janeiro 25, 2013

Literatura e realidade: uma página dos diários de Edmund Wilson

[...]

Toda literatura fornece uma visão falsa da vida, porque é o anverso da realidade – o artista preenche as lacunas de seu caráter ou de sua experiência forjando material espiritual imaginário.

Em primeiro lugar, o artista, em suas produções, distorce a vida numa certa direção, fabrica para ela um rosto falso – e então o leitor, que tende a ser convencido a acreditar, erroneamente, que a vida é realmente assim para o escritor e portanto pode vir a ser assim para outrem, tenta na vida real concretizar a imagem que o artista inventou justamente com o fim de preencher a lacuna de algo que ele não conseguiu encontrar. No final, as incongruências do sistema tornam-se claramente visíveis, e o modelo é jogado fora; como resultado, o leitor recrimina o escritor por ter distorcido a realidade.

A questão é que os leitores apoiam-se, como quem se apoia em algo inquestionavelmente real e forte, numa coisa que, para o escritor, era apenas falseamento confortante e perfeitamente consciente da vida, tal como sua própria experiência a revelou para ele, de forma desconcertante, uma espécie de eufemismo feito na esperança – infundada, como ele próprio sabe melhor do que ninguém – de que, dando tal aparência às coisas, ela possa realmente lhes atribuir esse caráter – ao sujeitar a totalidade de sua experiência às nuanças e padrões de seu próprio temperamento, ele se esquece por um momento do mundo real e incognoscível nesta extensão de sua própria consciência imediata para preencher – o que, ilusoriamente, parece ocorrer – toda a paisagem da experiência. Para o leitor, é como se este mundo invertido fosse talvez o mundo real que ele vem procurando, e, temporariamente, ele pode vir a aceitá-lo.
 
(Em Os anos 20)

janeiro 23, 2013

Eric Voegelin e o resgate da linguagem

“Resgatar a linguagem significava recuperar o objeto a ser por ela expresso, o que, por sua vez, significava sair do que hoje se chamaria a falsa consciência da burguesia ordinária (aí incluindo positivistas e marxistas), cujos representantes literários eram as vozes dominantes do meio cultural. Daí que essa preocupação com a linguagem fizesse parte da resistência contra as ideologias. As ideologias destroem a linguagem, uma vez que, tendo perdido o contato com a realidade, o pensador ideológico passa a construir símbolos não mais para expressá-la, mas para expressar sua alienação em relação a ela.” (in Reflexões autobiográficas) 
 

janeiro 19, 2013

Frei Vicente do Salvador, a “caravelinha que lá vai, e vem” e o liberalismo que ainda aguardamos

O clássico Capítulo Segundo da História do Brasil, de 1627. Aula de ironia, história e política escrita por Frei Vicente do Salvador:

“O dia em que o capitão-mor Pedro Álvares Cabral levantou a cruz, que no capítulo atrás dissemos, era 3 de maio, quando se celebra a invenção da Santa Cruz, em que Cristo Nosso Redentor morreu por nós, e por esta causa pôs nome à terra, que havia descoberta, de Santa Cruz, e por este nome foi conhecida muitos anos: porém como o demônio com o sinal da cruz perdeu todo o domínio, que tinha sobre os homens, receando perder também o muito que tinha nos desta terra, trabalhou que se esquecesse o primeiro nome, e lhe ficasse o de Brasil, por causa de um pau assim chamado, de cor abrasada e vermelha, com que tingem panos, que o daquele divino pau que deu tinta e virtude a todos os sacramentos da igreja, e sobre que ela foi edificada, e ficou tão firme e bem fundada, como sabemos, e porventura por isto ainda que ao nome de Brasil ajuntaram o de estado, e lhe chamaram estado do Brasil, ficou ele tão pouco estável, que com não haver hoje 100 anos, quando isto escrevo, que se começou a povoar, já se hão despovoados alguns lugares, e sendo a terra tão grande, e fértil, como adiante veremos, nem por isso vai em aumento, antes em diminuição.

