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junho 15, 2012

Inveni cor meum


Livrei-me do inverno de minha alma há dois anos. E da escuridão. E também de certa perplexidade angustiada, de quem olha o mundo, as pessoas e diz a si mesmo que não é possível que tudo seja, ao final, apenas vazio, apenas nada. E que estrela após estrela, cada vez mais longe na viagem noturna, reste apenas um antifinal, vazio ininterrupto. Noite após noite, com a insônia vencida graças à antiga oração – a mesma que ouvia meu pai balbuciar em seu quarto –, desfolhei as camadas do mistério, adentrei os cômodos empoeirados, subi a pequena escada suja, repleta de insetos mortos, e encontrei meu coração. Inveni cor meum. Ele palpitava à minha frente, minúsculo, frágil, infartado. Escondido na urna que queimava sem se consumir. Guardaste meu coração, Senhor, em Teu coração. Guardaste meu segredo em Teu segredo. Escondeste a minha dor na Tua imorredoura piedade pelos homens. Então me ofereceste o centro da minha vida, que já não era mais meu, que já não batia mais por minha vontade ou graças ao pulsar do meu sangue, mas era agora parte de Ti. Ou me resignava ao vazio – ou aceitava o Teu dom, que ainda era eu, mas estava longe de ser o que eu fora, pois já se consumia, sem que eu soubesse, no fogo do Teu amor. E eu o aceitei, Senhor. O que me sustenta, então, agora também me consome. Nada mudou. Tudo mudou. E meu coração, preso ao Teu, leva-me para longe da infância, longe das ondas agitadas por todo vento de doutrina, pela artimanha dos homens e pela astúcia que conduz ao erro. Leva-me sempre, a cada manhã. E quando os ventos querem trazer-me de volta à praia repleta de escolhos, vem o Sopro, o Murmúrio de uma brisa suave – e faço-me ao largo, enquanto meu coração vibra no Teu coração, como nos dias da juventude, quando lia o romance de Conrad e rezava, solitário, na capelinha do Carmelo. Vem a cada instante, Senhor, com Teu coração que incendeia o meu, expulsando “o sangue velho dos avós” e seduzindo-me a permanecer em Ti. Inveni cor meum, ut orem Deum meum. Et ego inveni cor regis, fratris et amici benigni Jesu. Et nunquid non adorabo? Orabo utique. Cor enim illius mecum est, audacter dicam, si, imo quia caput meum Christus est.

maio 29, 2012

Immaculata ex maculatis



“Um teólogo como Bento XVI é totalmente consciente de que a Igreja foi, é e será sempre, como diziam os Padres, ‘immaculata ex maculatis’: sem mancha em seu Mistério, que é o próprio Cristo, e, com frequência, demasiado suja em seu envoltório institucional, composta por homens a quem os sacramentos não transformaram em santos. O Papa sabe bem que a Pessoa da Igreja não deve ser confundida com seu pessoal.”

maio 01, 2012

O segredo do Papa Ratzinger


“À fé nula ou escassa de tantos homens de hoje, nas missas banalmente reduzidas a abraços da paz e assembleias solidárias, o papa Bento XVI oferece a fé substancial em um Deus que se faz realmente próximo, que se deixa tocar e comer.”

(Para aqueles que desejarem, em espanhol, a íntegra do artigo de Sandro Magister.)

abril 28, 2012

A ditadura do pensamento débil e a Igreja


“Sua mera existência [da Igreja Católica] como ‘metarrelato’, como visão densa do mundo, que utiliza ainda um conceito forte de verdade objetiva, resulta intolerável numa atmosfera intelectual presidida pelo pensamento débil, pela desconstrução pós-moderna, pela ‘ditadura do relativismo’ e pela convicção de que a crença em absolutos é sinônimo de fundamentalismo e intolerância.”

(in Nueva izquierda y Cristianismo, de Francisco José Contreras y Diego Poole)

abril 27, 2012

A dissidência, a fé dos simples e o neoclericalismo

Ótimo artigo do vaticanista Andrea Tornielli, publicado em Vatican Insider. Serve como uma luva a grande parte do mundo eclesiástico brasileiro, incluindo os teólogos esquerdistas.

abril 24, 2012

Só uma coisa é sempre mortal


“Quando, depois de muitas mortes, morremos pela última vez, então nesse ato de vida suprema a existência deixou de morrer. Só uma coisa é sempre mortal: não querer morrer enquanto se vive. Toda morte realizada voluntariamente é origem de vida.”
—        Hans Urs von Balthasar

abril 19, 2012

Quando o sal ganha verdadeiro sabor – 7 anos de pontificado


Para comemorar o 7º ano do pontificado de Bento XVI, publico, a seguir, um trecho de sua homilia na Praça Terreiro do Paço de Lisboa, no dia 11 de maio de 2010:

