maio 31, 2014

Reações ao Decreto 8.243 — a sociedade ainda respira. Até quando?

A principal característica de um governo esquerdista é que ele jamais se contenta em governar de acordo com a ordem legal, instituída. Ele sempre acredita que detém a chave, a poção, a receita miraculosa para transformar o país no que, ele imagina, será o melhor dos mundos. O problema é que o melhor dos mundos, quando se trata da esquerda, está sempre próximo do que imaginamos ser o Inferno, quando não é o próprio Inferno.

A prova do que afirmo encontra-se não apenas na história das revoluções — vejam o Purgatório congelado no tempo em que Cuba se transformou, sobrevivendo graças à submissão de um povo sem esperança e sem armas e à propaganda esquerdista mundial, ou os milhões de crimes perpetrados pelo comunismo soviético —, mas também no presente, no cotidiano da sociedade brasileira, sequestrada, em grande parte, pelo pior tipo de populismo que já conhecemos, superior, em método e recursos, aos refinamentos do getulismo.

Esta semana, mais uma vez, o governo ensaiou uma tentativa de golpe. O alarme foi dado pelo editorial do Estadão, “Mudança de regime por decreto”, e rapidamente se espalhou pelas redes sociais e blogs, transformando-se em um fenômeno viral.

De fato, enquanto os políticos de oposição dormem, refestelados em seus altos salários e mordomias, parcela da sociedade vigia, atenta, os ensaios para se criar uma ditadura. As reações foram múltiplas: Reinaldo Azevedo pontificou: “A ‘democracia direta’ de Dilma é ditadura indireta do PT”. Alexandre Borges deu uma breve mas incisiva aula de história em “Todo poder aos sovietes petistas”. Felipe Moura Brasil denunciou a lentidão dos tucanos, sempre envergonhados ou sempre pactuando silenciosamente com o governo, no post “Ronaldo Caiado sai na frente de Aécio: ‘É golpe do PT!’”. No artigo “Um tumor inserido por decreto”, Fábio Blanco sangrou ainda mais a manobra traiçoeira. E Milton Simon Pires não deixou por menos: mostrou, em “Brasil 8243”, como o PT pretende destruir as instituições do país.

O mais didático e irônico, contudo, foi Erick Vizolli, no sempre ótimo Liberzone. No artigo “Afinal, o que é esse tal Decreto 8.243?”, Vizolli mostra que o sistema representativo, apesar de todos os seus defeitos, ainda é a única forma de nos protegermos de um Estado controlado por grupos que não têm compromisso com a democracia ou a liberdade, mas apenas com suas próprias ideologias.

Todos esses articulistas me recordaram as reflexões de Roger Scruton em The Uses of Pessimism and the Danger of False Hope (As vantagens do pessimismo, Editora Quetzal, Lisboa). No Capítulo 6, “A Falácia do Planeamento”, Scruton faz uma brilhante analogia entre a estrutura da União Europeia e a forma como Lenin aboliu, na Revolução Russa, “todas as instituições através das quais o partido e seus membros pudessem ser responsabilizados pelo que fizeram”, permitindo que um erro se sucedesse a outro, sempre maior, sempre mais criminoso.

Scruton reflete como se tivesse acabado de ler o decreto de Dilma Roussef: “Quando os poderes de Governo estiverem adequadamente repartidos e quando os que detêm a soberania puderem ser expulsos por uma votação, os erros podem encontrar o seu remédio. Porém suponhamos que as instituições de Governo estão montadas de tal maneira que toda a concentração de poder é irreversível, de modo que os poderes adquiridos pelo centro nunca podem ser recuperados. E suponhamos que aqueles que mandam no centro são nomeados, não podem ser afastados a pedido do povo, encontram-se em segredo e guardam poucas ou nenhumas atas das suas decisões. Acha que, nessas circunstâncias, existem condições em que possam ser retificados erros ou mesmo convincentemente confessados?”.

