fevereiro 04, 2015

A partir de hoje, escrevo em outro endereço

Caros amigos e leitores:

A partir de hoje, vocês me encontram em novo endereço:

http://rodrigogurgel.com.br/

Atualizem seus bookmarks.



fevereiro 02, 2015

Fluxo de consciência e discurso caótico

Muitos jovens escritores se esforçam para levar o chamado “fluxo de consciência” — um aprofundamento da técnica do “monólogo interior” — a níveis talvez nunca sonhados por James Joyce.

O preço a pagar por essa radicalização é mais do que a ruptura com a sintaxe, com a pontuação, ou o exagero no uso da “escrita automática”, da livre associação de palavras.

Ao abandonar qualquer possibilidade de discurso lógico — o que James Joyce não fez em Ulysses —, esses autores rompem todos os compromissos com o ato da leitura, com a compreensão de suas narrativas. Ou seja, desprezam o leitor.

Alguns mantêm relativa coerência no discurso de seus narradores, mas apelam a outro radicalismo: como pretendem recriar a voz do inconsciente, pois acreditam que só dessa maneira revelarão o que se passa no interior do homem, transformam o texto num despejo das mais perversas patologias.

O resultado, ainda que não seja incompreensível, é um texto quase sempre monocromático e tedioso, em que o narrador apenas consegue repisar sua própria morbidez.

Ora, o “fluxo de consciência” não é, como alguns dizem,  a única linguagem sincera, a única linguagem verdadeira. E não é apenas por um motivo: ele exige do autor esforço estilístico como qualquer foco narrativo. Dizendo de outra maneira, seja qual for o narrador escolhido, o autor terá de mentir bem.

Essa pretensão de representar o inconsciente com absoluta fidedignidade nada mais é do que a tentativa de recriar o que o autor acredita ser a voz do inconsciente, da forma como ele acredita ouvi-la — o que, convenhamos, todos os escritores fazem com seus personagens e narradores.

Com uma diferença: é impossível captar o fluir da consciência — ou o pensamento em estado puro, da forma como ele brota a cada sinapse. E, repito, quanto mais nos aproximamos disso, mais o discurso torna-se incompreensível, mais o discurso sepulta o leitor.

Se não há naturalidade em nenhuma narrativa, como muitos também afirmam hoje, então a artificialidade é a senhora absoluta do “fluxo de consciência”.

Mas resta uma pergunta: por que a voz interior, por que o fluxo do pensamento precisa ser necessariamente confuso ou expressar apenas o lado mórbido do narrador?

Respondendo, é curioso como os escritores atuais preferem o monólogo da adúltera Molly Bloom e desprezam a leveza de Clarissa Dalloway. Molly agrada mais ao freudismo que se institucionalizou na ficção. Um freudismo que é não só endeusamento da libido, mas principalmente banalização do homem.

No que se refere à confusão, quantas vezes não conversamos com nós mesmos de forma ordenada, ainda que repisemos certos pensamentos? Representar a voz interior, portanto, não significa, obrigatoriamente, construir um discurso caótico. Como, aliás, Hermann Broch mostrou em A Morte de Virgílio.

janeiro 30, 2015

Problemas da literatura atual

A perplexidade do homem da maioria em relação ao homem criador está perdida
Penso em muitas coisas quando leio esses contos estendidos que hoje recebem o nome de “romance” — impressos com letra grande e num papel de alta gramatura, do contrário caberiam em 10 ou 15 páginas.

Faz alguns meses, fui à livraria, peguei uma pilha de “romancistas” atuais, sentei numa poltrona e comecei a ler.

A tarde passou. Fui interrompido duas ou três vezes. Recusei um café. E quando fechei o último livro percebi que quase todos eram do mesmo autor.

Não eram — mas tratavam dos mesmos problemas, com as mesmas lamúrias, a mesma conversinha fiada em primeira pessoa, como se o autor estivesse abrindo seu coração para o psicanalista ou, pior, para um dono de botequim.


Uma angústia artificial perpassa as histórias.

No fundo, todos reclamam que não são felizes, como se a felicidade fosse o estado natural do ser humano, do qual eles, pobres coitados, estão excluídos por algum erro do Universo.

Não são adultos falando, mas adolescentes de trinta ou quarenta anos que ainda não sabem o que é ansiedade, desespero, sofrimento. Não sabem e não imaginam.

