Web. A própria romancista Zadie Smith, por exemplo, já se pronunciou publicamente sobre o tema.

Quando sento para produzir minha cota diária de textos, meu primeiro gesto é ligar Freedom — o segundo é desligar o celular. São horas sagradas em que me obrigo, alegremente, a escrever de verdade.

Mas o inventor de Freedom, Fred Stutzman, também criou o programa Anti-Social, uma versão menos radical de Freedom.

Anti-Social mantém sua conexão — para que você possa, por exemplo, pesquisar na Web —, mas o impede de entrar nas redes sociais ou em qualquer site que desvie sua atenção.

Sem autodomínio e disciplina nenhum escritor se torna produtivo.

A tecnologia nos oferece ferramentas que destroem nossas desculpas esfarrapadas — e nos obrigam a escrever com produtividade e concentração crescentes.

Como dizia Hemingway, “disciplina se conquista”.

dezembro 16, 2014

Ferramentas para facilitar a escrita: Evernote

Tudo o que facilita a vida e permite que nos concentremos no ato de escrever é bem-vindo
Estou cada vez mais distante da caneta, do lápis e do papel, ainda que mantenha um Moleskine sempre à mão.

Não sou saudosista, não me prendo a velhos hábitos — e acho curioso quem critica ou até mesmo recusa os benefícios que a tecnologia pode incorporar à vida do escritor.

Outro dia, sorri ao ler que o uso da caneta e do papel cria “um tipo especial de aproximação com o texto”, pois “desenhar as letras desperta a criatividade do escritor”.

Talvez exista algum fundamento científico em tais teorias, mas minha experiência diz o contrário: tudo o que facilita a vida e permite que nos concentremos no ato de escrever é bem-vindo, aumenta nossa produtividade.

Foi, aliás, o que senti há muitos anos, quando vi o cursor do Word pulsando na tela em branco e descobri que a máquina de escrever, com fitas imundas e corretores ineficazes, estava morta.

Como é possível viver hoje, por exemplo, sem Evernote?

O resultado de minhas pesquisas, idéias gerais, artigos que encontro na Web, insights que ocorrem no meio da rua, fotos curiosas ou inspiradoras, bibliografias às quais não paro de acrescentar novas descobertas, imagens ou textos para compartilhar nas redes sociais, PDFs que não tenho tempo de ler agora ou, com certeza, utilizarei no futuro, comentários escritos em meu Kindle… tudo, tudo está organizado em notas e cadernos no Evernote.

Neste último sábado, recomendei Evernote a meus alunos da Oficina de Escrita Criativa. Recomendo inclusive a escritores peripatéticos: enquanto você caminha de um lado a outro da biblioteca ou do escritório, pode ditar seu livro ou artigo, pois Evernote faz gravações de áudio perfeitas.

Concentrar esse volume de informações num programa auto-explicativo, de interface agradável — para PC e Mac — e que funciona de forma sincrônica no desktop, no browser e no celular é o paraíso de quem trabalha com textos.

O velho bloco de anotações continua sobre a escrivaninha. Mas, acreditem, está meio empoeirado.

dezembro 15, 2014

Ser escritor é uma forma de atenção sobre a vida

Cada página escrita é um "não" firme às desculpas que usamos para não escrever
Cada página que você escreve não é apenas mais um capítulo ou mais algumas linhas na direção da obra que você deseja completar.

Não.

Cada linha escrita é uma vitória sobre as características e as limitações da sua personalidade, dos seus hábitos.

Cada nova página produzida é a resposta que você dá às investidas da preguiça.

Cada página escrita é o seu “não” firme a todas as desculpas que inventamos para não escrever, para não sermos o que desejamos ser.

Cada hora debruçado sobre um texto é a sua resposta contra os limites físicos, contra as pressões familiares, os fracassos do passado, o medo do futuro, a falta de recursos, as insuficiências do seu meio, do seu país, da sua cultura.

Não esqueça o que W. H. Auden escreveu: “Aos olhos dos outros, um homem é poeta se tiver escrito um bom poema. Aos próprios olhos, ele é poeta apenas no momento em que faz a última revisão num novo poema. No momento anterior, era apenas um poeta em potencial; no momento seguinte, é um homem que parou de escrever poesia, talvez para sempre”.

Um escritor só é escritor se consegue permanecer vigilante, com sua atenção voltada a tudo que pode ajudá-lo a escrever.

Ser escritor é uma forma de atenção sobre a vida.