junho 30, 2011

Ultraje e manipulação ideológica

Foi um ultraje, sim. Ofensa gravíssima. Crime de vilipêndio, que pretende rebaixar e perverter a mensagem evangélica. Como afirmou o cardeal Odilo Scherer, foram “provocações e ofensas ostensivas à comunidade católica e cristã”. Mas tratou-se, também, de um gesto premeditado de manipulação ideológica – construído com o apoio da mídia, do governo, de partidos políticos. Verdadeiro acinte.

E tudo se torna ainda mais grave – como bem aponta o Voto Católico – pelo fato de a Parada do Orgulho Lésbico, Gay, Bissexual e Transgênero de São Paulo receber financiamento público, especialmente dos ministérios da Cultura e da Saúde, da Petrobras, da Caixa Econômica Federal e da Prefeitura de São Paulo.

Contra todos esses crimes, nós, cidadãos que nos sentimos ultrajados e ofendidos, devemos:

1. Apresentar queixas às entidades governamentais que financiaram o evento;


3. Entrar em contato com as Procuradorias Regionais dos Direitos do Cidadão, para denunciar crime de ofensa ao sentimento religioso.

junho 28, 2011

Muito além do falso humanismo

Às vezes tenho a alegria de encontrar um texto que, por suas inúmeras qualidades, gostaria de ter escrito. Raras pessoas apresentam, nos dias de hoje, lucidez para abandonar a lógica do senso comum. Aliás, na maioria dos casos, desconfio que não se trata de falta de inteligência, mas, sim, de covardia mesmo. Poucos têm coragem de se contrapor às mentiras, aos chavões e à soberba epistêmica que dominam os discursos na mídia, na política e nas universidades. E se não há coragem, a inteligência também claudica, fraqueja – e torna-se mais cômodo pensar como todos pensam, seguir a torrente de sofismas chamada, com doçura hipócrita, de “politicamente correto”.

Não é o caso do artigo que publico a seguir. Ele rompe com os artificialismos da lógica atualmente hegemônica, vira-a pelo avesso, e mostra como um pensamento limitado pode ter um discurso convincente – mas jamais, jamais representará a verdade. Ele denuncia a mediocridade e a pequenez do humanismo que hoje encontramos na mídia, na Web, nos chamados movimentos sociais e nas rodinhas de intelectuais; e mostra como a mais execrada das mensagens – execrada por ser radicalmente libertadora – recusa as soluções simplistas e superficiais, guarda uma universalidade insuperável e permanece incólume através dos séculos.

O texto foi publicado no blog Contos do Átrio. Ao seu perspicaz e, infelizmente, anônimo autor, ofereço minha sincera admiração.           

Se é “católico”, dispensa adjetivos

A tendência secular hoje é celebrar a diversidade por si só, como se a existência das diferenças fosse por ela mesma algo a se comemorar, e não uma obviedade da raça humana.

É evidente que somos diferentes e que a possibilidade de expressarmos nossas diferenças é uma coisa boa. Mas isso é muito mesquinho e pequeno perto da proposta do cristianismo, que se propõe católico, isto é, universal. E exigir do cristianismo que ele também celebre essas diferenças é podar o cristianismo, tirando sua radicalidade. Transforma-o numa carta de boas intenções que qualquer ONG ou instituição humanitária teria, com suas propostas geralmente óbvias como é óbvia a diversidade humana.

O cristianismo só pode ser universal, logo o único adjetivo que suporta é “católico”. Celebrar diferenças é exatamente o que não pode acontecer no cristianismo. Se o cristianismo olhar para as diferenças, ele simplesmente desaba.

Foi precisamente essa a discussão no Concílio de Jerusalém, narrado nos Atos dos Apóstolos. No começo do cristianismo, contrapunham-se as tendências judaizante – centrada na manutenção de algo da lei judaica, com destaque para a circuncisão – e helenizante, que igualava judeus e estrangeiros e tirava a importância da circuncisão. Segundo o historiador Daniel-Rops, esse debate moldou o cristianismo como ele é logo no primeiro século. Enquanto se diferenciavam os judeus dos gentios, o cristianismo não alcançava seu potencial inicial.

O desafio do cristão não é acolher o homossexual, o negro, o pobre. É acolher o próximo independentemente de ele ser homossexual, negro, pobre ou estrangeiro. Há aí uma diferença sutil, que passa batida, na palavra “independentemente”: se esse rótulo não importa, ressaltá-lo é justamente o que lhe dá importância.

É por isso que o cristianismo é mais feminista do que as feministas, mais “homossimpatizante” do que os LGBTTT, mais social do que os socialistas, mais libertador do que os libertários, mais avançado do que os progressistas, muito mais humano do que os humanistas. O cristianismo é próximo. Rebaixou Deus à dignidade do homem e elevou o homem à proximidade de Deus. Colocar qualquer outro adjetivo que ressalta diferenças – feminista, dos pobres, dos negros, sertaneja, campesina ou o que seja – mutila o cristianismo.

E isso é bíblico. Há uma pilha de tradições cristãs e passagens bíblicas que elimina qualquer diferenciação no cristianismo e chama todos à unidade, porque a verdade só pode ser uma só.