Todos os infinitos casos de corrupção; todas as manifestações de ódio coletivo que têm tomado as ruas; o longo e incansável trabalho de controle ideológico feito pelo Ministério da Educação, censurando, de forma velada, o conteúdo de milhões de livros didáticos distribuídos país afora; todas as tentativas de manter sob vigilância a mídia e a Internet; o evidente controle do Executivo sobre parcela do Congresso e do Supremo Tribunal Federal — tudo contribui para transformar o Decreto 8.243 na cereja do bolo.

Se ainda podemos ter alguma esperança, ela reside no fato de que eles sempre acabam destruindo uns aos outros. “Doze vozes gritavam cheias de ódio e eram todas iguais. Não havia dúvida, agora, quanto ao que sucedera à fisionomia dos porcos. As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já se tornara impossível distinguir quem era homem, quem era porco” — conta George Orwell no final de A Revolução dos Bichos.

maio 27, 2014

Dolly Freed, uma chestertoniana inconsciente

Graças à indicação de meu amigo Sílvio Grimaldo, tenho lido, antes de dormir, o divertidíssimo Possum Living: How To Live Well Without A Job And With (Almost) No Money, escrito por Dolly Freed no final da década de 1970.

Não, não se trata de algo semelhante a Walden, de Henry David Thoreau, ainda que o despretensioso livrinho de Dolly tenha sido sequestrado pelos seguidores do movimento Simple living.

Dolly Freed não está interessada em atacar uma suposta “sociedade de consumo”. Ao contrário da tediosa linguagem de cunho ideológico, ela nos oferece humor, ironia. Numa das partes dedicadas à alimentação, recomenda, por exemplo, que os humanos só devem ser comidos em casos de emergência, pois sua carne é fibrosa e carente de vitamina B.

Ela escreve com franqueza contagiante — e ainda que eu não esteja disposto a viver totalmente como Dolly propõe, um estilo de vida que ela própria se viu forçada a abandonar, o livro é um delicado convite à simplicidade, a buscar o que é realmente essencial, como a bondade e a alegria. Possum Living é a obra de uma chestertoniana inconsciente. 

maio 22, 2014

Hoje, lançamento de “Esquecidos & Superestimados” em Curitiba

Espero os amigos curitibanos hoje, às 18h30, na Livraria Danúbio, para o lançamento do meu novo livro, Esquecidos & Superestimados. A Danúbio fica no Batel Soho, na Alameda Prudente de Moraes, 1239. Até lá!

maio 19, 2014

Só um alienista pode salvar o país

Quando o populismo e a demagogia imperam — exatamente como acontece nos últimos anos no Brasil —, a cultura pequena predomina, ganha altos postos e financiamentos soberbos.

É curioso o discurso dos que justificam o rebaixamento de Machado de Assis a uma linguagem popular, supostamente acessível ao povo: enquanto lança perdigotos, o magnânimo evangelizador literário das massas, com a serenidade típica de um cônego que recolhe esmolas apenas para garantir o próprio consumo de presunto e vinho, desfia seu amor desabrido, realmente perdulário, não ao dinheiro captado graças à esdrúxula Lei Rouanet, mas à “copeira do escritório”, ao “balconista da farmácia”, ao “motorista de táxi”.

Chegam a ser comoventes esses padrinhos e madrinhas dos pobres iletrados brasileiros. Quanto amor! Quanta prodigalidade! Se pudessem, levariam a cada lar um volume de Machado de Assis. E de quebra, quem sabe, uma terrina de caldo de galinha! Ah, se pudessem!, esses médicos de almas sentariam à cabeceira de cada brasileiro, cobrindo as cabecinhas pouco iluminadas do povo com suas infalíveis compressas de cultura.

Quanto paternalismo! Quanta simulação de virtude! Quanta receita infalível e pretensiosa, enquanto o país rasteja para se agarrar às últimas posições de todas as estatísticas, de todos os índices, de todas as pesquisas que avaliam níveis de educação.

É fácil construir um túnel de livros, criar impacto numa mídia sedenta de impacto e se dizer benfeitor da cultura. O difícil é, com giz e lousa, sob o sol e a chuva, no verão e no inverno, na caatinga, na Amazônia ou sob uma árvore raquítica no quintal de casa, ser professor, formar uma nova geração, preparar bons leitores de Machado. Isso ninguém quer fazer – e os que fazem, os que realmente se dedicam a educar, para esses não há Lei Rouanet, mas só o minguado contracheque.

