Para onde nos levam os sonhos? Ao caminharmos, indefesos, nessas trilhas
de símbolos, seguimos para que estranho, desconhecido país?
O
mundo onírico é mais do que a tela na qual se projetam desejos que anseiam por
se realizar. Cada sonho guarda um convite ao autoconhecimento; cada viagem
empreendida ao subterrâneo da mente esconde um sinal que, às vezes repetitivo,
insiste no sentido de desvendarmos nosso eu.
Assim,
quando acordo e percebo que a memória preserva o itinerário da viagem noturna,
acalento essas lembranças – talvez fragmentadas – como se formassem o mapa de
uma aventura que clama por ser reconstituída; tarefa que, realizada pela mente
em vigília, pode oferecer o tesouro – quem sabe inominável segredo – escondido
em algum ponto de chegada. Procuro, então, revisitar, durante o dia – e, muitas
vezes, esforçando-me por continuar a fazê-lo nos dias seguintes, quando
pressinto que a lembrança do sonho já se esvai –, as mesmas etapas noturnas,
como o menino que, encontrando no caminho à sua frente as pegadas de um adulto,
tentasse colocar seus pés, passo a passo, nas marcas deixadas na terra, que ele
só consegue alcançar com grande esforço.
Há
algumas noites, depois de longa conversa com minha mulher sobre o processo de
criação de alguns textos, enveredei mais uma vez, durante o sono, para o meu
labirinto pessoal. Deparei-me comigo, ainda criança: um menino de nove ou dez
anos. Freqüentava uma escola dirigida por religiosas e, naquela manhã, chegando
com outras crianças para a aula, percebi que o centro da escada de metal, por
onde subíamos para entrar nas classes, fora retirado. Alcançando determinado
degrau, eu tentava pular o vão que me levaria à parte superior da escada, mas
meus esforços eram inúteis. Desci, então, resolvido a buscar um atalho, pois a
aula começaria em poucos minutos. Nesse momento, uma freira se aproximou de mim
e, demonstrando conhecer minha dificuldade, instruiu-me sobre o caminho
alternativo. Mais trabalhoso, disse-me ela, com o sorriso que revelava a
promessa de uma opção agradável, prazerosa. Eu deveria sair do prédio,
orientou-me a irmã, circundá-lo, encontrar a fonte existente em algum ponto do
terreno, mergulhar nela, atravessar a nado um trecho submerso e voltar à tona
mais à frente, quando encontraria a entrada para a classe. Aceitei as
orientações e, mesmo notando a existência de outra escada, esta semelhante à do
sobrado em que passei minha infância, decidi seguir em frente. Cruzo o longo
gramado que ladeia o prédio e encontro-me diante de uma fonte circular, na qual
mergulho sem hesitação. Lá, sob a água cristalina e iluminada, em um espaço
surpreendentemente amplo, deparei-me com o cenário deslumbrante: no centro havia
uma coluna formada por outra qualidade de água, ainda mais transparente e mais
luminosa do que aquela onde me encontrava; e por essa coluna subiam, rumo à
superfície, exemplares – animados e inanimados – de tudo o que compõe a
realidade. Esse conjunto imensurável vinha de uma região subterrânea, e cada
exemplar demorava-se alguns segundos à minha frente, para depois continuar em
sua rota ascendente. Alegremente atônito, deixei-me ficar ali, esquecido das
aulas, maravilhado com o espetáculo. E foi com inigualável sentimento de
completude que acordei.
Ainda
sentado na cama, meus pensamentos dividiam-se entre buscar uma explicação para
o sonho e, ao mesmo tempo, rememorá-lo sem perder os detalhes. Finalmente,
poucos minutos depois, antes de iniciar os afazeres do dia, enquanto ainda
concatenava minhas idéias, não sei quais associações fizeram-me lembrar do
poema de Eugenio Montale:
Talvez uma manhã andando num ar de vidro,
voltando-me, verei cumprir-se o milagre:
o nada às minhas costas, detrás de mim
o vazio, como um terror de bêbedo.
Depois como numa tela, acamparão de um jato
árvores casas colinas para a ilusão costumeira.
Mas será tarde já; e eu partirei calado
entre os homens que não se voltam, com o meu segredo.
Com o
livro de Montale aberto, meu primeiro pensamento dava-me a certeza de que a
verdade não estava nas aulas que assistiria, se tivesse conseguido saltar de um
trecho a outro da escada. A verdade jamais esteve no ambiente repressivo da
classe de aula, com suas filas de carteiras paralelas e professores, a maioria deles,
incapazes de me mostrar o que subsistia para além da lição diária. A quase
alegria com que percebi a ausência dos degraus e o sentimento de inevitável
necessidade de buscar outro caminho deflagraram a certeza de que eu não
voltaria ali, de que uma experiência singular me aguardava. É certo: a verdade,
sempre encontrei-a em outro lugar, oposto àquele apontado pela escola.
Foi
fácil, portanto, recusar inclusive a segunda escada. Sua semelhança com a que
existira na casa onde passei minha infância deixou-me desconfiado. E a
repentina solução para um problema que, há poucos segundos, apresentava-se
insuperável, contribuiu para que eu me afastasse dali, desprezando o atalho,
movido pelo desejo de conhecer o ignorado.
