Gustave
Flaubert escreveu Madame Bovary entre
1851 e 1856. Na verdade, “escrever”, neste caso, é um eufemismo. O verbo não dá
conta de todos os estados emocionais experimentados durante a execução do
projeto e, muito menos, do confronto ocorrido – não só naqueles anos – entre o
escritor e as palavras. Mas podemos acompanhar os altos e baixos da relação
autor–obra lendo a correspondência de Flaubert, da qual uma pequena parte foi traduzida no Brasil.
No
início de novembro de 1851, ele escreve à amante, Louise Colet: “[...] Avanço
penosamente no meu livro. Eu gasto bastante papel. Quantas rasuras! A frase
demora a vir. Que diabo de estilo escolhi! Que desgraça os temas simples!”. E
conclui: “Eis-me comprometido por um ano pelo menos”. Poucas semanas mais
tarde, em fevereiro de 1852, percebe que previu mal o futuro: “[...] Isso está
tomando proporções formidáveis em termos de tempo. Com certeza, eu ainda não
terei terminado até o início do próximo inverno”. E as dificuldades persistem:
“Não escrevo mais que cinco ou seis páginas por semana”.
Mal
abril começou, ele está desesperado:
Estou mais cansado do que
se empurrasse montanhas. Há momentos em que tenho vontade de chorar. É preciso
uma vontade sobre-humana para escrever e eu sou apenas um homem. [...] Você
sabe quantas páginas eu vou completar dentro de oito dias desde que voltei daí?
Vinte. Vinte páginas em um mês e trabalhando pelo menos sete horas por dia; e
qual o fim de tudo isto? O resultado? Amarguras, humilhações internas, nada em
que se amparar a não ser a ferocidade de
uma fantasia indomável.
Ainda
escrevendo a Louise, sua privilegiada interlocutora, a 24 de abril ele
experimenta sentimentos contraditórios:
Eu completei [...] vinte e
cinco páginas (vinte e cinco páginas em seis semanas). Foram duras de conseguir.
[...] Eu as trabalhei tanto, recopiei, mudei, remanejei, que no momento não
vejo mais nada. [...] Levo uma vida áspera, deserta de qualquer alegria
exterior e onde não tenho nada em que me apoiar a não ser uma espécie de raiva
permanente, que às vezes chora de impotência, mas que é contínua. Eu gosto do
meu trabalho com um amor frenético e pervertido, como um asceta do cilício que
lhe arranha o ventre. Às vezes, quando eu me encontro vazio, quando a expressão
se furta, quando, depois de ter garatujado longas páginas, descubro que não fiz
nem uma frase, caio no meu divã e fico ali paralisado num pântano interior de
tédio.
Eu me odeio e me acuso por
essa demência de orgulho que me faz arquejar atrás da quimera. Um quarto de
hora depois, tudo mudou; meu coração bate de alegria. Na última quarta-feira,
eu fui obrigado a me levantar para apanhar meu lenço de bolso; é que as
lágrimas corriam sobre o meu rosto. Eu me enterneci escrevendo, eu gozava,
deliciosamente, da emoção de minha idéia e da frase que a revelava e da
satisfação de tê-la encontrado.
Até
o início de junho de 1856, as cartas oscilarão do júbilo ao cansaço, do
desespero ao encontro repentino de forças para perseverar, da repugnância ao prazer
de conseguir a palavra correta para o que ele deseja dizer.
“Passo
várias horas a procurar uma palavra”, afirma em maio de 1852. No dia 23 do
mesmo mês, sente-se “estéril como uma pedra”. Mas em 18 de julho, comemora:
“Quinta à noite, às duas horas da manhã, eu me deitei tão animado com meu
trabalho que às três me levantei e trabalhei até o meio-dia. [...] Eu ainda
sinto o gosto dessas trinta e seis horas olímpicas e fiquei contente, como na
felicidade”. Entretanto, passados quatro dias, se diz pronto a “recopiar,
corrigir e rasurar toda a primeira parte”, concluindo: “Que coisa desgraçada é
a prosa! Não termina nunca; tem-se que refazer sempre”. E logo depois, a 27 de
julho, a constatação lapidar: “Ao escrever esse livro, eu sou como um homem que
tocasse piano com bolas de chumbo sobre cada falange”.
