outubro 31, 2013

A saudável arte do cachimbo – Parte 3

Publicado pela Tabacaria SIQLO, de Florianópolis, em 2003, Cachimbo amigo, de Herres de Souza, merece lugar de destaque na prateleira de quem pretende se iniciar ou dá os primeiros passos na nobre arte de fumar cachimbo.

Trata-se de um guia básico, completo o bastante para responder a grande parte das perguntas que o iniciante, ao perceber as opções quase infindáveis que o aguardam – em termos de cachimbos e acessórios –, sempre faz a si mesmo, às vezes com relativa angústia.

O texto flui de maneira agradável e o autor consegue estabelecer, logo nos primeiros capítulos, um clima de intimidade com seu leitor. Herres de Souza dialoga conosco como se estivéssemos sentados em poltronas confortáveis, protegidos pela penumbra de uma sala que recende a tabaco, conhaque e especiarias.

Não pensem que exagero. Todo iniciante gostaria de, antes de adquirir seu primeiro cachimbo, ter lido este conselho – simples e bem escrito – sobre o formato das piteiras:

Ao examiná-las, leve em consideração se elas se adaptam bem aos seus lábios, boca, dentes e à sua postura física ao fumar. A piteira e a embocadura não podem importunar você no ato relaxante e prazeroso de cachimbar.

Ou este, que resume bem o estilo direto do autor e encerra o Capítulo 1:

O importante é, como dizem os especialistas, que o cachimbo seja aconchegante ao tato, que se adapte bem à sua mão, ao seu modo de vida e à sua personalidade.

Faltam ao livro maiores informações sobre os tipos de tabaco, mas a técnica de fumar e os procedimentos de limpeza e manutenção dos cachimbos são explicados de forma didática, com o apoio de ilustrações:
É pena que Cachimbo amigo não possa ser encontrados nas livrarias, mas a Tabacaria SIQLO, responsável pela edição da obra, continua de portas abertas, oferece seus produtos inclusive no Facebook e talvez ainda disponha de alguns exemplares deste livro acolhedor.

outubro 30, 2013

O que é um gênio?

Boris Pasternak
A definição é de Isaiah Berlin, ao recordar, no ensaio “Conversas com Akhmatova e Pasternak”, de 1980, os encontros que mantivera com esses escritores em 1945 e 1956. Esse texto será o tema da aula de hoje no curso “A Descoberta do Ensaio”:
 
“[...] Ele falava formulando magníficos períodos em câmara lenta, com ocasionais torrentes intensas de palavras. Sua fala freqüentemente transbordava as margens da estrutura gramatical – passagens lúcidas eram seguidas por imagens loucas, mas sempre maravilhosamente vívidas e concretas –, e essas poderiam ser seguidas por palavras obscuras, quando era difícil acompanhá-lo – e então de repente ele voltava a entrar numa clareira. Seu discurso era sempre o de um poeta, assim como seus escritos. Alguém disse certa vez que há poetas que são poetas quando escrevem poesia e prosadores quando escrevem prosa; outros são poetas em tudo o que escrevem. Pasternak era um poeta de gênio em tudo que fazia e era. Quanto a sua conversa, nem me atrevo a descrever sua qualidade. Só conheci uma outra pessoa que falasse como ele: Virginia Woolf, que fazia a mente do interlocutor disparar assim como ele conseguia fazer, obliterando no ouvinte a visão normal da realidade do mesmo modo inebriante e, às vezes, estarrecedor.
 
Uso a palavra ‘gênio’ de caso pensado. Às vezes me perguntam o que quero dizer com esse termo impreciso, mas altamente evocativo. Em resposta, só posso afirmar o seguinte: perguntaram certa vez ao bailarino Nijinsk como ele conseguia saltar tão alto. Parece que ele teria respondido que não via grande problema nisso. A maioria das pessoas, quando pulava no ar, descia à terra imediatamente. ‘Por que descer imediatamente? Pode-se ficar um pouco no ar antes de retornar à terra, por que não?’, dizem ter sido a resposta. Um dos critérios para definir o gênio me parece ser precisamente isto: o poder de fazer algo perfeitamente simples e visível, que as pessoas comuns não conseguem realizar e sabem que não podem fazer – nem sabem como é realizado, nem por que não podem nem sequer imaginar como fazer. Pasternak às vezes falava em grandes saltos; seu emprego das palavras era o mais imaginativo que já encontrei; arrebatado e muito comovente. Há sem dúvida muitas variedades de gênio literário: Eliot, Joyce, Yeats, Auden, Russell (pela minha experiência) não falavam assim. [...]”

outubro 24, 2013

Homens ocos – em T. S. Eliot e Joseph Conrad

O anúncio da morte de Kurtz, que Eliot utiliza como epígrafe do longo poema “The Hollow Men” (“Os Homens Ocos”), proclama que, finalmente, o personagem emudeceu. Os que leram O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, devem se lembrar da eloqüência de Kurtz, da forma como repetia os possessivos, acreditando-se dono de tudo – ele, “sombra insaciável de aparências esplendorosas e aterradoras realidades; sombra mais escura que as sombras da noite e envolta nas dobras de uma deslumbrante eloqüência”, conta-nos Marlow, o narrador.