Ou, pior, acham que desespero é ter de decidir entre o jogo de futebol na tevê, uma transa por obrigação e andar de bicicleta nas ciclovias do Haddad.

Tem-se a impressão de que eles decoraram Sartre. Ou Clarice Lispector — mas a voz que narra é a de uma Clarice diluída, desfibrada. Talvez seja o perispírito da Clarice.

Há outras opções de estilo: pode ser um Guimarães Rosa canhestro — ou a corruptela de alguma tradução do Ulysses.

As frases raramente ultrapassam 18 palavras. E são truncadas, como se o escritor sofresse de algum problema respiratório.

A superficialidade desses livrinhos faz-me lembrar do que Thomas Mann falava sobre o “tempo do homem criativo”.

Mann dizia que esse tempo “é de uma estrutura, de uma densidade e de uma produtividade diferentes daquelas frouxamente tecidas e passageiras da maioria”. E que o “homem da maioria”, admirado da “extensão de realizações que se podem acomodar neste espaço de tempo”, pergunta ao homem criativo: “Quando vais fazer tudo isso?”.

Essa perplexidade do homem comum em relação ao homem criador está perdida. Hoje, tudo é frouxo e passageiro. Hoje, o homem da maioria olha o “romance” de 15 páginas e pensa: “Isto até eu faço!”.

E ele tem razão. 

janeiro 28, 2015

5 motivos para usar Scrivener

Já escrevi, em dezembro do ano passado, sobre Scrivener, um programa para escritores. Agora, antes de publicar este post, o texto seencontra entre os mais acessados do blog.

Algumas pessoas também me mandam mensagens, pedindo que eu fale mais a respeito dessa ferramenta.

Resolvi, assim, explicar algumas das razões que tornaram Scrivener essencial no meu dia-a-dia:

1. A lógica de Scrivener é simples: tudo sempre à mão


O volume de informações a que tenho acesso cresce sem parar, numa escala inimaginável há 20 anos. Não se trata de utilizar ou não esses conhecimentos, mas de mantê-los sempre por perto, pois tenho certeza (ou a ilusão) de que, um dia, precisarei deles.

Scrivener resolve esse problema com as possibilidades que oferece para o autor se organizar.

Darei um exemplo prático:

Suponhamos que eu esteja escrevendo um texto sobre o escritor italiano Carlo Emilio Gadda. Tenho duas teses de doutorado sobre ele, no formato Word, que um amigo me enviou. Consegui também, na Web, o PDF de uma dissertação de mestrado. Como o ensaio que estou escrevendo é biográfico, fiz uma pesquisa iconográfica e reuni cerca de 50 fotos de Gadda, dos locais onde viveu e de fatos históricos de que participou, direta ou indiretamente. Além disso, tenho cerca de 30 páginas da Web reunidas sobre o tema — sites que visitei e fui adicionando a um caderno do Evernote.

Claro, não posso esquecer de minhas anotações pessoais: as que fiz lendo alguns de seus livros no Kindle; as que estão, feitas a lápis, nas margens de exemplares da minha biblioteca (e que escaneei); e notas de obras gerais, algumas histórias da literatura italiana.

Tenho também o mapa mental que desenhei para o ensaio, uma espécie de planejamento dos temas que pretendo abarcar.

Muito bem.

Como você faz para reunir tudo isso no Word? Simples: você não faz.

Se você depender do Word para escrever esse ensaio, terá de acumular um volume significativo de papel sobre a escrivaninha. Ou ter uma eficiente secretária, que arquive essas informações de maneira que ela possa localizar, com rapidez, exatamente aquilo de que você necessita, no momento em que necessita.

Com Scrivener, não.

Basta que, no Fichário, na pasta Pesquisa, eu abra uma subpasta denominada “Carlo Emilio Gadda” e coloque ali todo esse material. Posso acrescentar, inclusive, a entrevista que Gadda concedeu a certa rádio de Milão ou uma antiga gravação da tevê italiana que, de forma surpreendente, descobri no YouTube.

Quando começo a escrever meu ensaio, abro dois campos de trabalho no Editor: à minha esquerda, o ensaio; à direita, os arquivos que vou consultando à medida que escrevo.

E… pronto. Tudo está à mão — bastando um movimento rápido do mouse.

2. Scrivener fotografa as versões do meu trabalho


Outra suposição:

Depois de escrever duas laudas, descubro uma nova informação — e percebo que ela, sim, é o grande início do ensaio.

