setembro 30, 2011

O “nós” que não faz de nós mesmos o critério absoluto

Uma coisa é estar pessoalmente com Cristo, com o Deus vivo; a outra é que temos possibilidade de acreditar sempre e só no “nós”. Às vezes, digo que São Paulo escreveu: “A fé vem da escuta”, não da leitura. Há necessidade também de ler, mas a fé vem da escuta, isto é, da palavra viva, das palavras que os outros me dirigem a mim e que posso ouvir; das palavras da Igreja através de todos os tempos, da palavra que atualmente me dirige por meio dos sacerdotes, dos bispos e dos irmãos e das irmãs. Faz parte da fé o “tu” do próximo, e faz parte da fé o “nós”. E precisamente a exercitação no suportar-se mutuamente é muito importante; aprender a acolher o outro enquanto tal na sua diferença, e aprender que ele também deve suportar-me a mim na minha diferença, para nos tornarmos um “nós”, a fim de podermos um dia também na paróquia formar uma comunidade, chamar as pessoas para entrarem na comunhão da Palavra e caminharem juntas para o Deus vivo. Faz parte disto o “nós” muito concreto que é o Seminário, como o será a paróquia, mas sempre também o olhar para mais além do “nós” concreto e limitado, ou seja, para o grande “nós” da Igreja de todo o lugar e de todo o tempo, a fim de não fazermos de nós mesmos o critério absoluto. Quando dizemos “nós somos Igreja”, dizemos certamente a verdade: somos nós, não uma pessoa qualquer. Mas o “nós” é mais amplo do que o grupo que o está dizendo. O “nós” é a comunidade inteira dos fiéis: os de hoje e os de todos os lugares e de todos os tempos. E não me canso de repetir ainda: é verdade que, na comunidade dos fiéis, existe por assim dizer o juízo da maioria efetiva, mas não pode jamais haver uma maioria contra os Apóstolos e contra os Santos: isso seria uma maioria falsa. Nós somos Igreja. Pois bem, sejamo-lo! Sejamo-lo precisamente no abrirmo-nos ultrapassando-nos a nós mesmos e no estarmos juntos com os outros.

Bento XVI, em sua recente viagem à Alemanha.

setembro 20, 2011

Os perigos da moda René Girard

De repente, no Brasil, dizer-se seguidor de René Girard tornou-se uma espécie de chancela que, por si própria, atesta a idoneidade, a sabedoria e a lucidez deste ou daquele autor. Comportamento, aliás, típico do nosso subdesenvolvimento cultural. Em nome desse novo modismo agora publica-se de tudo, independente de quem seja o autor. É o caso de O pecado original à luz da ressureição: a alegria de se perceber equivocado, do heterodoxo, controvertido e repreensível teólogo James Alison, cujas teses sobre o homossexualismo – escritas num estilo melífluo, que engana os desavisados – são frontalmente contrárias ao Magistério da Igreja. Para completar as heresias do volume, a É Realizações convidou o padre J. B. Libanio (um sociólogo marxista que se acredita teólogo) para escrever a apresentação. Ao que parece, Alison leu, de Girard, apenas o que lhe interessa – e esqueceu de ler o essencial. Quanto à editora, é uma pena que esteja se transformando em mais um braço do esquerdismo tupiniquim.

setembro 13, 2011

“Decidir incondicionalmente a favor da vida”


O II Congresso Internacional pela Verdade e pela Vida (Human Life International) será realizado de 3 a 6 de novembro de 2011, no Mosteiro de São Bento (São Paulo, SP).

Objetivos:

1. Compartilhar experiências sobre a defesa da vida no Brasil e no mundo;

2. Aprofundar aspectos concernentes à defesa da vida humana e à defesa da família;
   
3. Informar sobre as inúmeras pressões exercidas contra a dignidade da pessoa humana e suscitar reflexão nos convidados;

4. Promover o diálogo entre as diversas entidades e associações existentes que trabalham em prol da Família.

“Este horizonte de luzes e sombras deve tornar-nos, a todos, plenamente conscientes de que nos encontramos perante um combate gigantesco e dramático entre o mal e o bem, a morte e a vida, a ‘cultura da morte’ e a ‘cultura da vida’. Encontramo-nos não só ‘diante’, mas necessariamente ‘no meio’ de tal conflito: todos estamos implicados e tomamos parte nele, com a responsabilidade iniludível de decidir incondicionalmente a favor da vida.” — João Paulo II, Evangelium vitae, pt. 28

setembro 12, 2011

Joaquim Nabuco – o antifilisteu

No Rascunho deste mês, meu ensaio sobre o clássico Minha formação, de Joaquim Nabuco.