Kurtz é um dos homens ocos, um “elmo cheio de nada”, como escreve Eliot no início do poema:
Mas de que tipo de vazio fala Eliot? Marlow nos conta qual o vazio de Kurtz: “Tanto o amor diabólico quanto o ódio sobrenatural dos mistérios em que havia penetrado disputavam a posse daquela alma saciada de emoções primitivas, ávida de glórias enganosas, de falsas honrarias, de todas as aparências do sucesso e do poder”. Na verdade, o vazio é apenas uma metáfora para definir a abundância das coisas inúteis, o excesso de tudo que representa opulência, mas que transforma os homens em seres “empalhados”.

outubro 22, 2013

Literatura, crítica literária e muito mais

Nos últimos vinte dias, concedi três entrevistas, nas quais falo sobre crítica literária, meus cursos on-line, ensino de literatura nas escolas e nas faculdades, e-books, poesia, escrita criativa e muito mais. Para os que desejarem conhecer um pouco de minhas idéias, estes são os links:

outubro 20, 2013

Ana Maria Machado engana-se mais uma vez

Na entrevista concedida ao jornal Valor Econômico (18/10/2013), a escritora Ana Maria Machado comete novo deslize (vejam meu post de 29/08/2013) ao afirmar, referindo-se a seu romance Infâmia: “Não apareceu um único crítico, num único jornal, que fizesse uma resenha ou um comentário mostrando que tinha lido o livro”.

De fato, a presidente da Academia Brasileira de Letras parece desconhecer o que se passa a seu redor: se fosse minimamente informada, teria lido meu texto na Folha de S. Paulo (29/11/2012), no qual explico a nota zero que dei a seu romance e saliento a) as cansativas referências literárias, históricas e bíblicas que ela utiliza para referendar as teses que se espraiam pelo romance, b) o enredo esquemático, em que as personagens só conseguem emitir julgamentos repetitivos e politicamente corretos, c) o didatismo escancarado, d) os estereótipos e as cenas inverossímeis.

Em meio às respostas recheadas de lugares-comuns, o entrevistador sai em defesa da escritora e considera “um disparate” a nota zero que lhe dei. Ora, no Brasil em que a crítica literária, com honrosas exceções, especializou-se em elaborar discursos anódinos ou açucarados, acariciar cocurutos de escritores e se esconder sob a sintaxe intrincada e  o vocabulário muitas vezes hermético, é perfeitamente compreensível que pretendam transformar o ato de julgar num disparate. “O que foi é o que será: o que acontece é o que há de acontecer. Não há nada de novo debaixo do sol”, caros leitores.

outubro 16, 2013

Três poemas de Emily Dickinson


Dizer toda a Verdade – em modo oblíquo –
           No Circunlóquio, o êxito:
Brilha demais p’ra nosso enfermo gozo
            O seu sublime susto.

Como a meninos se explica o relâmpago
            De modo a sossegá-los –
A Verdade há de deslumbrar aos poucos
             Os homens – p’ra não cegá-los.

***

Brincamos com pedra falsa,
Puxando-a ao ponto de pérola –
Depois soltamos a massa
E vemos quão tolos fomos – 

E, no entanto, as formas eram análogas, –
E a mão que ainda tateia
Aprendeu tática de gemas
Praticando com areia. 

*** 

A beleza não se faz – ela é.
Você a caça, ela cessa;
Se desiste, ela persiste. 

Tente imitar as estrias 

No capinzal, quando o vento
Corre-lhe os dedos por dentro –
Algum deus vai estar atento
Para frustrar o seu intento.
 
(Tradução de Aíla de Oliveira Gomes)

outubro 15, 2013

Sobriedade e sutileza – Amadeu Amaral e “A pulseira de ferro”

Amadeu Amaral por Fábio Abreu
No jornal Rascunho deste mês, minha análise do principal trabalho de ficção escrito pelo paulista Amadeu Amaral. Esta é a abertura do ensaio:

Amadeu Amaral permanece indispensável à cultura brasileira graças a O dialeto caipira — estudo pioneiro sobre as características da linguagem no interior do Estado de São Paulo —, à permanente campanha em defesa do folclore, cujas pesquisas nos permitiriam alcançar o que ele chamava de “conhecimento exato da nossa gente”, e aos insights das análises literárias reunidas em O elogio da mediocridade, incluindo o ensaio que dá título ao livro, deliciosa peça de ironia sobre o papel do crítico e dos escritores. Poeta menor, deixou uma novela exemplar, A pulseira de ferro, presente no volume “Novela e conto” de suas Obras completas — publicadas por causa do empenho de Paulo Duarte, intelectual paulista injustamente esquecido.