Também é repleto de fundamento bíblico o fato de que o cristianismo aceita a todas as pessoas porque rejeita todos os vícios. Os vícios acentuam a cegueira que leva as pessoas a ab-rogarem a autoridade – de Deus – para dizerem quando e em quê devem fazer o bem aos outros, o que é de uma ingenuidade tremenda. Mal sabemos quando fazemos o bem a nós mesmos; imagina se vamos saber se fazemos o bem aos outros. O cristianismo que aceitasse vícios não reuniria comunidades, só seria um fingimento, um engodo de união entre as pessoas.

Por isso, a invenção de um cristianismo que aceita o pecador sem rejeitar seu pecado – invocando aquela famosa passagem bíblica da pecadora que seria apedrejada – não tem qualquer lógica. É a ridicularização do cristianismo. Se os vícios não forem abandonados, não é possível amar o próximo sob um dos maiores mandamentos, como escrito em Mateus 22, 36, Marcos 12, 28 e João 14,15, e em tantos outros textos bíblicos. Não existe cristianismo sem eles.

junho 26, 2011

Sine Dominico non possumus

“Em uma cultura cada vez mais individualista, como é aquela na qual estamos imersos na sociedade ocidental, e que tende a se difundir por todo o mundo, a Eucaristia constitui uma espécie de ‘antídoto’ que opera nas mentes e nos corações dos que creem, e continuamente semeia neles a lógica da comunhão, do serviço, da partilha, em suma, a lógica do Evangelho. Os primeiros cristãos, em Jerusalém, foram um sinal claro desse novo estilo de vida, pois viviam em fraternidade e colocavam seus bens em comum, a fim de que ninguém vivesse na indigência (cf. At 2, 42-47). De onde derivava tudo isso? Da Eucaristia, isto é, de Cristo ressuscitado, realmente presente em meio aos seus discípulos e operante com a força do Espírito Santo. E também nas gerações seguintes, através dos séculos, a Igreja, apesar dos limites e dos erros humanos, continuou sendo no mundo uma força de comunhão. Pensemos especialmente nos períodos mais difíceis, de provação: o que significou, por exemplo, para os países subjugados por regimes totalitários, a possibilidade de se reencontrar na missa dominical! Como diziam os antigos mártires de Abitene, Sine Dominico non possumus – sem o Dominicum, isto é, sem a Eucaristia dominical, não podemos viver. Mas o vazio produzido pela falsa liberdade pode ser do mesmo modo perigoso; e nesse caso, a comunhão com o Corpo de Cristo é o medicamento da inteligência e da vontade, para reencontrar o gosto pela verdade e pelo bem comum.”

– Estas foram as palavras de Bento XVI no Angelus deste domingo. Precisamos cada dia mais desse fármaco, capaz de, em meio ao crescente relativismo, nos inspirar e nos conduzir à Verdade.

junho 21, 2011

Romantismo autodestrutivo

A afirmação de que José de Alencar é o primeiro grande prosador da literatura brasileira tornou-se consenso. E há, inclusive, quem ache o seu Iracema verdadeira obra-prima – o que, em minha opinião, não passa de um despautério. O que não se fala – e raramente se ensina – é que a obra alencariana, quando comparada aos grandes nomes do romantismo alemão ou inglês, transforma-se num fato estético insignificante, cujo único valor se resume ao que afirmamos no início deste parágrafo: fenômeno de importância restrita ao Brasil – e nunca, jamais universal.

No entanto, a maioria dos professores – principalmente no ensino médio – acostumou-se a mostrar o romantismo brasileiro como uma consequência natural do romantismo europeu. Lê-se o capítulo dedicado ao tema, no livro didático, e fica-se com a impressão de que as características das obras fundadoras desse movimento passaram de maneira automática para os autores brasileiros, havendo, entre os dois grupos, uma correspondência absoluta. Nada pode ser mais mentiroso, contudo.

Jamais encontraremos nos românticos nacionais, apenas para citar um exemplo, a genialidade de Friedrich Schlegel, profundo estudioso de Shakespeare e Goethe, crítico literário excepcional. Schlegel recuperou os valores clássicos da poesia grega, defendeu a necessidade de uma literatura universal e, convertido ao catolicismo e apontado, em política, como reacionário, deixou um romance incompleto – Lucinde –, obra contraditória, odiada por Schiller, na qual se faz a apologia do amor livre. Não satisfeito, Schlegel libertou a ironia do seu caráter de mero chiste ou travessura linguística, elevando-a à condição de comportamento filosófico diante da arte e da vida, pois, em sua opinião, só a ironia pode redimir um mundo baseado em falsas verdades.

Os nacionalistas certamente retrucarão que, se seguirmos esse raciocínio, teremos de jogar no lixo grande parte da literatura brasileira, não apenas a romântica, e que, agindo dessa forma, desvalorizaremos nosso patrimônio cultural. Tais afirmações, no entanto, são sofismas. Trata-se, isso sim, de colocarmos os românticos brasileiros onde realmente devem estar – e não utilizarmos, em nome do ufanismo, critérios condescendentes de julgamento; prática, aliás, que se torna cada vez mais comum entre nós.