É realmente irônico, machadiano demais, que a salvação literária nacional seja oferecida ao povo por meio de um alienista. Alienista de roupinha puída, doutorzinho medíocre, de poucas luzes, perfeito para os burros doidos deste país.

Mas não deixemos que a ironia nos engane. No substrato dessa proposta, na base de um Estado que acolhe e ajuda a financiar tal projeto, só há vulgaridade. Ortega y Gasset estava, desgraçadamente, certo: a vulgaridade tornou-se um direito – e domina toda a vida pública.

maio 15, 2014

Flávio Morgenstern contra o falso iludido contente

“Estou chocado!”, repete o opositor de Flávio Morgenstern no debate. É a reação do típico intelectual esquerdista: finge indignação; conhece a verdade, mas prefere escondê-la sob o discurso faccioso, sempre pronto à exaltação do regime e da ideologia a que serve.

Poderia ser apenas a reencarnação do Dr. Pangloss, mas não: mentir tantas vezes, distorcer os fatos repetidamente, torna-se uma segunda pele. No fim, ele já não sabe a diferença entre mentira e verdade – e se transforma no que chamo de falso iludido contente.

Vejam o debate. E constatem: nem mesmo altas doses de realismo conseguem arrancar desses fantasistas profissionais um renovador minuto de honestidade.

maio 10, 2014

Hugo von Hofmannsthal no Estábulo de Áugias

A obra de arte

Cada verdadeira obra de arte é a planta do único templo que existe na Terra.

Qual voz o escritor seguirá?

Para aquele que produz não há nenhuma prova mais séria do que procurar reconhecer se o que, de um passo para outro, o coage e previne é o seu verdadeiro gênio ou a voz pusilânime das suas influências: se, ao adquirir a forma, obedece ao que nele há de mais elevado ou de mais baixo.

O absurdo inominável

A função da obra poética é proceder à depuração, estruturação, articulação do material da vida. Na vida reina o absurdo abominável, um furor horrível da matéria – por hereditariedade, coação interior, estupidez, maldade, vileza que no íntimo se radica –, no domínio espiritual uma desordem e inconsistência até ao inacreditável – este é o estábulo de Áugias que tem de ser limpo continuamente e quer ser transformado num templo.

Ir além de si próprio

As pessoas exigem que uma obra poética fale com elas, lhes diga qualquer coisa, com elas se familiarize. Porém, as obras de arte superiores não fazem isso, assim como a Natureza também não se familiariza com as pessoas; a obra está aí e leva o homem para além de si próprio – se ele estiver concentrado e pronto para isso.

Obedecer a que público?

O paradoxo da existência literária é que o público da época deseja uma alimentação diferente da que reclama o público sobreepocal.

maio 09, 2014

O pão de cada dia

Em março de 2009, neste blog, falei sobre o texto de dois críticos que atuavam em campos diferentes do meu: Luiz Américo Camargo, na gastronomia, e Lauro Machado Coelho, na música erudita.

O que afirmei na época continua valendo: ambos recusam o discurso dúbio – a crítica ambígua sempre esconde covardia intelectual – e seus textos são destituídos da empáfia, cada vez mais comum, de quem pretender criar um novo gênero literário, quase sempre carregado de linguagem hermética.

Lauro, infelizmente, não escreve há bom tempo. Mas Luiz Américo continua a presentear os leitores com seu texto leve, sem metáforas excêntricas e, o principal, sem medo de avaliar, de forma clara e isenta, os restaurantes que visita.

Críticos assim não devem permanecer confinados à página do jornal; seus trabalhos merecem um número crescente de leitores. Foi, portanto, uma agradável surpresa descobrir que Luiz Américo lançou o primeiro livro. Agradável por dois motivos: primeiro, porque minha mulher e eu gostamos de cozinhar; fomos criados por mães, avós e bisavós que cultuavam os bons pratos e as receitas familiares, de geração a geração. Nossas cozinhas sempre foram um espaço de convivência fraternal e descobrimos nelas, todos os dias, alguma forma de alegria. E o segundo motivo: o livro de Luiz trata do alimento que é a síntese da nossa cultura: o pão.