Certamente
não era à toa que as vestes da religiosa – notei bem enquanto ela me falava –
refulgiam em um branco tão ofuscante quanto o que encontrei difuso na atmosfera
do pátio gramado; e que, depois, se repetiria sob a água. Como se eu vivesse a
manhã envolta no “ar de vidro” de Montale, empenhei-me naquela jornada, sob uma
luz insólita e, em breve, com um novo olhar.
A
intensa claridade abarca, de fato, esse sonho, tornando-o um rito de passagem
no qual o cenário se impregna do branco como nos rituais de batismo. Todas as
cores estão reunidas sob a alvura, a tonalidade que marca o amanhecer, quando a
aurora reveste os seres, a vida, dessa coloração que nos prepara a um novo
começo, desperta-nos da letargia noturna e nos estimula ao enfrentamento da
existência. O branco está associado ao reinício, ao recomeço, ao renascimento
que se segue à noite, à morte. Eu abandonava a penumbra fria do prédio escolar
para ser impregnado pela luz, envolvido por uma claridade que chegava a ofuscar
minha vista; mergulhava na fonte, onde a luz fundia-se à água, esta também um
símbolo de regeneração. E o fazia não em qualquer lugar, não em um lago estagnado
ou num mar tormentoso, mas sob as águas de uma imponente fonte circular; ela
também, recordo-me, toda branca, agitando a água de forma inesgotável.
Ali,
de volta ao começo, de volta ao elemento no qual tudo teve origem, vislumbrei o
centro por onde passam as coisas e de onde elas convergem à vida. No centro do líquido
translúcido conheci os elementos da realidade em sua forma original, primeva,
quando ainda não estão nomeados, quando ainda não foram classificados e
diminuídos pelo homem.
Mas,
imerso na transparência, equilibrando-me sob a pressão da água, não apenas os elementos
da vida mostravam-se novos. Eu também havia retornado à infância, quando tudo
está por ser descoberto. E sentia-me – espectador e personagem do meu sonho –
como se pudesse, a partir daquele momento, reiniciar minha trajetória e buscar
o que, por acaso, houvesse perdido.
Meu
sonho foi, logo, diferente do vivenciado por Montale, pois se o poeta
vislumbrou o terror que se esconderia sob o que parece ser o real – para ele, o
vazio, o nada –, eu me aproximei do reinício de tudo e percebi o oposto: a
urgência de captar a verdadeira face da realidade.
Terminado
o sonho, pressenti também ser tarde para retornar à mesmice da carteira escolar
e das receitas oferecidas pelos homens que jamais “se voltam”. Talvez
exatamente por essa razão tenha relembrado, ao acordar, o poema de Montale:
porque, assim como ele, a partir daquele sonho – e em todas as manhãs,
esforçando-me para repetir o ritual onírico de maneira consciente – eu devesse
calar-me “entre os homens que não se voltam”, entre os homens que não sabem
olhar, e carregar comigo “o meu segredo”...
A
mensagem, certamente há muito dentro de mim, mas galvanizada pelo sonho,
repete-me a necessidade de transpassar o real banalizado, esforçando-me por
redescobrir a verdade das coisas. O sonho me diz que meu olhar deve despir a
realidade da camada de fantasia que lhe pespegamos diariamente; que devo
reiniciar meu exercício de observação a cada momento, a fim de redescobrir, sob
a mesmice do cotidiano, o caráter inusitado do real.
Esta
é a revelação do mundo onírico: devo obrigar-me a enxergar a realidade a partir
do seu centro, de onde ela desborda para o que é habitual – resgatar a verdade
preservada em cada elemento, seja ela trágica ou pueril, inocente ou terrível.
De
todos os enigmas que a noite e o sono semeiam, de todos os sonhos que carrego
comigo – um patrimônio que cabe à lucidez decifrar –, dessas imagens noturnas
que sobrevivem durante a vigília, esta que acabo de descrever insufla em minha
consciência também uma pergunta: o que será daquela criança, embevecida frente
à coluna de luz e água por onde passa o universo? Ela não deveria retornar ao
pátio gramado, ao convívio dos homens, e ali, dona agora dessa nova forma de
olhar, dessa visão que lhe parece inaudita, transmitir os frutos da sua
descoberta? Ou, como Montale, resta-lhe apenas viver solitária entre os homens,
carregando o seu segredo?
Tal possibilidade,
contudo, assemelha-se à segunda escada que surge em meu sonho, pois oferece uma
facilidade ilusória. Se a conclusão de Montale à sua angústia é o poema – e não
o silêncio –, então ele desejou oferecer aos homens uma tocha capaz de iluminar
o desconhecido e diminuir a incerteza que, a cada esquina, nos aguarda.
Da mesma forma, estas
linhas são uma pergunta e, também, sua própria resposta. Por meio delas retorno
ao pátio ensolarado e busco meus semelhantes, disposto não a lhes denunciar,
com pessimismo, a “ilusão costumeira” de Montale, mas pronto a redescobrir o
real. E, principalmente, esforçar-me por revelá-lo com o vigor esquecido pela
maioria.