Nossos românticos têm papel fundamental na formação da literatura e da língua portuguesa característica do Brasil – e Alencar foi um dos que mais defendeu a importância de uma expressão genuinamente brasileira, ainda que tal matéria seja, em minha opinião, secundária (*) –, mas, em termos estéticos, a ficção romântica permaneceu presa ao pitoresco, à idealização exagerada do elemento indígena. Ou seja, trata-se de um romantismo que, ao contrário do que fizeram alguns dos principais escritores alemães e ingleses, não cultua a autoconsciência, não se sente superior pela sua própria excepcionalidade. Entre nós, a supervalorização da sensibilidade ocorreu quase sempre de maneira negativa, assumindo a forma de um recalque ou substituída por qualquer solução apaziguadora, conciliatória (como ocorre no segundo mais importante romance de Alencar, Senhora); e se surgem pulsões libertadoras, estas acabam por se congelar na forma de patologias melancólicas, encerradas entre quatro paredes. Quanto à linguagem, o romantismo brasileiro é, bem sabemos, o império do adjetivo, da hipérbole, do arroubo grandiloquente.

A lama no tanque

No caso específico de Lucíola, publicado em 1862 – em minha opinião, o melhor romance de Alencar, ainda que seja uma releitura de A Dama das Camélias –, o que primeiro chama nossa atenção é o problema do narrador. O romance inicia com uma “Nota ao autor”, escrita pela destinatária das cartas que, enviadas pelo narrador, foram reunidas e, sem que este soubesse, transformadas em livro. O que era, portanto, para ser um relato particular, ganha o caráter de narrativa pública. O motivo desse contorcionismo parece-me evidente: se Lúcia, a protagonista, é a prostituta que se transforma em “musa cristã” – e que “trilha o pó com os olhos no céu” –, nada melhor que outra mulher para referendar, perante os leitores, a história dessa purificação. De maneira medrosa, mas hábil, o narrador/autor, tenta se abster de qualquer responsabilidade.

Essa forma de fugir às consequências de um relato que, apesar de todas as concessões feitas à religião e à moral, causou escândalo ao ser publicado, confirma-se logo no início do primeiro capítulo, quando o narrador, justificando o envio das cartas, nas quais pretende traçar o perfil de Lúcia, afirma sua “excessiva indulgência pelas criaturas infelizes”. A pretensão do narrador não é, portanto, contar a história de uma paixão mútua, abrasadora, mas, principalmente, descrever o objeto de seu relato como um espécime curioso.   

Estamos diante de um narrador, Paulo, que se mostra imaturo para a vida na Corte, ou, como ele mesmo se define, um “profano na difícil ciência das banalidades sociais”. Impressionado pela beleza de Lúcia – que ele encontra de maneira fortuita, mal havia chegado ao Rio de Janeiro –, o narrador descobre que por trás da “serenidade do olhar” se escondia uma prostituta. Passado o choque inevitável, inicia-se um jogo de insinuações durante o qual Paulo afirma não amar tal mulher, mas ter “apenas sede de prazer”. O problema é que o jovem não interpreta os sinais que Lúcia lhe dá; provinciano, parvo em alguns momentos, ele se engana em relação às reações da meretriz. Na confusão de sentimentos que ocorre – da qual temos apenas o ponto de vista de Paulo, que confessa não possuir perspicácia suficiente para entender os fatos –, Lúcia acaba por conduzir o narrador a sensações de prazer inusitadas.

Mas Paulo deseja algo além do sexo? Quando vê, em certos momentos, a mulher abandonar seu “modo singelo e modesto” para expressar-se por meio da “frase ríspida, incisiva e levemente embebida em ironia”, ele afirma sentir desvanecer dentro de si uma “doce ilusão, que, por mais transparente que seja, nubla o espírito crédulo, quando procura no fundo do prazer um átomo sequer de amor”. Essas divagações, contudo, não passam de retórica. O leitor não deve se enganar: Lúcia será, do começo ao fim do romance, o obscuro objeto do desejo de Paulo – apenas do desejo. E aqui faço uma referência precisa: ela será a fêmea inalcançável a que Paulo se submeterá, semelhante à personagem da novela de Pierre Louÿs que Buñuel imortalizou em seu último filme.

A questão central do romance, portanto, não é só, como se costuma repetir, a da mulher que, por ser prostituta, considera-se moralmente corrompida para o amor e tenta, desesperadamente, purificar-se, até alcançar a autodestruição. Há essa passionalidade, sem dúvida – e nesse sentido, o livro caminha na contramão do romantismo, pois a heroína não se liberta das amarras sociais, escravizando-se a elas, certa de que o fato de ser uma cortesã a impede de viver seu grande amor. Mas, de maneira paralela a esse drama, há o outro eixo de Lucíola, mais instigante, do narrador/personagem que embarca numa aventura duvidosa, abrindo mão dos prazeres sexuais em troca de uma experiência de aflitiva castidade, na qual se torna um fantoche, espectador do conflito que a cortesã vive – e sem jamais expressar seu amor por Lúcia, pois realmente não a ama, somente a endeusa, mantendo com ela uma relação nitidamente edipiana. À desagregação mental de Lúcia, que vemos crescer na exata medida em que a jovem se conscientiza de seu amor por Paulo, corresponde a obediência do rapaz inexperiente, satisfeito em seu papel acessório, admirando o escapismo de sua companheira, incentivador excêntrico do que move Lúcia: negar, a si mesma, a possibilidade de unir prazer e amor.