Não me aprofundarei aqui em simbolismos – e não listarei as dezenas de lembranças que explodem na minha memória quando sinto o perfume dos pães que acabam de sair do forno. Seria repisar sensações comuns, conhecidas por todos. Mas é exatamente aí que nasce a importância do livro de Luiz Américo: falar de algo que, sob uma aparência trivial, esconde a base da civilização.

Acrescente-se a esses fatores o saboroso texto do autor – vejam, por exemplo, a crônica “As mãos sujas”, em que ele mescla existencialismo à arte de fazer os próprios fermentos – e teremos um livro que, além de todos esses prazeres, tem a delicadeza de nos ensinar a fazer o pão de cada dia.

maio 07, 2014

Tediosa floresta — Gastão Cruls e “A Amazônia misteriosa”

Analiso, no Rascunho deste mês, o romance que Gastão Cruls escreveu inspirado em A ilha do Dr. Moreau, de H. G. Wells. Este é um trecho do meu texto:

O que não seria problema nas mãos de um bom escritor transforma-se, na pena de Gastão Cruls, em obstáculo intransponível: o livro foi escrito sem que ele conhecesse o Norte do país, a não ser “através de numerosa e selecionada bibliografia”, diz a nota da Editora José Olympio; seu primeiro contato com a Amazônia só ocorre em 1928, quando acompanha a expedição do Marechal Rondon à fronteira do Brasil com a Guiana Holandesa, atual Suriname.

Seu apego à bibliografia — e não à sua capacidade de fantasiar; o desejo de escrever uma obra que fosse réplica da floresta — e não exercício de verossimilhança; a aflição evidente de transpor para o livro cada mínimo elemento amazônico, atribuindo-lhe seu nome específico; tudo contribui para a criação de uma narrativa artificial, que obriga o leitor ao exercício de consultar, página a página, o “Elucidário”, formado por cerca de 250 palavras. Usar a expressão “o lago estava saru”, por exemplo, é condenar a um vazio mental o leitor que não domina os regionalismos.

— A íntegra do ensaio está disponível no website do Rascunho.

maio 06, 2014

Reminiscências do mundo dos sonhos

Para onde nos levam os sonhos? Ao caminharmos, indefesos, nessas trilhas de símbolos, seguimos para que estranho, desconhecido país?

O mundo onírico é mais do que a tela na qual se projetam desejos que anseiam por se realizar. Cada sonho guarda um convite ao autoconhecimento; cada viagem empreendida ao subterrâneo da mente esconde um sinal que, às vezes repetitivo, insiste no sentido de desvendarmos nosso eu.

Assim, quando acordo e percebo que a memória preserva o itinerário da viagem noturna, acalento essas lembranças – talvez fragmentadas – como se formassem o mapa de uma aventura que clama por ser reconstituída; tarefa que, realizada pela mente em vigília, pode oferecer o tesouro – quem sabe inominável segredo – escondido em algum ponto de chegada. Procuro, então, revisitar, durante o dia – e, muitas vezes, esforçando-me por continuar a fazê-lo nos dias seguintes, quando pressinto que a lembrança do sonho já se esvai –, as mesmas etapas noturnas, como o menino que, encontrando no caminho à sua frente as pegadas de um adulto, tentasse colocar seus pés, passo a passo, nas marcas deixadas na terra, que ele só consegue alcançar com grande esforço.