No
dia 26 de outubro, afirma ter “vinte e sete páginas (quase prontas) que são o
trabalho de dois grandes meses”. Em janeiro de 1853, diz ter conseguido 65
páginas em cinco
meses. Em abril, contando a partir de janeiro, alcança a
marca de 39 páginas. E em meio à “fadiga” e à “fetidez do tema”, que se
alastram por todo o abril, ele lamenta: “Há três semanas que estou a escrever dez páginas! Passo dias inteiros a mudar
palavras repetidas, a evitar assonâncias! E quando trabalho bem, estou menos
adiantado no fim do dia do que no começo”.
Quando
chega outubro, ele detesta o livro e a si mesmo:
Este livro, no ponto em que
estou, me tortura de tal modo (e se eu achasse uma palavra mais forte, eu a
empregaria) que eu fico às vezes doente fisicamente. Há três semanas que tenho
com frequência dores de fazer desmaiar. De outras vezes, são opressões, ou
melhor, vontade de vomitar na mesa. Tudo me desgosta. Acho que hoje me teria
enforcado com delícia, se o orgulho não me tivesse impedido. É certo que às
vezes sou tentado a mandar tudo se foder, e a Bovary em primeiro lugar. Que
santa idéia maldita eu tive em apanhar um tema semelhante! Ah! eu bem os conheci,
os pavores da Arte!
No
entanto, pouco antes do Natal, a 23 de dezembro, às duas da madrugada,
Flaubert, apesar de “fatigado com a lentidão” e de temer “o despertar, as
desilusões das páginas recopiadas”, é um homem seduzido pela escrita:
[...] Bem ou mal, é uma
coisa deliciosa escrever, não ser mais para si mesmo, mas circular
em toda a criação de que se fala. Hoje, por exemplo, homem e mulher tudo junto,
um e outro amante ao mesmo tempo, eu passeei a cavalo, numa floresta, por uma
tarde de outono, sob folhas amarelas, e eu era os cavalos, as folhas, o vento,
as palavras que eles diziam e o sol vermelho que fazia entrecerrar as pálpebras
afogadas de amor. É orgulho ou piedade, é o extravasamento néscio de uma
auto-satisfação exagerada? ou então um vago e nobre instinto de religião? Mas
quando eu rumino, depois de tê-las sentido, estas alegrias, vejo-me tentado a
fazer uma oração de agradecimento ao bom Deus, se eu soubesse que ele me
ouviria. Que ele seja bendito por não me ter feito nascer negociante de
algodão, escritor de vaudeville,
homem espirituoso etc!
Mais
tarde, em 18 de abril de 1854, ele reclamará novamente: “Quando é que virá o
dia bem-aventurado em que escreverei a palavra fim? Em setembro, vão fazer três anos que estou neste livro. É
muito, três anos passados sobre a mesma idéia, a escrever com o mesmo estilo
[...], a viver sempre com os mesmos personagens, no mesmo meio, com os flancos
de encontro à mesma ilusão”.
No
ano seguinte, 1855, em maio, escrevendo ao amigo Louis Bouilhet, diz temer que
o fim do romance pareça “acanhado, pelo menos como dimensão material”. Quando
setembro está prestes a terminar, trabalha “mediocremente e sem gosto ou talvez
com desgosto” e se diz “verdadeiramente cansado”. Finalmente, a 1º de junho de
1856, revela a Bouilhet ter enviado o manuscrito ao editor – mas só depois de suprimir
“cerca de trinta páginas, sem contar nisso aí muitas linhas subtraídas”, além
de detalhar vários outros cortes.
Método e paixão
Se
há várias maneiras de narrar uma história, há um número quase infinito de se
escrever uma biografia. Esse período de 1851 a 1856 poderia ser visto sob diversos
prismas, mas prefiro pensar nesses anos torturados como uma seqüência de meses
centrais na carreira do escritor, não apenas por terem resultado em Madame Bovary, mas principalmente pelas
centenas de páginas jogadas no lixo, pelo número inexprimível de palavras
rasuradas e frases refeitas, pelas horas de angústia e pelo gozo, ainda que
efêmero, de chegar a um resultado – uma infatigável luta com as palavras.