A jovem prostituta acredita que deve seguir repetindo o que fez por seus familiares: tornar-se o cordeiro imolado, mas agora num ritual em que ela assume, ao mesmo tempo, o papel de vítima e de sacrificante – e, o mais terrível, em nome de um amor que não é recíproco. Seu masoquismo chega às raias da promiscuidade quando ela propõe a Paulo que ame sua irmã caçula, sugerindo que Ana lhe daria “os castos prazeres” que ela não podia dar – “e recebendo-os dela, ainda os receberias de mim”. Delirando em sua histeria, Lúcia conclui: “Que podia eu mais desejar neste mundo? Que vida mais doce do que viver da ventura de ambos? Ana se parece comigo; amarias nela minha imagem purificada, beijarias nela os meus lábios virgens; e minha alma entre a sua boca e a tua gozaria dos beijos de ambos”. Ou, um pouco antes, anunciando a morbidez de seus pensamentos: “Quero uni-la ao santo consórcio de nossas almas. Formaremos uma só família; os filhos que ela te der, serão meus filhos também; as carícias que lhe fizeres, eu as receberei na pessoa dela. Seremos duas para amar-te; uma só para o teu amor”.

O desvio é nítido: o desejo não realizado tornou-se neurose. Mas essa é a única proposta que Paulo recusa. Às outras, obedecerá sempre, resignando-se a um único prazer sexual, o ato de, arrastando-se pela relva, beijar as pontas das botinas de Lúcia, que surgem sob “a orla do vestido” (numa clara alusão ao fetiche que Alencar exploraria em A pata da gazela, de 1870).

Lúcia hipnotiza e submete esse elemento masculino dócil; e à medida que o romance se aproxima do fim, enquanto ela abandona a antiga personalidade, chegando a adotar um novo nome, não por acaso “Maria”, a ex-cortesã passa a controlar, ordenar, exigir – e será obedecida nas menores vontades. Paulo descreve o “gesto imperativo” que o faz obedecer ou que o “obriga” a, por exemplo, ajudá-la a pentear a irmã e, principalmente, beijar as pontas dos anéis de “cabelos finos e sutis”. Diante do que ele conclui: “O que ela exigiria de mim que eu não fizesse para vê-la feliz do seu desejo satisfeito?”. E mesmo antes, quando a transformação de Lúcia, mal iniciada, já nega a Paulo os arroubos da libido, ele confessa: “Contudo, ou por um doce hábito, ou por uma misteriosa influência do passado, preferia a frieza dessa mulher aos transportes de qualquer beleza; guardava-lhe sem sacrifício, como sem intenção, uma fidelidade exemplar”.

Tal é o amor antirromântico de Alencar, processo de sublimação que condena Lúcia a se autodestruir e Paulo a um prazer frio – paixões pervertidas por preconceitos, por psicopatologias e pela culpa. E por um cristianismo deformado, que Alencar transforma em mero misticismo, religiosidade que acorrenta a protagonista ao pecado – situação, por sinal, descrita muito bem, ao fazer Lúcia comentar, quando vê que Paulo joga pedrinhas em um pequeno tanque natural, de águas a princípio cristalinas: “– A lama deste tanque é meu corpo: enquanto a deixam no fundo e em repouso, a água está pura e límpida”.

Ao introjetarem, de maneira errônea, os valores de sua época, os personagens de Alencar se cobrem de uma estranha vestidura, de um romantismo que ou nasce distorcido pela moral, pelas regras sociais e por um falso cristianismo, ou exige do leitor que volte a ser criança e acredite na ilusão das novelas de cavalaria – como propôs, aliás, seriamente, Augusto Meyer num ensaio publicado em 1964 (no volume A chave e a máscara), chamando de “degenerados leitores” aqueles que não conseguiam olhar sem desagrado o “clima de intemperança fantasista” de O guarani.

Bons e maus resultados

No que se refere à linguagem, também não podemos pedir muito de Alencar. Se pensarmos de quais matrizes saíram seus romances, nossa primeira reação será a da indulgência: os folhetins abundavam na Corte, traduzidos ou escritos por autores nacionais, e ele se acostumou a produzir essa forma literária bem pouco exigente; além disso, uma das suas principais inspirações, François-Auguste-René, visconde de Chateaubriand, é, segundo Otto Maria Carpeaux, pleno de “eloquência ornada”.

A desenvoltura do pensamento de Lúcia, sua agilidade mental, domina a primeira parte do romance graças aos diálogos de frases breves e incisivas. E mesmo nos capítulos finais, quando nossa anti-heroína já se encontra destituída de vigor, da febre que manifestava ao se entregar a Paulo, ela ainda expressará uma lógica que, passível de ser contestada, é impecável.