Sabemos que não lhe faltam filhos insubmissos e até rebeldes, mas é nos Santos que a Igreja reconhece os seus traços característicos e, precisamente neles, saboreia a sua alegria mais profunda. Irmana-os, a todos, a vontade de encarnar na sua existência o Evangelho, sob o impulso do eterno animador do Povo de Deus que é o Espírito Santo. Fixando os seus Santos, esta Igreja local concluiu justamente que a prioridade pastoral hoje é fazer de cada mulher e homem cristão uma presença irradiante da perspectiva evangélica no meio do mundo, na família, na cultura, na economia, na política. Muitas vezes preocupamo-nos afanosamente com as consequências sociais, culturais e políticas da fé, dando por suposto que a fé existe, o que é cada vez menos realista. Colocou-se uma confiança talvez excessiva nas estruturas e nos programas eclesiais, na distribuição de poderes e funções; mas que acontece se o sal se tornar insípido?

Para isso é preciso voltar a anunciar com vigor e alegria o acontecimento da morte e ressurreição de Cristo, coração do cristianismo, fulcro e sustentáculo da nossa fé, alavanca poderosa das nossas certezas, vento impetuoso que varre qualquer medo e indecisão, qualquer dúvida e cálculo humano. A ressurreição de Cristo assegura-nos que nenhuma força adversa poderá jamais destruir a Igreja. Portanto a nossa fé tem fundamento, mas é preciso que esta fé se torne vida em cada um de nós. Assim há um vasto esforço capilar a fazer para que cada cristão se transforme em testemunha capaz de dar conta a todos e sempre da esperança que o anima (cf. 1 Pd 3, 15): só Cristo pode satisfazer plenamente os anseios profundos de cada coração humano e responder às suas questões mais inquietantes acerca do sofrimento, da injustiça e do mal, sobre a morte e a vida do Além.

abril 16, 2012

A reconquista da alegria


Pensamentos de Bento XVI extraídos do excelente artigo de Andrea Monda, “Un Papa raro: con ‘sentido del humor’”:

“Toda a minha vida está atravessada sempre por um fio condutor que é o seguinte: o cristianismo da alegria alarga os horizontes.”

“Se hoje a humildade foi desacreditada como virtude, não será de todo supérfluo observar que esse descrédito coincide com a grande regressão da alegria na literatura e na filosofia contemporâneas.”

“O elemento constitutivo do cristianismo é a alegria. Alegria não no sentido de uma diversão superficial, cujo fundo pode ser também a desesperação.”

“A alegria é o signo da graça. Quem está profundamente sereno, quem sofreu sem por isso perder a alegria, esse não está longe do Deus do Evangelho, do Espírito de Deus, que é o Espírito da alegria eterna.”

abril 13, 2012

É pouco, CNBB, muito pouco

Não basta uma Nota Oficial – tímida, burocrática e meramente protocolar –, senhores bispos. Não basta uma Nota Oficial que ninguém lê. Queremos ouvi-los clamando nos altares, denunciando em alta e indignada voz nas praças públicas, nos jornais, nas rádios, na Internet. Queremos ver, ouvir e participar da indignação dos senhores e de toda a Igreja. Queremos nos sentir verdadeiramente amparados e defendidos por nossos pastores. Queremos vê-los e ouvi-los agindo, à luz do dia, segundo a exortação de São Paulo: “Não vos conformeis com este mundo” (Rm 12, 2). Façam mais pela verdade, senhores bispos! Façam mais pela vida! 

abril 05, 2012

A homilia que será lembrada para sempre


Na história da Igreja Católica, poucas vezes um papa investiu, em suas homilias, contra um problema específico – e de forma clara, objetiva, sem usar recursos metafóricos. O Beato João Paulo II inaugurou, no século XX, o uso desse discurso direto, chegando a, em algumas oportunidades, admoestar publicamente os que se encontravam no caminho do erro.

Hoje, durante a Santa Missa Crismal, Bento XVI, movido pelo Espírito Santo, pleno de lucidez teológica e amor paternal, respondeu não só ao “Chamado à desobediência” dos padres austríacos, mas também àqueles que, pertencentes à Igreja Universal, semeiam a cizânia, a confusão entre os fieis, difundindo uma teologia “mais voluntariosa que iluminada, inteiramente dedicada à árdua e improvável tarefa de salvar, através de suas próprias categorias, a Jesus Cristo e Sua Palavra”, como bem afirmou, com evidente ironia, Dom Francesco Moraglia, o novo Patriarca de Veneza.