Claro, eu poderia “copiar” o que está escrito e “colar” num outro arquivo. Mas por que teria esse trabalho se, no Inspetor, tenho a opção de fotografar as versões do trabalho — por data, horário e com o nome que eu desejar?

Mas vamos complicar as coisas.

Você fotografou a primeira versão. Depois, começou a escrever o ensaio, agora com o novo início. Mas, quando chegou à terceira página, seu terrível senso crítico acendeu um sinal vermelho na sua cabeça: você não estaria sendo piegas nesta nova versão?

Scrivener resolve, mais uma vez, o seu problema: basta fotografar o novo ensaio e… o programa (na versão para Mac) permite que você compare — por parágrafo, oração e palavra — as duas versões.

3. Scrivener dá uma visão completa do meu trabalho


Ainda estamos no ensaio sobre Gadda. Ele está ficando maior do que imaginei. Estou na 4ª parte — e percebo que há muito mais para escrever.

Mas será que a ordem que estou seguindo é realmente adequada? E como posso alterá-la sem ter de renomear os arquivos ou, pior, sem me embaralhar ou perder partes do que escrevi?

Simples: com um clique do mouse, transformo o Editor, a parte central do programa, num quadro de cortiça em que os arquivos aparecem (com um título e uma sinopse) na forma de fichas que posso mover e remover até encontrar a seqüência adequada para meu trabalho.

Se eu preferir, o mesmo espaço pode ser transformado num “esboçador”, em que os textos aparecem de forma vertical, um sob o outro, mas também com a possibilidade de serem remanejados.

Mas ainda não estou satisfeito.

Gostaria de reunir, na terceira parte do ensaio, os trechos em que analiso Aquela confusão louca da Via Merulana. Terei de pesquisar arquivo por arquivo?

Não com Srivener. É simples: coloco os termos de minha busca no campo de pesquisa e o programa mostra todos os arquivos em que o título do livro aparece.

Resumindo: mudanças estruturais podem ser feitas a qualquer momento, de forma rápida e sem jamais perder a visão do conjunto.

4. As estatísticas são perfeitas

Não se trata apenas de saber quantas palavras escrevi em cada arquivo. Ou quantos caracteres.

Trata-se de ter objetivos.

Meu editor estabeleceu um número de palavras máximo para o ensaio — e tenho de dividi-lo entre as partes do trabalho, mas de maneira a nunca perder de vista o número total.

Scrivener oferece todos os números — além de uma simpática barra, na parte inferior do Editor, que muda de cor à medida que me aproximo do meu objetivo.

Mas não é tudo.

O programa também mostra quantas vezes repeti cada uma das palavras utilizadas — o que ajuda a corrigir possíveis cacoetes verbais.

5. Posso trabalhar em diferentes computadores

Scrivener grava automaticamente seu trabalho a cada dois segundos — sem que você perceba.

Mas gosto de fazer backups em dois locais diferentes: num pen-drive e num serviço de nuvem.

À noite, ao terminar o trabalho, gravo o arquivo no formato “zip” (o que Scrivener faz automaticamente, incluindo a data) nos dois locais.

No dia seguinte, não trabalharei em casa, mas num café em que gosto de passar as tardes.

Se tenho Scrivener no notebook, posso acessar meu trabalho, exatamente como o deixei na noite anterior, abrindo o projeto a partir da nuvem ou do pen-drive.

E o melhor: se você costuma trabalhar num PC e seu notebook é um Mac, não importa: o arquivo “zip” abre nos dois.

— Há várias outras funções de Scrivener que são sedutoras. Falarei sobre elas no futuro.

janeiro 26, 2015

O bom escritor boceja diante das teorias

Vamos imaginar uma situação excêntrica, sob todos os aspectos indesejável:

Você se inscreve numa Oficina de Escrita Criativa e, no primeiro dia de aula, a professora — ela está quase nos 50, mas ainda se veste como uma adolescente — entra na classe e começa a falar sobre Roland Barthes ou a respeito de algum estruturalista russo.

Você vai tomando notas, sem entender direito o que está acontecendo, pois a professora é famosa, tem dezenas de livros publicados.

Além disso, sua melhor amiga — por quem você tem uma certa caída — está sentada ao seu lado. Ela estuda Letras e, a cada afirmação da professora, sorri e move a cabeça de maneira afirmativa.