outubro 08, 2013

Jorge Luis Borges e o sofrimento como argila

“Um escritor, ou todo homem, deve pensar que tudo o que lhe ocorre é um instrumento; todas as coisas lhe foram dadas para determinado fim – e isso tem de ser mais forte no caso de um artista. Tudo o que acontece a ele, inclusive as humilhações, as vergonhas, as desventuras, todas essas coisas lhe foram dadas como argila, como matéria-prima para sua arte; ele tem de aproveitá-las. Por isso já falei num poema do antigo alimento dos heróis: a humilhação, a desgraça, a discórdia. Essas coisas nos foram dadas para que as transmutemos, para que façamos, da miserável circunstância de nossa vida, coisas eternas ou que aspirem a sê-lo.” – Jorge Luis Borges (“A cegueira”, em Borges oral & Sete noites)

outubro 07, 2013

Como pensa um esquerdista?

Você deseja entender como pensa um esquerdista? Quer compreender a mentalidade revolucionária? Então, leia O Agente Secreto, de Joseph Conrad, publicado em 1907. Baseado em fatos reais – um atentado anarquista ocorrido em Londres, no ano de 1894, e que provocou a morte de seu autor, o francês Marcial Bourdin –, trata-se de um dos grandes romances políticos da literatura ocidental, comparável a O vermelho e o negro, de Stendhal, Os demônios, de Dostoiévski, Princesa Casamassima, de Henry James, ou O Zero e o Infinito, de Artur Koestler. Conrad faz uma análise implacável da “sangrenta futilidade” e da “irracionalidade malévola” dos movimentos revolucionários – e nos mostra como “o caminho da revolução, mesmo a mais justificável, é preparado por impulsos pessoais disfarçados em credos”. 

Esse e outros textos de Conrad serão analisados por mim no projeto “Relendo os clássicos”, sobre o qual já falei neste blog e que logo estará disponível no Cedet On-line.

outubro 04, 2013

O animal que não investiga

“[...] O mundo geralmente não está interessado nos motivos de qualquer ato público mas em suas conseqüências. O homem pode sorrir e tornar a sorrir, mas não é um animal que investiga. Ele ama o óbvio. Exime-se de explicações.”

– Joseph Conrad, no Prefácio do romance O Agente Secreto.

outubro 03, 2013

A saudável arte do cachimbo – Parte 2

Capa
Acabo de adquirir o livro História do Cachimbo, publicado em 1970. Segundo informações que recebi de um membro da Confraria dos Amigos do Cachimbo, Cláudio Carvalho, “tecnicamente foi o primeiro livro a tratar do tema no Brasil”. É uma brochura de poucas páginas, sem autoria, mas agradavelmente ilustrada, contendo informações básicas sobre a história do cachimbo, a arte de fumar e outras curiosidades.

Dois pontos chamaram minha atenção: primeiro, o autor desconhecido não partilha da tese de que existe a “maldição dos cachimbeiros”, segundo a qual estaríamos condenados a não sentir o aroma dos tabacos enquanto fumamos. Quando fui informado da “maldição” fiquei perplexo, pois, nestes poucos meses em que me dedico ao cachimbo, sempre senti, ainda que momentaneamente e em diferentes escalas, o aroma dos meus tabacos. Agora, neste livro, vejo que não estou só. O autor afirma, de maneira clara – e quase lírica:

“O homem tem cinco sentidos. O fumante inteligente precisa de todos os cinco para fruir plenamente de um cachimbo:
o paladar – porque ele saboreia a fumaça do tabaco na língua;
o olfato – porque ele aspira o perfume pelo nariz;
a visão – porque o cachimbo e as tênues nuvens de fumaça encantam os olhos;
o tato – porque é gostoso envolver o cachimbo com a mão e apalpar o fornilho;
a audição – porque o suave crepitar da brasa é música para o ouvido do fumante”.

Como vemos pelo texto desta página, em 1970 o Brasil ainda desconhecia "a ira dos intolerantes"
O livro termina oferecendo ao leitor algumas informações curiosas sobre fumantes célebres, das quais selecionei as que mais me agradaram exatamente por sua singularidade:

“William Thackeray [importante romancista inglês do século XIX] certa vez escreveu: ‘O cachimbo faz sair a sabedoria da boca do filósofo e fecha a boca do tolo’.”

“Thomas Yewat, um grande industrial de Ohio, quebrou por infelicidade um de seus cachimbos prediletos. Por causa disto durante três meses vestiu traje de luto.”

E a última, carregada de delicioso humor:

“São por demais conhecidas, mas tão espirituosas que merecem ser repetidas, as palavras do célebre caricaturista Paul Gavarni, dirigidas a um amigo, pouco antes de morrer: ‘Deixo-te meu cachimbo e minha mulher; cuide bem do cachimbo’.
Uma das ilustrações de Paul Gavarni