O árduo trabalho de Alencar com a língua – Araripe Júnior conta que, quando jovem estudante em São Paulo, o escritor perdia horas “copiando trechos de João de Barros e Damião de Góes, decompondo os períodos monumentais destes escritores, diluindo frases, compondo de novo, buscando com parcimônia beneditina descobrir o segredo da originalidade dos seus dizeres tão pitorescos” – produziu frutos. O movimento insinuante da cortesã ganha vida não só graças à construção da frase, mas ao rumorejar que nasce da aliteração: “Ao sair, dobrou o seu talhe flexível inclinando-se vivamente para o meu lado, enquanto a mão ligeira roçava os amplos folhos da seda que rugia arrastando”. E quando o escritor faz uso equilibrado dos adjetivos, seu texto se liberta do romantismo sentimentaloide, mesmo se ele nos apresenta Lúcia na forma de um animalzinho casto: “Passei-lhe o braço pela cintura e apertei-a ao peito; eu estava sentado, ela em pé; meus lábios encontraram naturalmente o seu colo e se embeberam sequiosos na covinha que formavam nascendo os dois seios modestamente ocultos pela cambraia. Com um primeiro movimento, Lúcia cobriu-se de ardente rubor; e deixou-se ir sem a menor resistência, com um modo de tímida resignação”. Mas pode chegar a uma linguagem quase realista, como no trecho a seguir, em que vemos a personalidade da cortesã, agradavelmente pendular desde o início, explodir num paroxismo de concupiscência: “Enquanto a admirava, a sua mão ágil e sôfrega desfazia ou antes despedaçava os frágeis laços que prendiam-lhe as vestes. À mais leve resistência dobrava-se sobre si mesmo como uma cobra, e os dentes de pérola talhavam mais rápidos do que a tesoura o cadarço de seda que lhe opunha obstáculos. [...] Há mulheres gastas, máquinas de prazer que vendem, autômatos só movidos por molas de ouro. Mas Lúcia sentia; sentia sim com tal acrimônia e desespero, que o prazer a estorcia em cãibras pungentes. Seu olhar queimava; e às vezes parecia que ela ia estrangular-me nos seus braços, ou asfixiar-me com seus beijos”. Ou, ainda, esta bela descrição, em que Paulo, enciumado, quase desfaz a imagem que temos dele: “Estava excessivamente pálida, e a cor escarlate do vestido ainda lhe aumentava o desmaio; os olhos luziam com ardor febril que incomodava, e os lábios se contraíam num movimento que não era riso nem ânsia, mas uma e outra coisa. Entretanto nunca essa mulher me pareceu tão bela; e a ideia de que ela se enfeitava para outro homem irritava-me a ponto que estive de precipitar-me e espedaçar, arrancando-lhe do corpo, as galas que a cobriam”.

Em outros momentos, contudo, o escritor não consegue se livrar do ranço folhetinesco, estragando sua narrativa com adereços melosos: “O meu pensamento impregnado de desejos lascivos se depurava de repente, como o ar se depura com as brisas do mar que lavam as exalações da terra” – ou “duas lágrimas em fio, duas lágrimas longas e sentidas, como dizem que chora a corça expirando, pareciam cristalizadas sobre as faces, de tão lentas que rolavam” [grifos nossos]. Esses artifícios, essas concessões ao público da época, estragam às vezes longos trechos.

Êxtase final

Que Alencar tenha condenado seu narrador à subserviência e à timidez de caráter, e Lúcia à exacerbação da culpa, são escolhas que não podem ser perdoadas. Mas as palavras finais da cortesã negam a purificação doentia a que se entregou. Seu êxtase final é semelhante a um clímax em que a pobre vítima de si mesma implora para ser tomada não pela divindade, mas por seu submisso: “– Recebe-me... Paulo!”. Assim permanecem, ao fecharmos o livro, as duas Lúcias: a meretriz e o anjo que, coberto de preto, caminha rumo à igreja, pedindo clemência à sociedade e a Deus – mas que, por não aceitar o perdão, jamais provará o amor.

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(*) A presença de um vocabulário de forte influência portuguesa em Memórias de um sargento milícias – publicado, na forma de folhetim, três anos antes de surgir O guarani – em nada diminui a vivacidade do romance de Manuel Antônio de Almeida, demonstrando o quanto não era essencial a campanha de Alencar para dar vida a uma linguagem verdadeiramente brasileira.

junho 18, 2011

Conversão


“A conversão é como sair, através de uma chaminé, de um mundo de espelhos onde tudo é uma caricatura absurda, para entrar no verdadeiro mundo criado por Deus; é quando, então, começa o delicioso processo de explorá-lo sem limites” – Evelyn Waugh

junho 14, 2011

Curso sobre o “De Trinitate”, de Santo Agostinho

Já estão abertas as inscrições para um novo curso de Patrística no Mosteiro de São Bento, em São Paulo. As aulas serão ministradas pelo professor Joel Gracioso, doutor em Filosofia pela USP com a tese “Interioridade e filosofia do espírito nas Confissões de Santo Agostinho”:

junho 12, 2011

junho 09, 2011

Virtudes parciais – vícios completos

Em seu livro A fé dos demônios, não traduzido no Brasil, o filósofo Fabrice Hadjadj analisa um trecho de Ortodoxia, de G. K. Chesterton. Com rara agudeza, Hadjadj complementa Chesterton, formando, com o inglês, o duo indivisível e virtuoso do qual ele próprio fala:

Repete-se dele [de Chesterton] em nosso meio, frequentemente, esta frase: “As ideias modernas são ideias cristãs que enlouqueceram”, frase que, retirada de seu contexto, deformada em seu conteúdo, chega a ser uma ladainha que, ela própria, enlouquece. [...] Esta é a passagem da Ortodoxia de onde a frase foi retirada:  

“O mundo moderno não é mau. Sob alguns aspectos, o mundo moderno é bom demais. Está cheio de virtudes insensatas e desperdiçadas. Quando um sistema religioso é estilhaçado (como foi estilhaçado o cristianismo na Reforma), não são apenas os vícios que são liberados. Os vícios são, de fato, liberados, e eles circulam e causam dano. Mas as virtudes também são liberadas; e as virtudes circulam muito mais loucamente, e elas causam um dano mais terrível. O mundo moderno está cheio de velhas virtudes cristãs enlouquecidas. As virtudes enlouqueceram porque foram isoladas uma da outra e estão circulando sozinhas.