Flaubert
não estabeleceu apenas um método de trabalho. Sim, ele sabia que “todo talento
de escrever não consiste senão na escolha das palavras. É a precisão que faz a
força” – diz a Louise Colet, a 22 de julho de 1852. Mas não se tratou somente
de disciplina. Flaubert tinha consciência das correntes que o prendiam, maiores
que os seus próprios limites. Sabia que a expressão humana é claudicante, falha,
imperfeita; que há um abismo separando a idéia e o discurso, a emoção e a
palavra. O narrador de Madame Bovary
conclui em certo trecho que “a palavra humana é como um caldeirão rachado, no
qual batemos melodias próprias para fazer dançar os ursos, quando desejaríamos
enternecer as estrelas”. Ter a clara consciência da imperfeição, da rudeza dos
meios humanos, do idioma, e ainda assim persistir, demanda mais que obediência
a um método: exige obsessão, exige viver em um mórbido estado de vigilância e
pesquisa, cuja primeira conseqüência é a solidão, e, logo a seguir, a visão terrível
de seus semelhantes como uma horda de estúpidos e insensíveis. De fato, em 22
de abril de 1853, ele escreve: “O único meio de viver em paz é colocar-se, de
um salto, acima da humanidade inteira e não ter nada em comum com ela, a não
ser pelo olhar”. Se Flaubert agiu corretamente ao se transformar em um tipo
especial de misantropo, isso podemos discutir em outro momento. O que interessa
neste texto é que, pensando dessa forma e agindo como agiu, exatamente por
esses motivos, deu vida a Emma Bovary.
Em
seu ensaio sobre Flaubert, Henry James chama nossa atenção para a personalidade
de Emma: “[...] Ela mergulha cada vez mais fundo em duplicidade, dívidas,
desespero, e encontra um fim trágico [...]. E faz tudo isso enquanto permanece
absorvida pela visão e pela intenção românticas, e permanece absorvida pela
visão e pela intenção românticas enquanto rola na lama”. Ora, a febre de Emma
reflete a febre de seu criador. Flaubert não escreve apenas, mas se espoja nos
rascunhos da obra, cego a tudo que não seja o romance, reclamando do que o
obriga a interromper seu trabalho e procrastinando o mais que pode os encontros
com Louise Colet, dedicado exclusiva e apaixonadamente à literatura, escrevendo
e devorando Rabelais, Cervantes e Montaigne – a vida que ele chamou de uma
“orgia perpétua”.
Fetichismo
Mas
para se viver em uma “orgia perpétua” faz-se necessário desejar não somente o clímax
do prazer – esse gozo que se aproxima do estertor. Alguns amantes imaginam que
a volúpia é feita também do amor aos detalhes; às vezes, do apego fetichista a
este ou àquele pormenor. E Flaubert demonstra ser esse tipo doentio de amante. Uma
cena, para ele, requer a evocação de tantas minúcias, que chegamos a nos
perguntar se, de fato, tudo é imprescindível. Mas tudo é imprescindível. Um editor malevolente poderia suprimir algumas
frases – e Madame Bovary continuaria
genial –; perderíamos, entretanto, uma série de elementos que, combinados, não
só forjam verossimilhança, mas seduzem, modelam o mundo do qual nos aproximamos
como animais curiosos, sedentos de uma realidade que não seja a nossa.
Quando
Charles Bovary visita pela primeira vez a propriedade dos Bertaux, onde Emma
vive com o pai, a quinta se revela para o leitor em meio à sonolência do médico.
Amanhece, e não bastasse o vapor úmido que se eleva de uma grande estrumeira,
“sob o telheiro havia duas grandes carroças e quatro charruas com seus
chicotes, seus cabrestos, sua equipagem completa, entre os quais as peles de
carneiro pintadas de azul sujavam-se com o pó fino que caía dos celeiros”. Ao
penetrar na casa, Bovary vê o almoço dos criados fervendo ao redor do fogo, as
roupas úmidas secando na lareira, e “a pá, as pinças e os foles, todos de
proporções colossais”, que “brilhavam como aço polido”, e a “abundante bateria
de cozinha onde se refletiam de forma desigual a chama clara do fogão
juntamente com os primeiros raios de sol que entravam pelas vidraças”. É a
exaltação do detalhe. Mas não há um único elemento que, ao ser retirado, dele possamos
dizer: – Realmente, era desnecessário.