Disto dão alguns a culpa aos reis de Portugal, outros aos povoadores; aos reis pelo pouco caso que haviam feito deste tão grande estado, que nem o título quiseram dele, pois intitulando-se senhores de Guiné, por uma caravelinha que lá vai, e vem, como disse o Rei do Congo, do Brasil não se quiseram intitular, nem depois da morte de el-rei d. João Terceiro, que o mandou povoar e soube estimá-lo, houve outro que dele curasse, senão para colher suas rendas e direitos; e deste mesmo modo se haviam os povoadores, os quais por mais arraigados, que na terra estivessem, e mais ricos que fossem, tudo pretendiam levar a Portugal, e se as fazendas e bens que possuíam soubessem falar também lhes haveriam de ensinar a dizer como os papagaios, aos quais a primeira coisa que ensinam é papagaio real para Portugal; porque tudo querem para lá, e isto não tem só os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem, e a deixarem destruída.

Donde nasce também, que nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela, ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular. Não notei eu isto tanto quanto o vi notar um bispo de Tucuman da Ordem de S. Domingos, que por algumas destas terras passou para a Corte, era grande canonista, homem de bom entendimento e prudência, e assim ia muito rico; notava as coisas, e via que mandava comprar um frangão, quatro ovos, e um peixe, para comer, e nada lhe traziam: porque não se achava na praça nem no açougue, e se mandava pedir as ditas coisas, e outras muitas a casas particulares lhas mandavam, então disse o bispo verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-o cada casa; e assim é, que estando as casas dos ricos / ainda que seja a custa alheia, pois muitos devem quanto têm / providas de todo o necessário, porque tem escravos, pescadores, caçadores, que lhes trazem a carne e o peixe, pipas de vinho e de azeite, que compram por junto: nas vilas muitas vezes se não acha isto a venda. Pois o que é fontes, pontes, caminhos e outras coisas públicas é uma piedade, porque atendo-se uns aos outros nenhum as faz, ainda que bebam água suja, e se molhem ao passar dos rios, ou se orvalhem pelos caminhos, e tudo isto vem de não tratarem do que há cá de ficar, senão do que hão de levar para o reino.
 
Estas são as razões porque alguns, como muitos dizem, que não permanece o Brasil nem vai em crescimento; e a estas se pode ajuntar a que atrás tocamos de lhe haverem chamado estado do Brasil, tirando-lhe o de Santa Cruz, com que pudera ser estado, e ter estabilidade e firmeza.”

janeiro 17, 2013

Bruno Tolentino e a “esterilidade palavrosa”

A tese de que a Semana de 22, quando analisada no contexto da literatura brasileira, foi um evento não só desnecessário, mas completamente dispensável, ganha força a cada parágrafo do ensaio Banquete de ossos, publicado em 1998. “[...] Tragicamente nos apalhaçamos em 22 no vão intuito de dar o salto que afinal nem demos nem precisávamos dar: o salto mortal (ou letal?) no trapézio dos andradóides não nos levou mais alto do que andáramos até então”, denuncia Tolentino, mostrando, logo a seguir, como tudo que houve de melhor após 1922 nasceu dos autores geniais que existiam muito antes da Semana de Arte Moderna.

O que Tolentino chama de “ruidoso abalo símio de 1922” na verdade não teria passado – e realmente não passou – de “um frisson nosso todo particular, de natureza, fôlego e alcance decididamente paroquiais. Nada nos deu de verdadeiramente universal que enriquecesse a língua que se queria subitamente ‘autofágica’ já que o banquete devorou sobretudo nossa gramática. Pouco se acrescentou à ‘realidade’ além de uma amputação gradual das regências verbais, entre outros gracejos; fenômenos que constituiriam um escândalo em qualquer língua [...]. Presentinho de grego dos desossados balbucios populistas dos rapazes de 22…”
 
Ensaio para ser lido e estudado. Ensaio que devemos guardar dentro da carteira, numa folha dobradinha, para reler nos momentos de desespero, quando, depois de olhar a estante de literatura brasileira nas livrarias ou ler a opinião de certos críticos nos cadernos culturais, quase massacrados pelo amontoado de estultices, devemos, precisamos lembrar que “não somos uma variante afro-cafuza da lusofonia, nosso dilema não é ‘tupi or not tupi’, é, ainda e sempre, ser ou não ser o que de fato somos: uma grande e sempre por si mesma renovada civilização lusófona”.

janeiro 14, 2013

Vanguardeiros autistas

O ensaio de Luis Dolhnikoff na Revista Sibila, sobre o estado atual da literatura brasileira, nasce das matérias publicadas na Folha de S. Paulo há alguns dias, ambas escritas por Marco Rodrigo Almeida: “Eles não chegam lá” e “Ficção perdeu os leitores, diz autor de 'O Filho Eterno'”. O raciocínio proposto pelo ensaísta toca no centro de uma importante questão da nossa literatura, sobre a qual, aliás, venho falando há tempo: “Os romancistas brasileiros escrevem, de fato, ‘para os amigos’, mas não como motivo primário. Na verdade, eles não escrevem para o público, que desprezam”.

