Tempo rápido e tempo lento
Elenir Eller é uma educadora de Jundiaí que decidiu começar vida nova no interior de Pernambuco, nas proximidades de um lugar chamado São José. Pode ser São José do Egito, São José da Coroa Grande ou São José do Belmonte, todos municípios de Pernambuco, mas, com sinceridade, não faço a menor idéia de onde ela está. Mas não importa, ao menos para esta crônica.
Na semana passada, trocando mensagens via Internet com Elenir, ela me contou que “São José fica pertinho daqui – meia hora de carro. Mas no carro de frete... põe uma hora ou mais nisso. Depois que o motorista pega você em casa, você tem de estar disposto a fazer um ‘tour’ pela cidade para pegar mais passageiros. Conclusão: ficamos rodando quase meia hora, passando, às vezes, duas ou três vezes pela mesma rua, pois um passageiro indica outros que estão aguardando o carro em casa. [...] A paisagem na estrada é linda, mas tem de estar relax, porque o carro vai parar um monte de vezes para entrada de novos passageiros e descida de outros, que apeiam pelo caminho”.
Depois de ler, fiquei pensando em alguém que, acostumado à correria de São Paulo, se encontrasse subitamente num lugar como o que ela descreve, onde a vida segue em ritmo lento e o futuro – próximo ou distante – pode esperar. Todas as possíveis reações a tal mudança desfilavam diante de mim e nenhuma delas excluía algum tipo de choque.
Lembrei-me, então, do livro que li há vários anos, escrito pelo geógrafo Milton Santos – infelizmente falecido em 2001 –, intitulado “Técnica – Espaço – Tempo” (Editora Hucitec). Para quem não conhece o trabalho de Milton, talvez baste dizer que, dentre outras honrarias, em 1994 ele recebeu o Prêmio Vautrin Lud, o Nobel da geografia.
Em um dos textos que compõem o volume, Milton fala sobre “o tempo das metrópoles”. Ele tem uma visão peculiar das grandes cidades, que considera como “sistemas abertos e complexos, ricos de instabilidade e contingência”. E chega mesmo a ser otimista em relação aos aglomerados urbanos: “Quanto maior a cidade, mais numeroso e significativo o movimento, mais vasta e densa a co-presença e também maiores as lições e o aprendizado”. Milton expõe, no entanto, a dicotomia existente nesses espaços, dizendo que se existem “áreas luminosas, constituídas ao sabor da modernidade”, estas se “justapõem, superpõem e contrapõem ao resto da cidade, onde vivem os pobres”. Da mesma forma, se nas primeiras regiões o tempo é célere e a velocidade é glorificada, nas últimas, onde o espaço possui uma outra forma de racionalidade, o tempo é lento.
Mas a conclusão de Milton não me satisfaz. Para o geógrafo, quem, nos centros urbanos, tem mobilidade e pode comungar com as imagens e luzes pré-fabricadas, acaba por se perder, enquanto que os pobres, os homens lentos, “para quem essas imagens são miragens”, não podem se encantar por muito tempo com a falsa realidade e acabam, portanto, “descobrindo as fabulações”. Assim, o espaço “inorgânico”, no qual o tempo é lento, seria “um aliado da ação, a começar pela ação de pensar”.
Em minha opinião, as idéias de Milton, especificamente nos pontos acima, chegam a ser simplistas. É como se ele idealizasse a pobreza. Mas ser pobre, viver em regiões nas quais o tempo é lento – semelhantes àquela que Elenir descreve em sua mensagem –, jamais foi ou será garantia de uma conscientização maior em relação à realidade ou de um senso crítico aprimorado.
No caso de São Paulo, a verdade se insurge contra as esperançosas palavras de Milton, pois estamos narcotizados pelas miragens, entorpecidos pela velocidade. A maioria – sem diferença de classe, etnia, religião ou bairro – caminha à noite, na volta do trabalho, socada nos ônibus ou protegida dentro de carros blindados, ruminando o cansaço, o estresse e a frustração. Mantemos os olhos colados nos outdoors como se adorássemos totens luminosos – e chegamos a nos curvar, num triste alheamento, às imagens dos únicos deuses que restaram: o consumo e a futilidade.
(Crônica publicada na edição de 30 de março de 2007 do jornal
Bom Dia Jundiaí.)