Leiam um trecho:

No ensaio “Um capítulo da higiene mental dos artistas”, Hermann Hesse fala sobre a importância do ócio na vida do escritor. O tom às vezes exageradamente hedonístico dessas páginas não me agrada, mas o romancista alemão está certo quando diz que “o trabalho intelectual se deixa envolver e dominar” cada vez mais “pela atividade industrial rude e violenta, sem tradição e bom gosto” e que “retalhamos o tempo em pequenos e ínfimos pedaços, dos quais cada um tem ainda o valor de uma moeda”. O texto, escrito em 1940, permanece atual, com um agravante: a arte, contaminando-se, de maneira crescente, do corriqueiro, do vulgar, passou a obedecer a certo filistinismo hostil, zombeteiro até, em relação à estética que, repelindo a demagogice, anseia preservar um mínimo de virtuoso requinte. Nabuco tinha perfeita consciência disso e denunciava que “o público, o protetor moderno das letras, cuja generosidade tem sido tão decantada, não passa de um Mecenas de meia-cultura”. Não por outro motivo ele alertou, 40 anos antes de Hesse, que

a primeira condição para o espírito receber a impressão de uma grande criação qualquer, seja ela de Deus, seja das épocas — nada é puramente individual —, é o repouso, a ocasião, a passividade, o apagamento do pensamento próprio […].

setembro 08, 2011

A bondade é mais interessante que a maldade

Uma frase da escritora Anne Rice, publicada por certo amigo no Facebook, revela, de maneira indireta, qual o senso comum destes dias, inclusive entre escritores. Para Rice, “é triste que não possamos fazer a bondade ser tão interessante quanto a maldade”. A autora, conhecida por suas tramas de vampirismo – e que teria voltado à Igreja Católica em 1998 –, mostra-se melancólica em relação ao fato de a temática do bem não produzir tantos adeptos quanto a literatura que narra o mal. Teríamos nos acostumado à maldade? E estaríamos realmente impedidos de transformar a bondade num tema capaz de despertar interesse?

Esse é o problema da rápida reflexão de Anne Rice: ela só exprime o senso comum. Pois, como respondi a meu amigo, a bondade é mais interessante que a maldade. A verdade parece ser o contrário apenas porque somos massacrados – do noticiário à literatura – por todas as formas de mal, dia após dia. Nossa cultura niilista, devota do pessimismo, insiste em nos apresentar o mal como a regra de todos os homens – e exatamente por esse motivo nada, absolutamente nada, pode ser mais entediante do que a maldade.

Se o homem contemporâneo é descrito por muitos como a figura do egoísmo, do vazio e da frivolidade, se a vilania tornou-se vitoriosa na ficção, em parte da poesia e, se acreditarmos no que diz a mídia, também na realidade, isto se deve ao cinismo que a cultura erudita do século XX elevou à categoria de deus. Mas se dermos ao homem enfadado pela maldade um só gesto, uma só página de bondade, ele se sentirá renovado, quando não desorientado, pois a bondade – neste mundo que aparentemente cultua o mal – inquieta, perturba, estimula.

É preciso, portanto, abandonar o senso comum dos nossos intelectuais, deixar de ser nietzschianos de ouvido, virar no avesso a frase de Anne Rice: o mal apenas parece mais interessante que a bondade – e por uma só razão: ele é amplamente difundido, propagandeado. A intelligentsia e os formadores de opinião colocaram o homem no atoleiro moral – e não querem que ele saia daí. Parafraseando Rice, é triste que nossos escritores não tenham coragem para mostrar a verdade: que só o bem é verdadeiramente interessante – e que nobreza, generosidade, honradez e benevolência são as únicas forças capazes de libertar o homem do tédio em que pretendem aprisioná-lo.

setembro 06, 2011

O ironista macambúzio

Costumo afirmar, para desagrado de meus amigos nacionalistas, que o Brasil é um país primitivo. E, para infelicidade deles, os fatos confirmam minha certeza. Em qual país civilizado, um crítico, escrevendo seu texto em 2011, poderia reclamar, ao se referir a certo autor de inegáveis méritos, que sua obra se encontra esquecida, salientando que a mesma afirmação já fora pronunciada na década de 1940, em 1967 e, novamente, dez anos depois?