A primeira hora parece interminável — e ainda que você tenha anotado tudo, não entendeu nada.

Quando você está mais perdido que cachorro em dia de mudança, a professora diz: “Bem… então, agora que vimos as 31 funções de Vladimir Propp, vocês podem escolher algumas e usá-las para escrever um texto breve, um conto que vamos discutir na próxima aula. Vamos fazer um intervalo e, depois do café, voltamos para ver a questão do ‘actante’ em Greimas”.

Meio perturbado, você levanta da carteira. Sua amiga já correu para o lado da professora. E assim que você se aproxima, nota que as duas conversam alegremente numa língua que só às vezes parece português.

O mal-estar que você experimenta nesse momento acende uma luz vermelha na sua cabeça e dispara uma sirene.

Por um simples motivo: você sabe, ainda que de maneira intuitiva, que escritores não precisam de teorias.

Não me consta que, antes de escrever seus contos, Tchekhov tenha estudado teoria literária.

Ou que Machado de Assis tenha, antes de começar a escrever, destrinçado a Poética de Aristóteles.

Teorias literárias, sistemas e classificações servem, em primeiro lugar, a teóricos, acadêmicos e críticos.

É verdade que alguns escritores, depois de acumular experiência, escreveram ensaios teóricos — ou demonstraram, em sua correspondência, em seus diários, idéias precisas sobre o que pretendiam expressar ou atingir com seus textos.

Basta pensar, por exemplo, nas cartas de Flaubert e Tchekhov — ou nos ensaios de Edgar Allan Poe e Julio Cortázar.

Mas criar obedecendo antecipadamente a uma teoria jamais foi a preocupação primeira desses autores.

Os vanguardistas de certo modo fizeram isso: inventaram modelos e depois, acorrentados a seus manifestos, tiveram de seguir produzindo de acordo com o esquema. Submeteram seu impulso criador a uma coerência infantil e irresponsável. Poucos tiveram coragem de buscar novos caminhos.

Mas os grandes escritores obedecem, em primeiro lugar, a si próprios. E se buscam um modelo — e é bom que o façam —, procuram-no entre os seus iguais, quase sempre aqueles que consideram perfeitos.

Nada impede que o escritor estude, conheça teorias — e seja, inclusive, professor de teoria literária.

O problema é colocar a carroça na frente dos bois. O erro está em apresentar aos jovens uma teoria, um modelo, e dizer que seguir esse sistema fará deles escritores.

É o mesmo que enfiá-los numa camisa de força. Ou no estreito corredor de um matadouro.

A escrita deve ser livre. Livre, inclusive, para ir contra a estética do seu tempo.

O escritor deve se sentir livre para escrever como Madame de La Fayette ou — vamos ainda mais longe — como Murasaki Shikibu. Deve ser livre para se inspirar nessas escritoras e, gradativamente, formar seu próprio estilo.

Ao escrever, esqueça as teorias estéticas.

O escritor deve ser livre para bocejar diante de Barthes, para cair de sono depois de uma página de Propp, para jogar no lixo os tratados de semiótica.

janeiro 23, 2015

Exercícios contra o despotismo da originalidade

Não procure ser original. Procure ser apenas você mesmo.
Hoje você terá um pouco de paciência comigo.

Quando comecei a escrever este texto, meu objetivo era falar sobre um tipo de exercício útil para novos escritores — e também para os velhos, desde que ainda não estejam enclausurados em seu próprio pedantismo.

Contudo, quando comecei a escrever, minha memória recuperou um pouco do meu tempo de faculdade, principalmente as aulas de Semiótica e algumas palestras que tive a oportunidade de assistir durante o curso de Letras — que, aliás, não terminei por absoluta falta de paciência.

Você verá, se tiver a paciência que não tive, como as lições da faculdade estão intimamente ligadas ao exercício de criatividade que vou propor.

Lembrar de minhas aulas — e do que a maior parte de meus professores falava sobre “ser original” — significa começar a entender a crise em que a chamada modernidade aprisionou as diferentes formas de arte.

E aprisionou por um motivo simples: por tratar a originalidade como um valor absoluto — um valor soberano, que não permite contestação ou contradição.

Hoje, o artista vive pisoteado pela angústia da originalidade. Ou, como dizia minha bisavó, ele está num mato sem cachorro.