Há algumas noites, depois de longa conversa com minha mulher sobre o processo de criação de alguns textos, enveredei mais uma vez, durante o sono, para o meu labirinto pessoal. Deparei-me comigo, ainda criança: um menino de nove ou dez anos. Freqüentava uma escola dirigida por religiosas e, naquela manhã, chegando com outras crianças para a aula, percebi que o centro da escada de metal, por onde subíamos para entrar nas classes, fora retirado. Alcançando determinado degrau, eu tentava pular o vão que me levaria à parte superior da escada, mas meus esforços eram inúteis. Desci, então, resolvido a buscar um atalho, pois a aula começaria em poucos minutos. Nesse momento, uma freira se aproximou de mim e, demonstrando conhecer minha dificuldade, instruiu-me sobre o caminho alternativo. Mais trabalhoso, disse-me ela, com o sorriso que revelava a promessa de uma opção agradável, prazerosa. Eu deveria sair do prédio, orientou-me a irmã, circundá-lo, encontrar a fonte existente em algum ponto do terreno, mergulhar nela, atravessar a nado um trecho submerso e voltar à tona mais à frente, quando encontraria a entrada para a classe. Aceitei as orientações e, mesmo notando a existência de outra escada, esta semelhante à do sobrado em que passei minha infância, decidi seguir em frente. Cruzo o longo gramado que ladeia o prédio e encontro-me diante de uma fonte circular, na qual mergulho sem hesitação. Lá, sob a água cristalina e iluminada, em um espaço surpreendentemente amplo, deparei-me com o cenário deslumbrante: no centro havia uma coluna formada por outra qualidade de água, ainda mais transparente e mais luminosa do que aquela onde me encontrava; e por essa coluna subiam, rumo à superfície, exemplares – animados e inanimados – de tudo o que compõe a realidade. Esse conjunto imensurável vinha de uma região subterrânea, e cada exemplar demorava-se alguns segundos à minha frente, para depois continuar em sua rota ascendente. Alegremente atônito, deixei-me ficar ali, esquecido das aulas, maravilhado com o espetáculo. E foi com inigualável sentimento de completude que acordei.

Ainda sentado na cama, meus pensamentos dividiam-se entre buscar uma explicação para o sonho e, ao mesmo tempo, rememorá-lo sem perder os detalhes. Finalmente, poucos minutos depois, antes de iniciar os afazeres do dia, enquanto ainda concatenava minhas idéias, não sei quais associações fizeram-me lembrar do poema de Eugenio Montale:

Talvez uma manhã andando num ar de vidro,
voltando-me, verei cumprir-se o milagre:
o nada às minhas costas, detrás de mim
o vazio, como um terror de bêbedo.


Depois como numa tela, acamparão de um jato

árvores casas colinas para a ilusão costumeira.
Mas será tarde já; e eu partirei calado
entre os homens que não se voltam, com o meu segredo.


Com o livro de Montale aberto, meu primeiro pensamento dava-me a certeza de que a verdade não estava nas aulas que assistiria, se tivesse conseguido saltar de um trecho a outro da escada. A verdade jamais esteve no ambiente repressivo da classe de aula, com suas filas de carteiras paralelas e professores, a maioria deles, incapazes de me mostrar o que subsistia para além da lição diária. A quase alegria com que percebi a ausência dos degraus e o sentimento de inevitável necessidade de buscar outro caminho deflagraram a certeza de que eu não voltaria ali, de que uma experiência singular me aguardava. É certo: a verdade, sempre encontrei-a em outro lugar, oposto àquele apontado pela escola.


Foi fácil, portanto, recusar inclusive a segunda escada. Sua semelhança com a que existira na casa onde passei minha infância deixou-me desconfiado. E a repentina solução para um problema que, há poucos segundos, apresentava-se insuperável, contribuiu para que eu me afastasse dali, desprezando o atalho, movido pelo desejo de conhecer o ignorado.


Certamente não era à toa que as vestes da religiosa – notei bem enquanto ela me falava – refulgiam em um branco tão ofuscante quanto o que encontrei difuso na atmosfera do pátio gramado; e que, depois, se repetiria sob a água. Como se eu vivesse a manhã envolta no “ar de vidro” de Montale, empenhei-me naquela jornada, sob uma luz insólita e, em breve, com um novo olhar.