O escritor é o maranhense João Francisco Lisboa. E os principais defensores de sua memória formam um trio respeitável que, ao longo do século XX, malhou em ferro frio. No início da década de 1940, Álvaro Lins, então diretor da Coleção Joaquim Nabuco, da falecida Americ Editora, ao pensar em “livros antigos, esgotados ou pouco acessíveis” do século XIX, imediatamente lembrou de Lisboa. Graças a Lins, Octávio Tarquínio de Souza pôde organizar os volumes das Obras escolhidas, publicados em 1946. Vinte e um anos depois, João Alexandre Barbosa, em seu lúcido ensaio de introdução ao volumezinho da Coleção Nossos Clássicos (Editora Agir), mostrava-se enfático: “A obra de João Francisco Lisboa, apenas superficialmente referida nos nossos tratados de história literária ou somente lembrada em discursos comemorativos [...], obra que tem sido louvada sem ser lida ou que, e vem a dar no mesmo, se conhece tão somente de antologias da língua portuguesa [...]”, é “uma obra esquecida”. Finalmente, dez anos mais tarde, Maria de Lourdes M. Janotti lamentaria, no mais alentado estudo da vida e da obra do maranhense – João Francisco Lisboa: jornalista e historiador (Editora Ática) –, o fato de ele ser “um desconhecido para o país”, e que, descontados os poucos testemunhos de seus contemporâneos, o pesquisador que pretendesse estudá-lo se depararia com “um grande vazio bibliográfico”.

De fato, a bibliografia de – e sobre – João Francisco Lisboa é das mais pobres. A primeira edição de suas Obras completas foi publicada entre 1864 e 1865; no ano de 1901, uma nova edição surgiu, em Portugal; daí, saltamos para 1946, com as Obras escolhidas; e de lá para cá os problemas só se agravaram. Às vezes algum editor oferece uma surpresa, como as edições de Vida do Padre Vieira, pela extinta Jackson, ou os Apontamentos para a história do Maranhão, que a Vozes publicou em 1976, ou a Crônica política do Império, editada pela Francisco Alves em 1984. Hoje, quem pretende conhecer um pouco de Lisboa deve encetar penosa jornada pelos sebos, ou se satisfazer lendo excertos da sua obra mais famosa, Jornal de Timon, publicados pelas editoras Cia. das Letras (1995) e do Senado Federal (2004).

Mata-se, assim, com edições minguadas, esse escritor dono de estilo inigualável, verdadeiramente clássico, de páginas cujo poder descritivo só pode ser qualificado como surpreendente. Não há exagero, acreditem, quando afirmo que não termos edições dos seus folhetins –“Procissão dos Ossos” e “Festa de Nossa Senhora dos Remédios”, por exemplo, lançados quando ele era redator do Publicador Maranhense, em 1842 – ou dos “Retratos” que escreveu sob o pseudônimo de Zumbido – em 1843, no Echo do Norte – diminui a nossa literatura. E para que não me acusem de empreender, nesta série de ensaios, uma campanha difamatória contra certos românticos, repito apenas o julgamento de Álvaro Lins:

[...] Quando já envelhecida ou ultrapassada uma ideia de João Francisco Lisboa, ainda assim permanece íntegra e atualizada a forma em que ele a exprimira. [...] Que se compare a prosa do autor do Jornal de Timon, pelo senso estilístico e pela estrutura literária, com a de seus contemporâneos [...], sem excluir José de Alencar, de expressão formal tantas vezes insuportável na frouxidão ou vacuidade do seu verbalismo [...] – e ver-se-á, então, que João Francisco Lisboa não parece só um escritor de outra época, mas até de outro país e de outra literatura. Como prosador, aproxima-se dele, naquele tempo, tão só Manuel Antônio de Almeida (in A glória de César e o punhal de Brutus).

Edições

Não seria próprio de um país primitivo que tenham restado, de tal escritor, tão poucas opções de leitura neste início do século XXI? Exatamente por esse motivo, somos obrigados a nos ater ao Jornal de Timon: trata-se, como dissemos, da única obra que ainda pode ser encontrada nas livrarias. É, aliás, sintomático que apenas esse livro – compêndio avassalador sobre as formas de corrupção, principalmente nos processos eleitorais – tenha sobrevivido ao esquecimento: o fato de termos duas edições do Jornal de Timon parece dizer que nosso país insiste em se olhar ao espelho, sem, ao que parece, enxergar-se. E, terrível ironia – semelhante às do próprio Lisboa, exímio ironista –, a obra mais completa é a publicada pela Editora do Senado.