A maioria dos escritores, por exemplo, acredita que, para se impor como artista, precisa agradar, não necessariamente nessa ordem, os membros de sua panelinha, a crítica acadêmica e a mídia. E ele não demorará a descobrir que o preço a ser pago para alcançar seu objetivo — sem tratar aqui de algumas questões perniciosas — tem apenas um nome: transformar a si mesmo num espetáculo.

Não basta escrever. É preciso escrever como os outros gostam. E não basta escrever como os outros gostam. É preciso pintar o cabelo de azul, usar um cavanhaque no estilo século 19, vestir roupas amassadas, transpirar certo descuido na forma de se comportar, como se o mundo fosse um pouco desprezível — sem jamais deixar de ser politicamente correto, claro — e afetar relativa pobreza (ainda que papai e mamãe sejam professores universitários ou fazendeiros).

A receita parece fácil. Mas não é.

Escrever como os outros gostam significa ser “dadá”, isto é, irracional e absolutamente espontâneo. Ou, como dizia Tristan Tzara, compreeender que “o pensamento se faz na boca”. (Sempre que lembro de meu professor repetindo isso com seriedade não consigo parar de rir.)

Ou seja, escrever como os outros gostam significa não ser escritor — mas, sim, um artista performático.

Essa angústia que obriga o artista a recriar um vanguardismo a cada dia contaminou toda a cultura. Leia o artigo do restaurateur Rogerio Fasano e você entenderá o que estou dizendo: hoje não basta cozinhar — é preciso ser uma espécie de abominável Dr. Phibes e recriar as dez pragas do Egito.

A angústia, o desespero da originalidade está na cama imunda da artista plástica Tracey Emin, no crucifixo imerso em urina de Andrés Serrano, na orelha implantada no braço de Stelios Arcadiou. Ou na irônica proposta de Bernardo Atxaga, de escrever um conto em 5 minutos.

Esse desespero pós-moderno pressupõe que arte é qualquer coisa colhida no ar e transportada a determinado suporte. E, não importando o resultado desse exercício, basta, ao final, seu marchand, seu editor, ou seu padrinho professor da USP anunciar: isto é arte.


Se você não acredita que, escolhendo a esmo duas palavras num dicionário e circundando-as com alguns verbos, substantivos e preposições, sejam eles quais forem, você tem um conto, então vale a pena continuar a ler este texto.

Minha proposta é que você não se preocupe em ser original — mas esteja disposto a exercitar sua criatividade.

Sempre digo que o escritor precisa escrever constantemente.

Claro, há períodos de necessária inatividade, principalmente depois de meses vivendo sob tensão diária para escrever um romance. Mas é preciso manter os motores aquecidos, ainda que em ponto morto.

Para aqueles que desejam adquirir habilidade ou se sentem vazios de idéias, costumo sugerir o exercício de dialogar com outras formas de arte.

Sem se preocupar em escrever obedecendo a determinado gênero literário, você pode produzir a partir da observação de uma pintura, de uma gravura, ou até mesmo de uma série de gravuras.

As 80 gravuras que compõem a série Los caprichos, de Francisco de Goya, oferecem múltiplas situações satíricas, a partir das quais você pode se propor a escrever, por exemplo, textos de 50 linhas.

Não se trata de descrever a gravura, mas, a partir da imagem e do que ela evoca, expressar suas próprias idéias — contrapondo-se ou não à mensagem do artista. É possível que a gravura seja o estopim para uma pequena história ou para fábulas em que você tentará construir cenas semelhantes.

O importante é não fazer crítica de arte — mas usar a gravura como um trampolim.

E criar as regras para o seu exercício: 1) escolher as gravuras; 2) estabelecer o tamanho do texto; 3) determinar em quanto tempo você alcançará o número de palavras; 4) começar; 5) cumprir as regras que você mesmo criou, de preferência sempre no mesmo horário.

Se os temas de Goya lhe parecem desprezíveis, recorra, por exemplo, às gravuras de Utagawa Hiroshige, um pintor japonês do século 19. Ele deixou uma série de 119 gravuras sobre paisagens e lugares emblemáticos da antiga Edo (hoje Tóquio).

Você pode transplantar as cenas que Hiroshige desenhou para o seu próprio cotidiano — ou tentar penetrar nas paisagens, como Akira Kurosawa fez, no filme Sonhos, com um dos quadros de Van Gogh.

Se trabalhar com imagens não lhe parece agradável, use textos.

