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dezembro 10, 2009

Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa

Quando o fim do ano se aproxima, a nostalgia dos livros que não li vem me apoquentar. Não me interessam os volumes que, felizardos, estão cheios das observações que escrevo a lápis enquanto leio. O que importa, o que realmente importa, são as pilhas aguardando sobre o criado-mudo, na escrivaninha... a fila interminável que me remói, enchendo-me de culpa, acusando-me de não ter cuidado do que era essencial.

Mas li tanto... Por que não me basta? Por que não me satisfaço com a velha desculpa, de que haverá tempo para todos os livros, incluindo os que ainda nem imagino? Não sei... Sei apenas que me entristeço pelo tempo perdido em inúteis afazeres, desperdiçado com livros ruins, que só me aborreceram, e com a dura necessidade de trabalhar para sobreviver.

Estão lá, no criado-mudo, As aventuras de Augie March, do Bellow, e Meridiano de sangue, do Cormac MacCarthy – exatamente os dois que mais desejo ler. Não consegui chegar perto, nem mesmo passar os olhos no índice ou na bibliografia, do estudo de Sylvie Courtine-Dénamy sobre Hanna Arendt, e o mesmo ocorreu com a biografia de Lampedusa, um dos autores que mais amo, escrita por David Gilmour. Há dois anos Poetas românticos, críticos e outros loucos segue invicto sobre minha mesa de trabalho; livros chegam e partem, mas o volume de Charles Rosen, espanado semanalmente, aguarda um gesto de boa vontade. E como posso me desculpar com George Steiner e Câmara Cascudo, cujos Lições dos mestres e Canto de muro não consigo terminar há meses, ainda que me agradem?

Talvez eu devesse ser mais sistemático ou, quem sabe, mais compulsivo. Não sei. Mas me incomodam esses volumes arrumados com esmero pela faxineira, como se ela soubesse da minha falta. E que desconforto sinto ao olhar para eles, como se tivesse cabulado a aula ou exagerado nos doces, ou, pior, traído um grande amor – uma daquelas traições sem volta, irremediáveis, que até mesmo o padre, na penumbra do confessionário, hesita perdoar...

agosto 23, 2009

O som aspirado do Aleph


Mais que transgressão sacrílega, o Golem – esse mito do judaísmo que se desenvolveu na Europa Oriental e Central – possui um forte apelo à resistência judaica diante de injustiças e preconceitos. A variante dessa lenda que mais aprecio é a do Maharal de Praga – que, à época dos pogroms, cria o Golem para defender os judeus das perseguições e acusações sem fundamento. A lenda foi recontada por Elie Wiesel – e há uma bela edição de 1986 pela Editora Imago, com ilustrações de Mark Podwal. A criatura, nessa história, não é somente um autômato, mas um ser de relativa complexidade, capaz de julgar e discernir, sempre a favor do bem. Está distante, dessa forma, de outra variante da lenda, que não me agrada: a do Golem como mero experimento de homens megalomaníacos, que pretendem ser Deus.

Mas esse mito se diversificou em dezenas de histórias. Os românticos alemães foram pródigos em criá-las, apresentando um Golem que, muitas vezes, não passa de certa versão piorada da espécie humana, licencioso, mesquinho. As variações, inclusive, chegaram aos modernos: em prosa ou poesia, Jorge Luis Borges e Isaac Bashevis Singer, por exemplo, revisitam o tema.

Em 2004, o Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Minas Gerais publicou uma coletânea de artigos: Os fazedores de golems, organizada por Luiz Nazario e Lyslei Nascimento. O livro é a melhor introdução ao tema em língua portuguesa, além de proporcionar um diálogo entre a tradição e as reescrituras modernas da lenda, não apenas em literatura, mas também no cinema, visitando inclusive várias das criaturas artificiais criadas pela imaginação. O ensaio de abertura do livro – “O Golem: do limo à letra”, de Lyslei Nascimento –, síntese histórica perfeita da representação do Golem na arte, está disponível na web, em pdf.

De minha parte, considero uma pena que as narrativas modernas tenham perdido os dois aspectos que mais me fascinam: o da criatura que faz justiça e o essencialmente cabalístico – ou seja, o da palavra, escrita ou falada, que insufla vida no barro inerte. Segundo o mito, o Golem é criado por meio da palavra ’emet (verdade). E como explica a professora Lyslei Nascimento, quando o rabino que o criou decide adormecê-lo,

apaga da palavra ’emet a letra Aleph, na transliteração, o sinal () que indica a aspiração da letra hebraica, representando o vento, o fôlego da vida. Ao se apagar a letra, o som aspirado do Aleph, desaparece o som vocálico do “e” – e a palavra ’emet – “verdade” – torna-se met, “morto”.

Trata-se de um mito, portanto, que homenageia a criação por meio da palavra, do verbo. Poucas lendas se aproximaram tanto da criação através da escrita – e da angústia que lhe é inerente. Nem sempre conseguimos dar vida aos nossos textos – na maioria das vezes, chegando ao final do trabalho, depois de horas ou dias de dedicação às palavras, temos sob o olhar uma peça defeituosa, um Golem claudicante, amorfo. Talvez lutar com as palavras nada mais seja do que essa tentativa desesperada e vã de recuperar, ao menos uma só vez, o sopro do Verbo divino, o som aspirado do Aleph. (O que, aliás, me recorda Hanna Arendt, para quem “nada do que vemos, ouvimos ou tocamos pode ser expresso em palavras que se equiparem ao que é dado aos sentidos”. Ou, dito de outra forma, tudo que expressamos por meio das palavras assume a condição de Golem – um ser imperfeito, capaz de cumprir determinadas missões, mas que jamais se igualará à realidade primeira, inaugural.)