Porém, antes de seguirmos em frente, a expressão “mais completa” exige explicações: a edição do Senado, apesar de trazer mais textos que a da Cia. das Letras, não apresenta o “Prospecto do Jornal de Timon”, escrito para ser uma introdução à obra. A da Cia. das Letras, por sua vez, traz o “Prospecto” mas descarta os folhetins iniciais, em que Lisboa estuda as eleições na Antiguidade, na Idade Média e nos tempos modernos. Finalmente, nenhuma das duas oferece os últimos folhetins, de 1858, escritos quando, vivendo em Portugal – recolhido à pesquisa de documentos sobre a história brasileira, função em que substituiu Gonçalves Dias –, Lisboa retomou a publicação interrompida em 1853.

O leitor, portanto, ainda que possa desfrutar, em ambas as edições, da parte mais significativa do Timon – “Partidos e eleições no Maranhão” –, ou perde os textos esclarecedores do início, ou fica sem saber que direção o autor tomou depois de ter praticamente esgotado seu tema principal. Suspensos num desagradável vácuo, somos obrigados a ler apenas o que os editores consideraram importante – sem, no entanto, conhecer seus critérios de avaliação.

Nasce Timon

A leitura dos textos que antecedem a parte central da obra nos revela os processos de formação do periódico – que foge completamente aos padrões contemporâneos – e de construção do narrador, Timon, inspirado no filósofo homônimo da Antiguidade, autor de poemas satíricos. Depois de lermos o “Prospecto”, que não deixa dúvidas quanto ao espírito do jornal –

Timon enche a sua obscura carreira em um obscuro e pequeno canto do mundo; e apesar do pouco aviso e desacordo que devera ser o resultado do seu ódio pretendido ao gênero humano, ou pelo menos à geração presente, nem por isso ignora que não é para todo o dizer tudo, em todo tempo e em todo lugar

­–, passamos à construção gradual do pensamento de Lisboa, como se o autor tateasse seu objeto de estudo, tratando primeiro dos crimes eleitorais e das formas de manipulação das massas em tempos remotos, para só depois atacar seus contemporâneos. Ele estuda a forma adequada de se exprimir; quem sabe, testa a reação dos leitores; ou apenas empreende um projeto realmente educativo. Já encontramos nesses capítulos os períodos bem arquitetados, límpidos, de pontuação segura; e descortinamos as fontes do autor: cita Plutarco, tratando-o com intimidade, a ponto de chamá-lo “único amigo”, e também Maquiavel, Montesquieu, Salústio, Tácito, Dickens – e mais à frente, Camões, Cervantes, Molière, Tocqueville e Chateaubriand (deste, Lisboa soube escolher, diferente de Alencar, o melhor livro: Mémoires d'outre-tombe).

O narrador implacável surge timidamente. De início, na segunda parte de “Eleições na Antiguidade”, fala de si como um simples “eu”, repetindo o mesmo procedimento parágrafos depois. A partir desse ponto, se pronuncia cada vez mais, agora referindo-se à sua pessoa como um terceiro – recurso que cria certo efeito de insuspeição, mas que, apesar de sugerir uma respeitosa distância entre Timon e os fatos, coloca o narrador no papel de testemunha ocular ou, pelo menos, de alguém capaz de obter declarações fidedignas. Pari passu, analogias entre exemplos do passado e a realidade do Maranhão começam a aparecer. Quando seus contemporâneos são invocados, tornando-se a matéria principal do texto, a construção do compêndio sobre crimes eleitorais e demagogia – para Timon, mãe de todas as transgressões políticas – chega ao ápice. E se o narrador, pessimista inflexível em relação ao Brasil, pondera que “onde há o mal também podemos encontrar o bem”, logo a seguir salienta: “Falo dos estranhos”.

Ficção

Iniciada a série de nove seções do capítulo “Partidos e eleições no Maranhão”, o leitor não tem dúvidas sobre que tipo de críticas encontrará – mas ainda desconhece as habilidades superiores do narrador: essas páginas se inscrevem entre as melhores da prosa brasileira – e deveriam ser lidas e estudadas por todos os que pretendem conhecer nossa literatura ou redigir em língua portuguesa.