Já que estamos falando do Japão, as narrativas de Yasunari Kawabata reunidas em Contos da palma da mão podem servir como estopim para novos textos, para novos contos. Com o agradável acréscimo de se referirem a outra cultura — e, portanto, a um imaginário em grande parte diferente do ocidental.

Você pode fazer o mesmo exercício com aforismos. Partir de uma sentença breve, de um pensamento conciso, e escrever uma pequena história.

Georg Christoph Lichtenberg é um aforista genial, pouco conhecido no Brasil, cujas frases às vezes estão muito próximas do nonsense. Uma de suas anotações diz assim: “Ele apreciava a pimenta e as linhas em zigue-zague”. Não temos aqui um personagem interessante?

Ou, se você preferir algo mais lógico, Lichtenberg também é perfeito: “Na verdade, há muitos homens que lêem apenas para não pensar”. As possibilidades de desdobrar esta afirmação num conto são infinitas.

O importante, em todos esses exercícios, é a disciplina. Você precisa estabelecer sua meta e cumpri-la. Com dedicação, com empenho, com vigor.

E não procure ser original. Procure apenas ser você mesmo.

janeiro 16, 2015

O escritor precisa ser um mestre da atenção

Todos os aspectos da realidade interessam ao escritor
Imagine uma cena: você está no ponto do ônibus, voltando do trabalho; anoitece; a fila é grande, algumas pessoas reclamam, a maioria está muda e cansada. O ônibus, com o motor ligado, mantém as portas fechadas, o que aumenta a impaciência de todos. Faz calor. Você está no meio da fila, pensando se conseguirá sentar ou não. Atrás de você, uma mulher; você a observou rapidamente há alguns segundos, mas não percebeu nada de especial. De repente, um barulho estranho: você se vira instintivamente e vê a mulher aos prantos, transtornada — há desespero no choro, ela se curva sobre si mesma e, soluçando, cai de joelhos na calçada.

Qualquer pessoa normal tentará ajudá-la, não é mesmo?

E um escritor, o que faria?


Ele ajudaria também, claro!

Quando chegasse em casa, contudo, seria capaz de reconstituir a cena — toda a cena —, do momento em que chegou no ponto até o choro inesperado e o que ocorreu depois.

Mas não só.

Suponhamos que a mulher não tenha verbalizado o motivo do seu choro. Suponhamos que, passados cinco minutos, restabelecida, ela tenha ido embora — ou entrado no ônibus e, em silêncio, descido alguns pontos depois.

Você continuou a observá-la, sem dúvida, apesar do ônibus lotado. Observou-a tanto, que pode descrever seu rosto, seu cabelo, a roupa,  vários outros detalhes.

Esse interesse e essa capacidade fazem de você um candidato a escritor.

Mas não só.

Faltam elementos para completar essa forma especial de atenção: você precisa ser capaz de imaginar 10 motivos — ou 20 — para o comportamento dessa mulher.

10 motivos verossímeis.

Você precisa conectar essa mulher — seus traços, seu modo de andar, sua forma de chorar, suas roupas, o detalhe do esmalte gasto nas unhas das mãos, o couro puído da bolsa que ela carregava —, você precisa conectar esses pormenores ao cenário da rua e, principalmente, a um passado e a um futuro.

Se você consegue imaginar, de forma consistente, o passado e o futuro dela, ligando-os aos possíveis motivos do seu choro, então você está se tornando — ou já é — um escritor.

Claro, não falo aqui sobre o ato de escrever, de realmente dar vida à história, pois o objeto deste post é a forma especial de atenção que o escritor precisa ter.

Por causa dessa atenção, muitos dizem que os escritores sofrem de uma doença terrível: vampirismo.

Eles estão certos.

Todos os aspectos da realidade interessam ao escritor. Ele deve possuir uma perspicácia especial, uma inteligência atenta, uma forma de ver os acontecimentos sem se prender a eles, mas indo além, tentando sempre descobrir o porquê, o como, as conseqüências.

Às vezes, da janela do meu apartamento, vejo um menino que desce para jogar bola à noite, na pequena quadra do condomínio. Ele sempre está sozinho. E fica chutando sua bola contra o gol durante longo tempo. Eu o observo. O som da bola batendo contra o aramado repercute no vão entre os prédios e sobe até meu andar.

Para um escritor, esse menino não é apenas um garoto solitário. Não. Esse menino é uma história. Um drama, talvez. Nele se concentram dores, expectativas, alegrias.