Assim alguns cientistas se preocupam com a verdade, e a verdade deles é impiedosa. Assim alguns humanitários se preocupam apenas com a piedade, e a piedade deles (lamento dizê-lo) é muitas vezes falsa. [...]”

Essas linhas bebem no profundo dos últimos versículos do Salmo 61:

Deus falou uma vez,
E duas vezes eu ouvi:
Que a Deus pertence a força,
E a ti, Senhor, pertence o amor;
Pois tu devolves a cada um
Conforme as suas obras
 
Sempre ouvimos a única palavra divina [...] através de um par de enunciados que devem se manter unidos. Neste caso, a misericórdia (a ti, Senhor, pertence o amor) unida à justiça (tu devolves a cada um conforme as suas obras). Mas como isso não funciona, o mundo, segundo Chesterton, introduz o divórcio nesse difícil matrimônio e resulta que cada virtude se torna tanto mais segura de si mesma quanto mais adúltera. A dupla se transforma em dualidade. A complementaridade se quebra em contrariedade. [...] O gênio diabólico não consiste tanto em rechaçar o bem, mas em monopolizá-lo para proveito próprio [...]. Dessa forma, extravia inclusive o nosso desejo de fazer o bem, isolando as bondades que a verdade une: a justiça sem misericórdia, que se torna crueldade, frente à misericórdia sem justiça, que se torna laxismo; a humildade sem magnanimidade, que se torna modéstia indolente, frente à magnanimidade sem humildade, que se torna ativismo vaidoso... e, finalmente, a verdade sem amor, que é a fé dos demônios, frente ao amor sem verdade, que é a filantropia do diabo. Corremos atrás dessas virtudes parciais, que são vícios completos, e o mundo pode perecer pela nossa diligência.

junho 08, 2011

Hesitações e corruptelas

No Rascunho deste mês, escrevo sobre Dona Guidinha do Poço, romance de Manuel de Oliveira Paiva redescoberto, em 1945, por Lúcia Miguel-Pereira.

Vejam alguns de meus comentários:

Em vários trechos, uma patologia peculiar acomete o leitor, condenando-o a ver o colorido do texto turvado de manchas semânticas ininteligíveis. Temo que jamais saberei por qual motivo o “ervanço […] incensa os sertões ao pôr do sol”, ainda que a imagem, de maneira instintiva, agrade-me; ou o que significa dizer que um burro “é fácio pro penso”; ou como o chão fica quando “acamado de serragens de pau-cetim”; e está além da minha capacidade desvendar tudo o que este personagem diz:

Entonce, tavam lá arranchado uns comboieros que tinham arrumado o eito, assim pua banda, ia porção de surrão de mio, que fazia assim mod’um escuro. Aí diz que virum a muié do Venanço non sei cum quem, cuas partes de tomá bebida, enquanto o povo no terreno apreciava um cantadô de fama, qui era um dos comboiero donos do mio. É verdade que eu vi ele vendendo, apois tinha muita confiança co Jom Bodoque e a famia…
 
Trata-se do preço que alguns regionalismos pagam — certamente não tão alto quanto o do vanguardismo que barbariza a língua ou pretende recriar, eternamente, o Finnegans Wake.

junho 03, 2011

Como se rebelar contra a tirania de Eros?

Não é nenhuma novidade que Eros foi erguido à condição de grande deus do Ocidente. Mas é inacreditável como a maioria das pessoas – conduzida por uma moral acomodatícia e pelo relativismo cego – aceita esse fato demonstrando passividade diante do mal.

A proposta de uma Lei da Homofobia, o famigerado PLC 122 – na verdade, um projeto de institucionalização da ideologia do homossexualismo –, a informação de que o kit anti-homofobia, produzido pelo Ministério da Educação, seria distribuído a crianças de 11 anos – e não a jovens do Ensino Médio – e a notícia de que o polêmico sutiã com enchimento, criado pela Abercrombie & Fitch’s para aumentar os seios das meninas a partir de 8 anos, já estaria à venda no Brasil são alguns dos elementos – apenas os mais recentes – que deveriam nos alertar para um quadro preocupante: o processo de sexualização da sociedade, em vigor na maior parte do Hemisfério Norte, já se encontra instalado no Brasil, inclusive na sua forma mais diabólica: a da sexualização da infância.

O cinismo dos defensores dessas inovações – usemos, aqui, um eufemismo – parece triunfar em toda a mídia. Qualquer voz dissonante é enfrentada com discursos negacionistas, nos quais a ponderação inexiste, mostrando que há algo de perverso nessa conjuração tácita entre Estado, mídia, mercado e ideólogos de esquerda.