A intensa claridade abarca, de fato, esse sonho, tornando-o um rito de passagem no qual o cenário se impregna do branco como nos rituais de batismo. Todas as cores estão reunidas sob a alvura, a tonalidade que marca o amanhecer, quando a aurora reveste os seres, a vida, dessa coloração que nos prepara a um novo começo, desperta-nos da letargia noturna e nos estimula ao enfrentamento da existência. O branco está associado ao reinício, ao recomeço, ao renascimento que se segue à noite, à morte. Eu abandonava a penumbra fria do prédio escolar para ser impregnado pela luz, envolvido por uma claridade que chegava a ofuscar minha vista; mergulhava na fonte, onde a luz fundia-se à água, esta também um símbolo de regeneração. E o fazia não em qualquer lugar, não em um lago estagnado ou num mar tormentoso, mas sob as águas de uma imponente fonte circular; ela também, recordo-me, toda branca, agitando a água de forma inesgotável.


Ali, de volta ao começo, de volta ao elemento no qual tudo teve origem, vislumbrei o centro por onde passam as coisas e de onde elas convergem à vida. No centro do líquido translúcido conheci os elementos da realidade em sua forma original, primeva, quando ainda não estão nomeados, quando ainda não foram classificados e diminuídos pelo homem.


Mas, imerso na transparência, equilibrando-me sob a pressão da água, não apenas os elementos da vida mostravam-se novos. Eu também havia retornado à infância, quando tudo está por ser descoberto. E sentia-me – espectador e personagem do meu sonho – como se pudesse, a partir daquele momento, reiniciar minha trajetória e buscar o que, por acaso, houvesse perdido.


Meu sonho foi, logo, diferente do vivenciado por Montale, pois se o poeta vislumbrou o terror que se esconderia sob o que parece ser o real – para ele, o vazio, o nada –, eu me aproximei do reinício de tudo e percebi o oposto: a urgência de captar a verdadeira face da realidade.


Terminado o sonho, pressenti também ser tarde para retornar à mesmice da carteira escolar e das receitas oferecidas pelos homens que jamais “se voltam”. Talvez exatamente por essa razão tenha relembrado, ao acordar, o poema de Montale: porque, assim como ele, a partir daquele sonho – e em todas as manhãs, esforçando-me para repetir o ritual onírico de maneira consciente – eu devesse calar-me “entre os homens que não se voltam”, entre os homens que não sabem olhar, e carregar comigo “o meu segredo”...


A mensagem, certamente há muito dentro de mim, mas galvanizada pelo sonho, repete-me a necessidade de transpassar o real banalizado, esforçando-me por redescobrir a verdade das coisas. O sonho me diz que meu olhar deve despir a realidade da camada de fantasia que lhe pespegamos diariamente; que devo reiniciar meu exercício de observação a cada momento, a fim de redescobrir, sob a mesmice do cotidiano, o caráter inusitado do real.


Esta é a revelação do mundo onírico: devo obrigar-me a enxergar a realidade a partir do seu centro, de onde ela desborda para o que é habitual – resgatar a verdade preservada em cada elemento, seja ela trágica ou pueril, inocente ou terrível.


De todos os enigmas que a noite e o sono semeiam, de todos os sonhos que carrego comigo – um patrimônio que cabe à lucidez decifrar –, dessas imagens noturnas que sobrevivem durante a vigília, esta que acabo de descrever insufla em minha consciência também uma pergunta: o que será daquela criança, embevecida frente à coluna de luz e água por onde passa o universo? Ela não deveria retornar ao pátio gramado, ao convívio dos homens, e ali, dona agora dessa nova forma de olhar, dessa visão que lhe parece inaudita, transmitir os frutos da sua descoberta? Ou, como Montale, resta-lhe apenas viver solitária entre os homens, carregando o seu segredo?


Tal possibilidade, contudo, assemelha-se à segunda escada que surge em meu sonho, pois oferece uma facilidade ilusória. Se a conclusão de Montale à sua angústia é o poema – e não o silêncio –, então ele desejou oferecer aos homens uma tocha capaz de iluminar o desconhecido e diminuir a incerteza que, a cada esquina, nos aguarda.


Da mesma forma, estas linhas são uma pergunta e, também, sua própria resposta. Por meio delas retorno ao pátio ensolarado e busco meus semelhantes, disposto não a lhes denunciar, com pessimismo, a “ilusão costumeira” de Montale, mas pronto a redescobrir o real. E, principalmente, esforçar-me por revelá-lo com o vigor esquecido pela maioria.