O escritor o observa, senta à escrivaninha e sabe tudo: sabe o que se esconde em cada chute, o que pulsa no coração do menino.

E sabe, principalmente, porque esse menino o faz escrever. Afinal, o escritor só consegue ser um bom observador dos outros porque observa a si mesmo.

janeiro 14, 2015

Alegria, ansiedade e planejamento caminham juntos na escrita

Cada autor cria um método particular de vencer obstáculos
Sempre que falo sobre a disciplina que o escritor precisa ter, lembro-me de outras questões importantes.

Todos os dias, no mesmo horário, cumprindo seu ritual, o escritor impõe a si mesmo a tarefa de arrancar da imaginação certo número de páginas.

Ele não segue um padrão, a não ser as variações do seu próprio estilo. Qualquer outro padrão significaria tornar-se repetitivo, enfadonho, como certos escritores que, de livro a livro, confundem ter estilo com repetir os mesmos cacoetes linguísticos.

O estilo é a marca do escritor. Mas isso não significa que ele segue, a cada livro, a mesma fórmula — ou que utiliza manuais com modelos de cartas de amor, redações para vestibular ou petições forenses, a fim de simplesmente adaptá-los à sua necessidade.

Seu estilo é sua personalidade, que se expressa por meio do tom de narrar, da forma de construir as frases, das escolhas vocabulares e de tantos outros elementos que compõem um texto. E, como toda personalidade, é cambiante, apresenta variações.

Caso tenha planejado seu livro, o escritor tem um norte, sabe para onde deseja levar sua história, seus personagens — mas ainda precisa obrigar as palavras a dizerem exatamente o que ele quer.

Nessa luta para não ser controlado pela língua, para trabalhar a linguagem não como um limite, mas como meio maleável de expressão, várias forças se debatem: o que existe em potência na mente do autor; as emoções que despertam à medida que ele escreve; seu conhecimento dos recursos da língua; o ambiente em que ele se encontra — com todas as solicitações que podem desorientá-lo; seu estado físico e mental; os escritores que o marcaram.

Karl Kraus, infelizmente pouco traduzido no Brasil, expressa bem essa relação conflituosa com a língua: “Não domino a língua, mas a língua me domina completamente. Ela não é a criada de meus pensamentos. Vivo numa relação com ela em que concebo pensamentos, e ela pode fazer de mim o que bem quiser. Eu a obedeço à letra. Pois das letras salta o jovem pensamento ao meu encontro e dá forma retroativa à língua que o criou. Semelhante graça de gestar pensamentos me obriga a ficar de joelhos e transforma todo dispêndio de cuidado trêmulo em dever. A língua é uma senhora dos pensamentos; ela pode ser útil na casa de quem consegue inverter essa relação, mas lhe fecha o útero”.

Tratando a língua como senhora ou escrava, a ansiedade é consequência natural desse embate, desse enfrentamento que o escritor repete a cada dia.

Dominar essa tensão exige autocontrole e descobrir, passo a passo, formas de obedecer ou ludibriar sua oponente.

comentei aqui sobre a receita encontrada por Hemingway. Interromper o trabalho no momento em que, “ainda não tendo perdido o gás”, ele poderia “antecipar o que vem em seguida” permite superar uma forma de ansiedade. Mas dá vida a outra, como o próprio Hemingway confirma: “A interrupção dá uma sensação de vazio, como quando se faz amor com quem se gosta. E ao mesmo tempo não é um vazio, mas um transbordamento. Não há nada que o atinja, nada acontece, nada tem sentido até o dia seguinte, quando você faz tudo de novo. Difícil é viver a espera até o dia seguinte”.

Cada autor cria um método particular de vencer obstáculos, mas ainda considero o planejamento a melhor ferramenta para o escritor principiante.

Um planejamento minucioso contribui, inclusive, para eliminar a dependência da inspiração, ainda que ela seja útil e se faça presente.

Um planejamento detalhado, que não descarte possíveis mudanças de rumo, que esteja aberto à reelaboração, pois nem sempre é possível seguir a bússola — o navio, às vezes, precisa fazer uma ampla curva para contornar certa dificuldade e, só então, chegar ao destino.

Trata-se também de não enxergar a escrita como uma carga, mas como um ofício. Um ofício que o escritor impõe a si mesmo e realiza, apesar dos obstáculos, com arrojo e alegria. O mesmo Kraus que afirma ser escravo da língua exclama em outro aforismo: “Oh deleite das experiências da língua, devorador da medula! O perigo da palavra é o prazer do pensamento”.