De fato, a esquerda, falida em suas propostas de revolução econômica e política, refugiou-se nas utopias do pansexualismo e do ecologismo. Agora aliada ao mercado, ela abandonou os ideais da planificação econômica e da igualdade social, preferindo usufruir, em petit comité, das benesses do capitalismo – seus líderes, no Brasil e no mundo, enriquecem com rapidez estonteante –, e elegeu a desordem moral como o meio que lhe permitirá controlar as consciências. Incapaz de vencer a sede de lucro pessoal e corporativo, a esquerda almeja aniquilar os valores cristãos – projeto, convenhamos, não de todo desagradável a um mercado destituído de ética e sedento de consumidores.

A nova idolatria

Quem assistiu aos vídeos que compõem o kit anti-homofobia do Ministério da Educação sabe do que falo: não há ali principalmente a lição do amor ao próximo, da aceitação do semelhante – sem que isso signifique a aprovação de suas opções morais –, mas, sim, o enaltecimento do “eu” e a exaltação da sexualidade. A mensagem sub-reptícia dos vídeos é a do “eu triunfante”, da construção de um falso heroísmo e de falsas virtudes, nascidos exclusivamente da opção sexual. Esse é o horizonte oferecido pelo Ministério da Educação às crianças e aos adolescentes: entreguem-se aos seus instintos, façam apenas o que vocês têm vontade – e isso os transformará em seres felizes e realizados. O homem, para nossos educadores de esquerda, é definido e identificado apenas por sua sexualidade; e quanto mais plena a satisfação sexual, maior será o seu valor, diante de si mesmo e dos outros.

A tirania de Eros não tem limites – e seu objetivo é o defendido por nossos educadores pós-modernos: o ser humano se resume ao baixo-ventre.

Além da ideologia do homossexualismo, os vídeos instituem uma escola da permissividade. Eles restringem a experiência do viver ao sensualismo vulgar e confinam a longa e trabalhosa conquista da maturidade – período fundamental do desenvolvimento humano – ao imediatismo hedonista.

Ora, quantas vezes o mundo pagou alto preço por seguir ideologias salvadoras? Já o fez em nome do pão e da terra para todos. Já o fez pela quimera da igualdade social absoluta. Já o fez em nome da purificação da raça e da construção do super-homem. E agora repetimos o mesmo erro, desta vez para agradar Eros, que submete o homem não só ao eterno chacoalhar do próprio ventre, mas também ao estupor fabricado pela indústria do entretenimento e à subserviência a padrões morais que não são escolhidos livre e conscientemente.

É a institucionalização do que Jean Guiton chamou de “corveia de prazer”. Sim, há muito a felicidade por meio da chamada “realização sexual” transformou-se num imperativo, numa ordem – ou melhor, numa forma de escravidão. E agora, no Brasil, a esquerda deseja, se aprovado o PLC 122, que toda a sociedade se submeta a um novo dogmatismo, uma ideologia tribalista tão furiosa, se contrariada, quanto os sodomitas que cercaram a casa de Ló (Gênesis 19).  

Se essa é a nova idolatria a que deveremos nos submeter e se a sexualização da sociedade é um processo irrefreável, pergunto-me quando construiremos o novo Muro de Berlim, para separar os felizes hedonistas da parcela necessariamente triste e frustrada da humanidade... Quando começarão a erguer os muros do primeiro gueto para encarcerar os discordantes? Na qualidade de católico, viverei nele com orgulho.

Os limites do abismo

Esclareçamos, contudo, que não se trata, aqui, de assumir o papel do moralizador que denuncia pecados e se escandaliza com a decadência dos costumes. Não se trata de estabelecer uma disputa entre permissivos e repressores morais. Antes, trata-se de afirmar que o homem está muito acima do que os nossos ideólogos e educadores de esquerda defendem.

A cada cena dos filmes produzidos para o kit anti-homofobia eu me recordava das palavras da última conferência do então cardeal Joseph Ratzinger, hoje Bento XVI, pronunciada, em 18 de maio de 2005, no Mosteiro de Santa Escolástica, em Subiaco: “[...] Já não brilha sobre o homem o esplendor de ser a imagem de Deus, que é o que lhe confere sua dignidade e inviolabilidade, mas somente o poder das capacidades humanas”. E o que resta a esse homem, cuja “força moral não cresceu com o desenvolvimento da ciência”, mas na verdade “diminuiu, porque a mentalidade técnica” pretende encarcerar “a moral no âmbito subjetivo”? Essa racionalidade que excluiu “Deus da consciência pública”, tornando-o objeto da mera subjetividade, só pode construir a “desordem da consciência moral” – o mundo no qual “nada é bom ou mau em si”.

Consentir com tal processo de secularização significa transformar nosso melhor tesouro, os valores da cristandade, base da sociedade ocidental, numa subcultura condenada ao silêncio sempre que os supostos iluministas modernos assim desejarem. Numa terrível contradição, essa “confusa ideologia da liberdade conduz a um dogmatismo que se está revelando cada vez mais hostil para a liberdade”, dizia Ratzinger – e profetizava: “O conceito de discriminação se amplia cada vez mais, de maneira que a proibição de discriminação pode se transformar, progressivamente, em uma limitação da liberdade de opinião e da liberdade religiosa. Em breve, não se poderá afirmar que a homossexualidade, como ensina a Igreja Católica, constitui uma desordem objetiva na estruturação da existência humana”.