Antes de iniciarmos a leitura, devemos ter claro que abandonamos o porto aparentemente seguro da ciência histórica e nos lançamos à ficção. Mais que utilizar recursos alegóricos – como salientou João Alexandre Barbosa –, Lisboa inventa, imagina, cria um universo particular, com personagens, cenários, diálogos; há dramas subjacentes à narração, ambições se digladiam, e o que se encontra em disputa não é um simples processo eleitoral, mas projetos de vida, individualidades que usam as mais diversas armas para garantir a prevalência de seus interesses. A cada página, sem nos esquecermos de que ele fala muitas vezes de personagens coletivos – os eleitores, o partido, a oposição etc. –, estamos, insisto, distantes do relato histórico, em plena criação fantasiosa, essencialmente ficcional. Não importa que tais páginas tenham sido escritas com intuito diverso, o de fazer severas denúncias ou de comprovar as teses do autor: o resultado escapa ao controle de Lisboa – e ele nos legou algo maior do que planejara.

Vejam, logo no início, o presidente de Província e seu medo de ser substituído, na iminência das eleições, por um adversário, o que acabaria com seu sonho de se candidatar a deputado. À longa descrição dos estados emocionais do político, acrescentam-se os angustiados pensamentos de quem procura se convencer da própria segurança, ainda que a realidade lhe mostre o contrário. Trata-se de um clima febril, no qual há evidente exagero melodramático, recurso que só aumenta nossa percepção sobre a absoluta egolatria desse político:

Só quem observar de perto um presidente candidato no meio destas obsessões e das intrigas que para a sua queda se agiram na corte e na província, ao aproximar-se a terrível quadra eleitoral, poderá compreender a intensidade da longa agonia que o vexa e extenua, até ser coroada pela morte e demissão, ou por um triunfo renhidamente disputado, miserável compensação dos amargos dissabores curtidos, e das cruéis injúrias devoradas.

Então, da fortaleza que guarda a cidade soa o aviso: um navio, trazendo a bandeira imperial, se aproxima. É o fim. Ele será substituído. Sem conseguir tomar as necessárias decisões, o presidente só vê a derrota. Até a rapidez com que o vapor se aproxima é acintosa. E nenhum detalhe escapa ao narrador: do uniforme desbotado da tropa que se perfila para receber o novo governante aos rojões que, sobrepondo-se ao som da música militar, a oposição estoura em diferentes bairros. Semanas mais tarde, quando o deposto embarca de volta à Corte, Timon é impiedoso:

S. Excia. desprendeu-se a custo de seus braços [de um correligionário], e dizem que no momento supremo lançara um derradeiro olhar, baço e vidrado pelo susto da fraudada candidatura, como um pecador não absolvido que partisse para outro mundo.

Antífrases

Se ficássemos dando exemplos da capacidade descritiva de Lisboa, seria melhor apenas transcrever grande parte do capítulo. Há, contudo, um aspecto de sua prosa que desejo ressaltar: a ironia. Apreciador dessa figura, ele se tornou um mestre na difícil e ilustrada arte do ironismo.

Voltando ao início do livro, ao descrever a morte de Fócion, político e general ateniense acusado de traição, Timon relata que o condenado, “no momento fatal, cedeu [...] a precedência para a morte a seus companheiros de infortúnio [...]; de maneira que quando lhe chegou a vez estava esgotada a taça do suplício”. A seguir, vejam com que aristocrática ironia ele descreve a atitude do carrasco: “Então o algoz, homem de uma pontualidade e exatidão que faria honra a qualquer banqueiro moderno, declarou que já tinha feito o seu dever, e certamente não havia aí obrigá-lo a moer outra dose de cegude, se lhe não pagassem primeiro as suas doze dracmas, que era o preço legal”. O enaltecimento do esmero e do profissionalismo, comparando-os aos de um banqueiro, desmerece, é claro, mais este do que o verdugo, mas ressalta a insanidade do gesto, o caráter excêntrico dessa condenação interrompida por uma exigência burocrática, ampliando a frieza e a cegueira das decisões de Estado. Poucas linhas à frente, Timon diz que os atenienses teriam se arrependido da condenação tempos depois; e conclui: “Estes amáveis republicanos tinham esta apreciável qualidade: raro era o homem eminente entre eles que escapasse à morte ou ao desterro; mas o arrependimento vinha sempre após, se bem que ordinariamente... quando já não podia aproveitar”. As antífrases cumprem seu papel – e o leitor percebe qual o verdadeiro sentido dos qualificativos que o narrador concede aos cidadãos de Atenas –, bem como essa compunção absurda, nascida apenas quando a injustiça se tornou irremediável. 

