abril 27, 2007


Adeus, maestro


As seis suites de Bach para cello, interpretadas por Mstislav Rostropovich (foto), permanecerão como um dos recursos que utilizo para amenizar a dor, o desapontamento, as angústias. Para iluminar os dias escuros e tristes. Infelizmente falecido hoje, mais que um violoncelista genial, Rostropovich foi um verdadeiro humanista.

abril 26, 2007


O silêncio impossível


Depois de ler Zama, um dos romances que mais me impressionaram nos últimos anos, li, também do argentino Antonio Di Benedetto (foto), O silencieiro, sobre o qual escrevi na edição deste mês do jornal Rascunho.

Um trecho de minha resenha: "A cidade realmente conspira contra o homem. As derivações da tecnologia fugiram, há muito tempo, do nosso controle. Entre a elaboração da ciência e os resultados que ela provoca - em termos de técnicas, instrumentos, modos de vida e variações de comportamento -, existe um abismo de irracionalidade, diante do qual o narrador de O silencieiro se diz um mártir, 'mártir da pretensão de viver minha vida e não a vida alheia, a vida imposta'."

abril 14, 2007

Pernetas


A manhã prometia o de sempre: caminhar até o metrô, ser prensado pela massa de suor, descer na estação, enfrentar duas filas para transpor as escadas rolantes, andar três quarteirões, fechar-se no escritório e deixar que o tempo passasse entre uma assinatura e outra.

Do lado de fora do apartamento – banho tomado, barba feita, terno e gravata impecáveis, camisa branquíssima, sapatos engraxados e cabelo emplastrado de brilhantina –, a chave não obedecia. As ranhuras não encontravam resistência na entrada, mas a haste se negava a girar. Colocou a pasta no chão e tentou novamente. Nada. Abriu e fechou a porta, usou de suavidade, assoprou na fechadura – em vão. Entrou, foi até a escrivaninha e trouxe de lá uma chave sobressalente. Nem sinal de girar. Bateu a porta. Não era possível. Telefonaria para um chaveiro? Seria preciso faltar da repartição? Andou pra lá e pra cá, tomou um copo d’água, assobiou a Marselhesa e resolveu insistir. Primeiro, do lado de dentro: funcionava. Depois, do lado de fora, com cuidado, sem tremer. Girou como sempre, enfim. Fez um novo teste, pois não queria surpresas na volta: perfeito.

Pensava que o contratempo iria complicar tudo. Mas ao chegar à estação, encontrou alguns gatos pingados, nada mais. Olhando o relógio, viu que não estava tão atrasado. Na plataforma, uma dúzia de pessoas nem um pouco afobadas. O trem foi parando e as janelas mostravam os interiores quase vazios. As portas se abriram, ele entrou, e apenas cinco cabeças viraram em sua direção. Se vinte minutos de diferença podiam mudar as coisas assim, o ideal seria atrasar-se todos os dias... Foi quando um dos passageiros se levantou e, apoiando-se na muleta e nos bancos vazios, veio sentar na sua frente. O homem tinha apenas uma perna. No lugar da outra, o pano dobrado e preso com alfinetes. Era moreno, semblante de índio, cabelos lisos e negros mal divididos do lado esquerdo. Olhava-o, inquiridor. O trem corria, rompendo a escuridão, e o perneta com os olhos nele. Mudou de lugar. Então se deu conta: todos os cinco tinham apenas uma perna. Todos usavam muletas. Todos o observavam, olhos fixos nas suas duas pernas, ou melhor, naquela segunda perna errada, fora de lugar, fora de propósito. Sentiu o suor escorrer pela nuca e, lentamente, encharcar o colarinho. O trem corria, e ele não tinha certeza de quantas estações faltavam. Mas o condutor anunciou a próxima parada: a sua. Pôs-se de pé, tenso, e aguardou, aguardou infinitamente, enquanto o olhavam. Assim que as portas abriram, correu como um doido, cruzou as escadas rolantes em poucos segundos, até chegar à rua, onde respirou fundo, seguro.

Ninguém percebeu o atraso. Quando o expediente se aproximava do final, acordou para o fato de que a secretária não o procurara nem uma vez. Abriu a porta devagar e olhou pela fresta: a moça estava sentada na mesinha, os olhos perdidos na parede, cantarolando. Fechou e deu voltas pela sala, preocupado. O que acontecia? A chave, os pernetas, agora isto. Um novo decreto que ele desconhecia? Fora exonerado e o superior aguardava a hora propícia para avisá-lo?