A ideia de que cada nova elucubração do homem representa um conhecimento definitivo e inquestionável – ou seja, de que tudo é relativo – pode, inclusive, nos conduzir à definitiva sexualização da vida social e ao desaparecimento da dignidade humana. Já transformamos a busca da virtude num exercício acadêmico, num saber desligado da vida; e diminuímos a verdade até transformá-la num axioma que muda conforme a direção dos ventos, o humor dos demagogos ou a sandice do intelectual escolhido pela mídia. Quanto mais afundaremos em nossa egolatria? Em Subiaco, Ratzinger afirmava: “A tentativa, levada até o extremo, de plasmar as coisas humanas menosprezando Deus completamente nos leva cada vez mais aos limites do abismo, ao encerramento total do homem”.

Uma nova corporalidade

Trata-se, então, de dar as costas à sexualidade e encarar o homem como um ser angelical, incorpóreo? Absolutamente não. Para nós, católicos, como lembrou Bento XVI em recente discurso, “longe de se opor ao espírito, o corpo é o lugar onde o espírito pode habitar” – e “nossos corpos não são matéria inerte e pesada mas, se soubermos ouvir, falam a linguagem do amor verdadeiro”. Nos corpos de Adão e Eva, “antes da Queda, [...] existe uma linguagem que não criaram, um eros radicado na sua natureza, que os convida a receberem-se mutuamente do Criador, para assim se poderem oferecer”. E o papa conclui: “[...] No amor, o homem é ‘recriado’, Incipit vita nova  [Começa uma nova vida], dizia Dante (Vita Nuova I, 1), a vida da nova unidade dos dois numa só carne. A verdadeira fascinação da sexualidade nasce da grandeza deste horizonte que se abre: a beleza integral, o universo da outra pessoa e do ‘nós’ que nasce na união, a promessa de comunhão que nela se oculta, a nova fecundidade, o caminho que o amor abre a Deus, fonte do amor”.

Alertando para uma sexualidade “que hoje permanece encerrada no círculo restrito do próprio corpo e na emotividade”, o papa salienta que “a força do pecado não consegue cancelar a linguagem originária do corpo, a bênção de vida que Deus continua a oferecer quando o homem e a mulher se unem numa única carne”.

Ou seja, a sinalização é clara: o núcleo de resistência à barbárie da sexualização da sociedade encontra-se na família, “o lugar”, diz Bento XVI, “onde a teologia do corpo e a teologia do amor se entrelaçam. É aqui que se aprende a bondade do corpo, o seu testemunho de uma origem boa, na experiência de amor que recebemos dos pais. É aqui que se vive o dom pessoal numa só carne, na caridade conjugal que une os esposos. É aqui que se experimenta a fecundidade do amor, e que a vida se entrelaça com a de outras gerações”.

Há, portanto, uma sexualidade sã e santa. “Uma santidade”, lembra Xavier Léon-Dufour, “que transforma a corporalidade do homem e a torna continuamente presente a um mundo divino que a cerca de todos os lados”.

Contrapor-se ao que as escolas ensinam

Mas somos chamados também a nos apartar da luxúria; e as práticas homossexuais – digam o que disserem os católicos que, a seu bel-prazer, decidiram discordar do Magistério da Igreja – estão aí incluídas. O grito dos dissidentes e dos hereges ou o desolador silêncio dos tíbios não modificam o ensinamento da Santa Igreja: “Optar por uma atividade sexual com uma pessoa do mesmo sexo equivale a anular o rico simbolismo e o significado, para não falar dos fins, do desígnio do Criador a respeito da realidade sexual. A atividade homossexual não exprime uma união complementar, capaz de transmitir a vida e, portanto, contradiz a vocação a uma existência vivida naquela forma de autodoação que, segundo o Evangelho, é a essência mesma da vida cristã”.

Devemos considerar, portanto, no mínimo insultuoso o Estado que, afastando-se de suas funções, decide ensinar moral a crianças e jovens – e o faz da pior maneira, doutrinando-os com visões distorcidas da sexualidade, levando-os a acreditar que a autocomplacência e a idealização da própria sensualidade são os únicos e os melhores caminhos para o seu desenvolvimento.

Para a sociedade na qual o culto ao sexo exige de seus prosélitos que anunciem aos quatro ventos suas preferências sexuais – evidenciando uma inesgotável necessidade de autoafirmação –, reduz a felicidade e a realização humanas à escolha por esta ou aquela opção sexual, enaltece o sexo enquanto jogo promíscuo, torna a concupiscência sua regra de ouro e, apesar de todos esses esforços insanos, só consegue renovar as frustrações e as formas de carência afetiva, Bento XVI recorda que, quando a sexualidade destrói “sua conexão com o Criador, o corpo revolta-se contra o homem, perde a sua capacidade de fazer transparecer a comunhão e torna-se terreno de apropriação do outro”.

As famílias têm, assim, um árduo, difícil e honroso trabalho: contrapor-se ao que as escolas transmitem. E não só. É necessário renovar o sentido da sexualidade à luz dos ensinamentos cristãos: “Não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que está em vós e que recebestes de Deus?” (1 Co 6, 19). Para nós, a comunhão com o outro não está necessariamente presa à relação sexual, mas a supera; e pode independer dela. Não somos escravos da nossa libido ou das nossas pulsões.