Nas
seguidas visitas que Bovary faz aos Bertaux, Emma, ao se despedir,
sempre o acompanhava até o
primeiro degrau da escada externa. Enquanto não traziam seu cavalo, ela
permanecia ali. Já se haviam despedido, não se falavam mais; o ar livre a
rodeava, levantando em desordem os pequenos e loucos cabelos de sua nuca ou
sacudindo em seus quadris os cordões do avental que se enroscavam como
bandeirolas. Uma vez, num dia de degelo, a casca das árvores ressumava no
pátio, a neve fundia nos telhados das construções. Ela estava na soleira da
porta; foi procurar a sombrinha, abriu-a. A sombrinha de seda furta-cor que o
sol atravessava iluminava com reflexos móveis a pele branca do seu rosto.
Embaixo, ela sorria no calor tépido e ouviam-se as gotas d’água, uma a uma, que
caíam sobre o chamalote esticado.
O
jogo de luzes, a brisa e a leve tensão da despedida, ampliada pelo silêncio de
Emma e Charles. E as gotas d’água a entrecortar o silêncio, propagando ainda
mais a tensão – Flaubert interliga os elementos, e semeia no leitor o desejo de
estender a mão para conceder à cena o tato, o sentido que falta.
Algum
tempo depois do casamento, os Bovary são convidados ao castelo do marquês de
Andervilliers. Emma penetra em uma galeria na qual se sucedem, “sobre a madeira
escura do lambri”, as pinturas que retratam os antepassados da família. Ela tenta,
em vão, captar todas as imagens, sorver cada detalhe, mas é impossível:
Depois, mal se distinguiam
os que vinham em seguida, pois a luz das lâmpadas, caindo sobre o tapete verde
do bilhar, deixava flutuar uma certa sombra na sala. Escurecendo as telas horizontais,
quebrava-se contra elas em finas arestas seguindo as fendas do verniz; e, de
todos aqueles quadrados negros debruados de ouro saíam, cá e lá, uma porção
mais clara de pintura, uma fronte pálida, dois olhos que fixavam o observador,
perucas que caíam sobre os ombros empoeirados dos trajes vermelhos, ou então a
fivela de uma jarreteira no alto de uma panturrilha roliça.
A
miríade de pormenores, a volúpia por descrever, por chafurdar num oceano de
cores, formas e perfumes, se repetirá sempre. Flaubert agoniza para dar conta
de toda a realidade, e parece, a cada novo parágrafo, próximo do paroxismo ou
do êxtase, o que configura uma sobrecarga emocional permanente. Quando Emma
retorna do castelo, sofrendo pelo fato de abandonar aquele mundo ideal, fecha
“piedosamente na cômoda seu belo vestido e até seus sapatos de cetim [...]”. Mas
não só. Falta algo à frase. E então Flaubert nos oferece o complemento preciso:
“[...], cuja sola amarelara-se com a cera deslizante do assoalho”. A busca do pormenor
exato faz com que Flaubert escreva a um passo do esgotamento; mas ele se dispõe
a pagar o preço, a fim de que nada escape ao leitor.
Amor e ódio
Esse
extremo cuidado com os detalhes nos fornece indícios da personalidade de Emma
desde as primeiras páginas do romance. Em uma das visitas de Bovary à quinta
dos Bertaux, o futuro casal bebe licor. Depois de servir a si mesma uma dose
pequena, Emma leva o copinho à boca: “Como estava quase vazio, ela inclinava-se
para trás, para beber; e com a cabeça deitada, avançando os lábios, com o
pescoço retesado, ria por nada sentir, enquanto, passando a ponta da língua
entre os dentes finos, lambia aos poucos o fundo do copo”. A adúltera já não
está toda nesses gestos? Sua luxúria não freme na ponta dessa língua serpeante?