Decidiu voltar de táxi. Os engarrafamentos de costume, o calor no carro sem ar-refrigerado. Entrou no prédio e pegou o elevador. Rezando, enfiou a chave. Quando foi girá-la, a porta se abriu de repente e, sob a luz do hall, deparou-se com uma velhinha. Olharam-se sem nada entender, e ele estava a um passo de agredi-la por invadir seu apartamento, quando viu o número na porta: 71. Um misto de confusão e serenidade o preencheu. Sorrindo, sem graça, pediu desculpas e usou as escadas para subir ao oitavo andar. Relaxado, pronto a concluir o dia, enfiou a chave na fechadura. Mas o tambor não girava. Insistiu, forçou a porta, tentou novamente: nada. Sentou-se no chão, junto à entrada, esperando o mesmo milagre da manhã. Então escutou um barulho. Colou o ouvido na porta. Um arrastar de pé e um baque seco. De novo. E mais uma vez. Alguém caminhava lá dentro. Alguém com uma muleta.

(Crônica publicada na edição de 6 de abril de 2007 do jornal Bom Dia Jundiaí.)

abril 02, 2007

Tempo rápido e tempo lento


Elenir Eller é uma educadora de Jundiaí que decidiu começar vida nova no interior de Pernambuco, nas proximidades de um lugar chamado São José. Pode ser São José do Egito, São José da Coroa Grande ou São José do Belmonte, todos municípios de Pernambuco, mas, com sinceridade, não faço a menor idéia de onde ela está. Mas não importa, ao menos para esta crônica.

Na semana passada, trocando mensagens via Internet com Elenir, ela me contou que “São José fica pertinho daqui – meia hora de carro. Mas no carro de frete... põe uma hora ou mais nisso. Depois que o motorista pega você em casa, você tem de estar disposto a fazer um ‘tour’ pela cidade para pegar mais passageiros. Conclusão: ficamos rodando quase meia hora, passando, às vezes, duas ou três vezes pela mesma rua, pois um passageiro indica outros que estão aguardando o carro em casa. [...] A paisagem na estrada é linda, mas tem de estar relax, porque o carro vai parar um monte de vezes para entrada de novos passageiros e descida de outros, que apeiam pelo caminho”.

Depois de ler, fiquei pensando em alguém que, acostumado à correria de São Paulo, se encontrasse subitamente num lugar como o que ela descreve, onde a vida segue em ritmo lento e o futuro – próximo ou distante – pode esperar. Todas as possíveis reações a tal mudança desfilavam diante de mim e nenhuma delas excluía algum tipo de choque.

Lembrei-me, então, do livro que li há vários anos, escrito pelo geógrafo Milton Santos – infelizmente falecido em 2001 –, intitulado “Técnica – Espaço – Tempo” (Editora Hucitec). Para quem não conhece o trabalho de Milton, talvez baste dizer que, dentre outras honrarias, em 1994 ele recebeu o Prêmio Vautrin Lud, o Nobel da geografia.

Em um dos textos que compõem o volume, Milton fala sobre “o tempo das metrópoles”. Ele tem uma visão peculiar das grandes cidades, que considera como “sistemas abertos e complexos, ricos de instabilidade e contingência”. E chega mesmo a ser otimista em relação aos aglomerados urbanos: “Quanto maior a cidade, mais numeroso e significativo o movimento, mais vasta e densa a co-presença e também maiores as lições e o aprendizado”. Milton expõe, no entanto, a dicotomia existente nesses espaços, dizendo que se existem “áreas luminosas, constituídas ao sabor da modernidade”, estas se “justapõem, superpõem e contrapõem ao resto da cidade, onde vivem os pobres”. Da mesma forma, se nas primeiras regiões o tempo é célere e a velocidade é glorificada, nas últimas, onde o espaço possui uma outra forma de racionalidade, o tempo é lento.

Mas a conclusão de Milton não me satisfaz. Para o geógrafo, quem, nos centros urbanos, tem mobilidade e pode comungar com as imagens e luzes pré-fabricadas, acaba por se perder, enquanto que os pobres, os homens lentos, “para quem essas imagens são miragens”, não podem se encantar por muito tempo com a falsa realidade e acabam, portanto, “descobrindo as fabulações”. Assim, o espaço “inorgânico”, no qual o tempo é lento, seria “um aliado da ação, a começar pela ação de pensar”.

Em minha opinião, as idéias de Milton, especificamente nos pontos acima, chegam a ser simplistas. É como se ele idealizasse a pobreza. Mas ser pobre, viver em regiões nas quais o tempo é lento – semelhantes àquela que Elenir descreve em sua mensagem –, jamais foi ou será garantia de uma conscientização maior em relação à realidade ou de um senso crítico aprimorado.

No caso de São Paulo, a verdade se insurge contra as esperançosas palavras de Milton, pois estamos narcotizados pelas miragens, entorpecidos pela velocidade. A maioria – sem diferença de classe, etnia, religião ou bairro – caminha à noite, na volta do trabalho, socada nos ônibus ou protegida dentro de carros blindados, ruminando o cansaço, o estresse e a frustração. Mantemos os olhos colados nos outdoors como se adorássemos totens luminosos – e chegamos a nos curvar, num triste alheamento, às imagens dos únicos deuses que restaram: o consumo e a futilidade.

(Crônica publicada na edição de 30 de março de 2007 do jornal Bom Dia Jundiaí.)