O texto de Dolhnikoff, que merece leitura atenta, pode ser sintetizado neste parágrafo acertadíssimo: “A incapacidade dos escritores brasileiros de criarem livros ao mesmo tempo bons e prazerosos é apenas a incapacidade dos escritores brasileiros de criarem livros ao mesmo tempo prazerosos e bons. Eles são, como regra, chatos, porque, como regra, são pretensiosos. E são pretensiosos por ignorarem o público leitor. Se não o ignorassem, não poderiam ser chatos, sob o risco do fracasso. Cria-se assim uma literatura satisfeita para ninguém, ou quase ninguém. Satisfeita talvez, mas não satisfatória. A menos que se considere a criação literária um hobby, que, de fato, só interessa para quem o pratica. Mas se se pretende algo além de um hobby, a literatura não pode satisfazer somente quem se dedica a ela. O público tem de ser posto na equação. Ou nas equações. Pois há uma simples e uma complexa”.

Denunciando uma literatura que se pretende de vanguarda, mas que na verdade não passa de literatura “autista”, o texto retoma, parcialmente, o que apontei há alguns anos, no jornal Rascunho, no ensaio “Mazelas da narratofobia”: “Parcela dos escritores brasileiros contemporâneos sofre de uma estranha patologia: escrevem não para satisfazer seus impulsos criativos, mas, principalmente, para cumprir determinados preceitos. Dito de outra forma, alguns escritores submetem a criatividade às regras difundidas por supostos expertos, ou, pior, ao gosto das panelinhas. A escrita se afasta, assim, do seu verdadeiro caráter — o de exercício de comunicação —, transformando-se num fetiche. A literatura produzida segundo tais critérios não é só exclusivista, mas pedante e artificial, além de subserviente: nasce para agradar a uns poucos, para corresponder àquelas teorias que certos literatos diluíram e transformaram em receitas aparentemente infalíveis”.
 
As consequências dessa atitude subdesenvolvida – mas que é tratada como supostamente vanguardista – não se esgotam, repito, “na leitura obscura, forçosamente aflitiva. Nossos poucos leitores, ávidos por uma literatura que os conduza para longe da mesmice e da banalidade, encontram, nas livrarias, as seções de literatura brasileira abarrotadas de textos herméticos. É fatal, portanto, que sejam raptados para o mundo da subliteratura, tornando-se reféns dos romancinhos kardecistas e de outras tantas panaceias na forma de brochura”.

janeiro 10, 2013

Açoites de Karl Kraus


A verdade que se repete

O que foi impresso num único dia dos últimos cinquenta anos fez mais contra a cultura do que a obra completa de Goethe fez a seu favor.


Os medíocres

No caminho pelo qual chegamos a nós mesmos também encontramos uma inoportuna fileira de curiosos que gostariam de saber como são as coisas por lá.


Amor à norma culta

Minha língua é a puta de todo mundo que transformo em virgem.


Definição de coragem

O fraco duvida antes da decisão. O forte, depois.
 

Isso é tão comum atualmente...

Uma aparência de profundidade surge com frequência pelo fato de uma cabeça rasa ser ao mesmo tempo uma cabeça confusa.
 

Otimismo incansável

O Diabo é um otimista se acredita que pode tornar os seres humanos piores.
 

O que os ideólogos não entendem
 
A língua é a mãe, e não a criada do pensamento.

janeiro 09, 2013

Salvo da banalidade

Escrevo, no Rascunho deste mês, sobre o goiano Hugo de Carvalho Ramos, cujas narrativas (em Tropas e boiadas) estão acima do que se costumou chamar, entre nós, de regionalismo, termo dúbio e sempre aberto a revisões. Impregnados de tom épico, alguns contos parecem nascer de episódios da Chanson de Roland e outras canções de gesta, com seus personagens heroicos, reticentes no que se refere a introspecções, mas sempre prontos à presteza e à coragem, aceitando com naturalidade a vida sob permanente tensão.