|
"Os professores de hoje pressupõem que a criança dos bairros pobres está plena e culturalmente guarnecida do necessário" |
Há vários meses
assisti, no YouTube, à gravação de um evento numa das favelas pacificadas do
Rio de Janeiro. Diante do público formado por jovens, alguns escritores — parte
deles desconhecida para mim — falavam sobre suas experiências com a criação
literária e davam conselhos.
No local
abarrotado de jovens, um dos iluminados palestrantes insistia no fato de que eles
não deveriam se preocupar com o que existia fora da favela, que aquele era um
mundo que já lhes oferecia inúmeras possibilidades de criação, de
desenvolvimento da sua arte.
Todo o discurso
estava construído sobre uma retórica exageradamente otimista e falsa: a de que
a favela, agora “pacificada”, era o melhor dos mundos.
O palestrante era
uma espécie de reencarnação carioca do Dr. Pangloss.
Enquanto assistia
ao vídeo, lembrei-me de Machado de Assis — e do que teria sido dele, da sua
inteligência, da sua sensibilidade, se não tivesse lutado para abandonar o
Morro do Livramento, se não tivesse recebido a ajuda de Francisco de Paula
Brito e, trabalhando como aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional, as
orientações severas e amigas de Manuel Antônio de Almeida.
O palestrante,
certamente, não se lembrou de Machado. E também não leu a obra do psiquiatra a
escritor Anthony Daniels, que assina seus livros com o pseudônimo de Theodore
Dalrymple.
Segundo Dalrymple, “é como uma tortura requintada, longa e vagarosa, imaginada por uma
divindade sádica de cujas maldosas garras é quase impossível fugir”.
Vivendo nessas
comunidades e atendendo, como médico, os moradores locais, Dalrymple constatou
o que assisti no vídeo do YouTube — e o que estamos cansados de ver nas escolas
contemporâneas: “Os professores de hoje, impregnados da idéia de que é errado
ordenar hierarquicamente civilizações, culturas ou modos de vida, negam o valor
de uma civilização superior e são incapazes de transmiti-lo. Para eles não há
altura ou profundeza, superioridade ou inferioridade, profundidade ou
superficialidade: há somente diferença. Duvidam até mesmo de que exista um modo
correto e um modo errado de grafar uma palavra ou construir uma frase”.
E, acreditem,
encontrei no texto de Dalrymple a cópia fidedigna do que me indignou no vídeo: “Os
professores de hoje”, diz nosso autor, “pressupõem que a criança dos bairros
pobres está plena e culturalmente guarnecida do necessário no ambiente em que
vive. Seu discurso é, por definição, adequado às necessidades; seus gostos são,
por definição, aceitáveis e não piores ou mais baixos que quaisquer outros. Não
há motivos, portanto, para introduzi-las a nada”.
O cinismo desses
professores e intelectuais é insuperável. Muitos repetem esse discurso sem se
importar com o fato de que estudaram em grandes universidades, ganharam bolsas
no exterior e hoje vivem refestelados em bairros de classe média, usufruindo
das oportunidades, do acesso à alta cultura, comunicando-se numa linguagem
perfeita, culta — mas argumentando, como bons demagogos, como bons populistas, em
favor da glamourização da favela.
Esses intelectuais
não mostram como “a cultura de periferia é monolítica e profundamente
intolerante” — e certamente basta, ao leitor atento, o termo “pacificada”, no
qual encontra-se escondida a verdadeira guerra civil que esses bairros
enfrentam.
Não entendo como
podemos mentir de forma tão descarada para nossos jovens.
Dalrymple narra,
em A vida na sarjeta, casos concretos
de jovens inteligentes e sensíveis que foram destruídos pela cultura local,
destituída de “fé na hierarquia de valores”.
É exatamente o que
a reencarnação carioca do Dr. Pangloss defendia no vídeo: uma cultura na qual
“o conhecimento não é preferível à ignorância”, uma cultura em que “os
inteligentes e os que têm sensibilidade sofrem a perda total do significado das
coisas”.
Leiam Dalrymple,
assistam a esses programas transmitidos pelo canal GNT ou pela Globo, em que a
favela é glamourizada, enaltecida como o melhor dos mundos — e depois me
respondam o que teria sido da literatura brasileira se o mulato pobre Machado
de Assis não tivesse lutado para abandonar o morro.