Retornando ao capítulo “Partidos e eleições no Maranhão”, depois que o narrador municiou seus leitores com vários exemplos de corrupção, descreveu em minúcias os métodos escusos de burocratas e políticos, e também explanou sobre os motivos pelos quais a massa obedece a tais figuras, Timon conclui: “[...] As estupendas escolhas que assinalam e salpicam as páginas da nossa história eleitoral, não consentem duvidar que nos Governos populares a estima pública só se ganha por uma moral mais pura, e por um caráter intelectual mais elevado!” [grifo do autor]. A antífrase surge outra vez, pois, no que se refere à história eleitoral, não há, evidentemente, “escolhas estupendas”; no conjunto, o tom grandiloquente da ironia hiperbólica ressalta a zombaria.

Exagerado moralismo

Percebemos, não só pelo discurso irônico, que há um propósito moralizante em João Francisco Lisboa – mas ele talvez fosse movido também por uma ponta de amargor ou de vingança pessoal, pois, em 1840, doze anos antes de iniciar a publicação do Jornal de Timon, tivera sua candidatura à assembleia provincial preterida por uma influente família do Maranhão, fato que o fez se afastar da política até 1848. De qualquer forma, como moralista, se não foi um La Rochefoucauld ou um Chamfort – nem no estilo, nem no que se refere à pluralidade de interesses –, dentro dos estreitos limites em que viveu e estudou conseguiu colocar-se muito acima de seus contemporâneos.

A partir da seção VIII de “Partidos e eleições no Maranhão”, a insistência do narrador nos mesmos temas começa a enfastiar, inclusive porque ele abandona o didatismo irônico e o relato fantasioso, passando a defender princípios teóricos, teses. Sua casmurrice provoca efeito contrário ao desejado e nos leva a um beco sem saída: se toda a sociedade chafurda no crime e na depravação; se todos os políticos são criminosos; se o povo mostra-se sempre apático e manipulável; então não há como aperfeiçoar as instituições, estamos fadados ao crime e à demagogia perenes – e até mesmo as páginas do Timon são inúteis. Além disso, o discurso catastrofista desse pregador esconde uma contradição: se, como vimos, Lisboa participou da vida política de sua época – além de deputado provincial em três legislaturas, foi secretário de governo de 1835 a 1838 –, até que ponto a descrença que ele manifesta é sincera?

Por outro lado, historiadores atestam a veracidade dos problemas descritos por Lisboa. Basta ler “O sistema político do Segundo Reinado”, em Os donos do poder, de Raimundo Faoro, que inclusive cita algumas vezes o Jornal de Timon, ou “Eleições e partidos: o erro de sintaxe política”, em Teatro de sombras, de José Murilo de Carvalho, para constatarmos que, como diz este último, citando Joaquim Nabuco, o Segundo Império foi a “paródia da democracia”. Os poucos defeitos de Lisboa surgem, assim, da falta de distanciamento entre ele e seu objeto de análise, pois o autor não percebe que, apesar de ter-se na conta de imparcial, a paixão turva seu poder de julgar, condenando-o a um exagerado pessimismo.

***

Quando residiu em Portugal, João Francisco Lisboa encontrou-se algumas vezes, numa pequena livraria, com Alexandre Herculano; e sua descrição do colega de ofício – “é um macambúzio pior que eu” – fala muito da sua própria personalidade. Mas devemos apagar da obra as páginas carrancudas do evangelizador, para ficarmos com os atributos que contradizem sua autodefinição: a eloquência mordaz, a escrita translúcida, a fabulação inebriante – e o riso ensolarado e destrutivo do ironista.

setembro 01, 2011

O reino dos demagogos

Feliz era G. K. Chesterton, que podia dizer: 

“Já passamos da época do demagogo, do homem que tem pouco a dizer, mas o diz em voz alta”.

Nós, no Brasil, ainda estamos longe dessa alegria.