Escrever é esse ofício que se reconstrói, que se redescobre a cada dia — um “caminho que se faz ao caminhar”, como afirma o sábio poema de Antonio Machado.

janeiro 12, 2015

Em literatura, tudo é, de alguma forma, autobiográfico

A tarefa do escritor é permitir que realidade e ficção se interpenetrem
O escritor sempre parte da sua experiência; sempre fala, em alguma medida, de si mesmo.

Ele transforma realidade em ficção — e usa, como filtro, o seu olhar.

Na verdade, os próprios escritores realistas — com sua pretensão de esquadrinhar sem lirismo o real, de forma objetiva, sem utilizar simbolismos — repetiram o que a ficção faz há séculos: filtraram a vida utilizando uma simbólica pessoal, uma forma particular de entender a realidade.

Há, claro, diferentes gradações na maneira como os escritores utilizam a realidade e suas próprias experiências. Mas literatura e realidade estão inextricavelmente ligadas.

Aos leitores, contudo, não importa o quanto a história é baseada em fatos reais ou autobiográficos.

Pode ser curioso saber que certa personagem medíocre é loira e gosta de usar camisolas verdes porque a mãe do autor, que ele considerava fútil e mesquinha, era loira e tinha um guarda-roupa repleto de vestidos verdes...

Mas preocupar-se com essas filigranas quase sempre não passa de bizantinismo. Tais informações serão úteis, no futuro, se o escritor merecer a honra — ou a desonra — de ser biografado.

O que interessa — para o leitor e para o crítico — é a história em si.

O que importa é se a história está bem contada; se personagens, cenários, diálogos e voz narrativa criam a verossimilhança capaz de convencer, arrebatar.

Leitores e críticos buscam histórias que derrotem as visões estereotipadas da vida, que desprezem os lugares-comuns, que observem e reconstruam a realidade sob um novo olhar, sob uma perspectiva nunca antes utilizada.

Só esse enfoque pessoal e incomparável pode transformar um fato aparentemente banal numa história aliciante, digna de ser lida e relida por gerações.

Não, não se trata de fazer a cópia exata da realidade — o que, aliás, é impossível —, mas de transformá-la até o que podemos chamar de “ponto ideal”, um grau de otimização que não pode ser fixado, pois depende de cada história, de cada escritor, de cada voz narrativa.

Em que medida uma história é autobiográfica ou não, isso, repito, interessa aos biógrafos — e a certas vazias discussões acadêmicas.

Você certamente já ouviu falar em autoficção. Um termo moderno, pretensamente iluminador. Na verdade, uma expressão que, quando não confunde, afirma o óbvio.

Em teoria literária, com o advento do estruturalismo, os teóricos se especializaram em criar um jargão hermético e vazio.

Ler alguns desses estudiosos é como ouvir uma pitonisa: crédulos escutam boquiabertos e, sugestionáveis, têm a impressão de que, sob a fala incompreensível, a verdade lateja semelhante a um mistério milenar, pronto a ser esclarecido.

Basta, entretanto, ter uma dose mínima de desconfiança para refletir e chegar à conclusão de que tudo se resume a verniz intelectualista.

É o que acontece com o termo autoficção.

Sabe por quê? Porque toda a literatura é, no fundo, autoficção.

Mas os teóricos modernos acreditam que, para entender um fato, para esclarecer uma tendência, basta criar um termo específico ou uma nova terminologia.

Por isso falam em autoficção: para justificar, com um nome curioso, a pobreza de parte da literatura contemporânea, cujos autores preferem, como dizia Alcântara Machado, se flagelar, “desnudando os seqüestros e complexos numa expiação pública para ser bem expiatória”.

Com o ar superior de quem reinventou a roda, alguns teóricos olham para essa literatura pequena — em que o autor parece repetir “eu, eu, eu, eu, eu...” — e dizem: “Ah, isto é autoficção. É um novo gênero literário. Que coisa linda”.

Eles esquecem que, em literatura, tudo é, de alguma forma, autobiográfico. 

Todos fabulam nesta vida. E o escritor ainda mais, pois é a sua profissão. Sua tarefa é mesclar realidade e fantasia — permitir que realidade e imaginação se interpenetrem, se contaminem.