Flaubert
descreve bem inclusive quando recusa pormenores ao leitor. Depois de
reencontrar Léon Dupuis em
Rouen, Emma iniciará seu segundo caso de adultério, agora com
o jovem escrevente, que conhecera em Yonville. Quando saem da catedral e se
fecham na carruagem que passa a trafegar por toda a cidade, nada mais sabemos. O
escritor não precisa dizer o que ocorre por trás das cortinas – e também não
precisamos ter, sob os olhos, um mapa de Rouen, a fim de acompanhar a sucessão
de ruas. O infindável e tortuoso percurso alimenta num crescendo a nossa
desconfiança e, ao mesmo tempo, explica tudo. À nossa imaginação bastam a mão
nua que passa sob as cortinas e joga fora a carta de despedida que Emma havia
escrito a Léon, agora transformada em pedacinhos de papel; e depois de horas fechados
ali, a mulher que desce sozinha, “caminhando com o véu abaixado e sem virar a
cabeça”. Minutos mais tarde, sabendo que o marido a aguarda em Yonville, o
narrador arremata nossa certeza, dizendo que Emma sente “no coração aquela
covarde docilidade que é, para muitas mulheres, ao mesmo tempo como o castigo e
o preço do adultério”.
O
escritor nos faz amar e odiar Emma Bovary. Poucos homens não se encantariam ao
ver a clara nudez dessa mulher contrastando com o carmim das cortinas de má
qualidade e, a melhor parte, depois que não existem mais segredos, ela, tão
experiente em dissimular e trair, agindo como uma menina envergonhada:
A cama era uma cama de
casal de acaju em forma de barca. As cortinas de levantina vermelha que desciam
do teto fechavam-se baixo demais, perto da cabeceira que se alargava; e nada
havia no mundo de mais bonito do que sua cabeça morena e sua pele branca
destacando-se sobre aquela cor púrpura quando, com um gesto de pudor, ela
fechava os dois braços nus, escondendo o rosto nas mãos.
Nossa
imaginação despreza as cenas chulas e o vocabulário mortalmente cru ao nos
depararmos com uma descrição que oferece, melhor que as palavras grosseiras, o frenesi
da entrega:
Despia-se brutalmente,
arrancando o fino cordão do seu corpete que lhe sibilava ao redor das ancas
como o escorregar de uma cobra. Ia na ponta dos pés nus ver ainda uma vez se a
porta estava fechada; depois, com um único gesto, deixava cair, juntas, todas
as suas roupas; – e, pálida, sem falar, séria, abatia-se contra seu peito, com
um longo estremecimento.
Mas
ela se entrega apenas quando ama. Chantageada, oprimida pela cobrança das
dívidas e das promissórias, pelo processo e pela penhora dos bens, pode
insinuar a Léon que ele deveria roubar para ajudá-la, mas não aceita ser
seduzida pelo notário de Yonville. Revolta-se, tenta persuadir Rodolphe, o
primeiro amante, a lhe dar dinheiro, e quando percebe que está perdida,
manipula ainda uma última vez. Demonstrando a argúcia e a agilidade de reflexos
que a tornam exuberante, manipula para poder se matar. E a mesma avidez daquela
língua que buscava o fundo do copo de licor, reencontramos na mão que, arrancando
a rolha do pote de veneno, mergulha para retornar cheia do pó branco que Emma
se põe a comer sofregamente.
A dor das mulheres
Numa
carta de setembro de 1852, Flaubert escreve a Louise Colet sobre a dor das
mulheres, de como se aproximou delas e as observou para escrever seu romance: “Eu
conheci suas dores, pobres almas obscuras, úmidas de melancolia guardada, como
estes pátios fundos das casas de província, cujos muros estão cheios de musgo”.
Pergunto-me o quanto esta afirmativa é sincera. Quem escreve não é o homem que
pretendia viver acima da humanidade, sem nada ter em comum com ela, “a não ser
pelo olhar”? A contradição do escritor revela mais que a mera simpatia pelo
drama alheio. O intenso desejo de perfeição, a busca febril dos detalhes e das
palavras precisas – essas forças certamente dominam Flaubert. Mas no íntimo
desse homem há lugar para a solidariedade que o aproxima de seus semelhantes. Caso
não fosse assim, não teria criado uma personagem tão múltipla, em relação à
qual não só ele, mas todos nós, com maior ou menor exatidão, podemos dizer: Madame Bovary c’est moi.