Chamando o clero à obediência, ao abandono do secularismo e do comportamento laxista – aliás, tão comum entre padres e bispos brasileiros –, Bento XVI foi claro: “[...] A configuração a Cristo é o pressuposto e a base de toda a renovação. [...] Os Santos indicam-nos como funciona a renovação e como podemos servi-la. E fazem-nos compreender também que Deus não olha para os grandes números nem para os êxitos exteriores, mas consegue as suas vitórias sob o sinal humilde do grão de mostarda”. De fato, como dizia o Beato Cardeal John Henry Newman, “a crítica à Igreja sem disposição de obedecer resulta necessariamente estéril”.

Mais que uma crítica clara aos que desejam revolucionar a Igreja e lutam abertamente contra a Santa Tradição e o Magistério, as palavras de Bento XVI são um apelo a que toda a hierarquia eclesial retome o “zelo das almas”: “Não se faça a minha vontade, mas a tua: esta é a palavra que revela o Filho, a sua humildade e conjuntamente a sua divindade, e nos indica a estrada”.

Abaixo, segue o texto integral da homilia:

Amados irmãos e irmãs!

Nesta Santa Missa, o nosso pensamento volta àquela hora em que o Bispo, através da imposição das mãos e da oração consacratória, nos integrou no sacerdócio de Jesus Cristo, para sermos «consagrados na verdade» (Jo 17, 19), como Jesus pediu ao Pai na sua Oração Sacerdotal. Ele mesmo é a Verdade. Consagrou-nos, isto é, entregou-nos para sempre a Deus, a fim de que, a partir de Deus e em vista d’Ele, pudéssemos servir os homens. Mas somos também consagrados na realidade da nossa vida? Somos homens que atuam a partir de Deus e em comunhão com Jesus Cristo? Com esta pergunta, o Senhor está diante de nós, e nós diante d’Ele. «Quereis viver mais intimamente unidos a Cristo e configurar-vos com Ele, renunciando a vós mesmos e permanecendo fiéis aos compromissos que, por amor de Cristo e da sua Igreja, aceitastes alegremente no dia da vossa Ordenação Sacerdotal?» Tal é a pergunta que, depois desta homilia, será dirigida singularmente a cada um de vós e a mim mesmo. Nela, são pedidas sobretudo duas coisas: uma união íntima, mais ainda, uma configuração a Cristo e, condição necessária para isso mesmo, uma superação de nós mesmos, uma renúncia àquilo que é exclusivamente nosso, à tão falada autorrealização. É-nos pedido que não reivindique a minha vida para mim mesmo, mas a coloque à disposição de outrem: de Cristo. Que não pergunte: Que ganho eu com isso? Mas sim: Que posso eu doar a Ele e, por Ele, aos outros? Ou mais concretamente ainda: Como se deve realizar esta configuração a Cristo, que não domina mas serve, não toma mas dá. Como se deve realizar na situação tantas vezes dramática da Igreja de hoje? Recentemente, num país europeu, um grupo de sacerdotes publicou um apelo à desobediência, referindo ao mesmo tempo também exemplos concretos de como exprimir esta desobediência, que deveria ignorar até mesmo decisões definitivas do Magistério, como, por exemplo, na questão relativa à Ordenação das mulheres, a propósito da qual o beato Papa João Paulo II declarou de maneira irrevogável que a Igreja não recebeu, da parte do Senhor, qualquer autorização para o fazer. Será a desobediência um caminho para renovar a Igreja? Queremos dar crédito aos autores deste apelo quando dizem que é a solicitude pela Igreja que os move, quando afirmam estar convencidos de que se deve enfrentar a lentidão das Instituições com meios drásticos para abrir novos caminhos, para colocar a Igreja à altura dos tempos de hoje. Mas será verdadeiramente um caminho a desobediência? Nela pode-se intuir algo daquela configuração a Cristo que é o pressuposto para toda a verdadeira renovação, ou, pelo contrário, não é apenas um impulso desesperado de fazer qualquer coisa, de transformar a Igreja segundo os nossos desejos e as nossas ideias?

Mas o problema não é assim tão simples. Porventura Cristo não corrigiu as tradições humanas que ameaçavam sufocar a palavra e a vontade de Deus? É verdade que o fez, mas para despertar novamente a obediência à verdadeira vontade de Deus, à sua palavra sempre válida. O que Ele tinha a peito era precisamente a verdadeira obediência, contra o arbítrio do homem. E não esqueçamos que Ele era o Filho, com a singular autoridade e responsabilidade de desvendar a autêntica vontade de Deus, para deste modo abrir a estrada da palavra de Deus rumo ao mundo dos gentios. E, por fim, Ele concretizou o seu mandato através da sua própria obediência e humildade até à Cruz, tornando assim credível a sua missão. Não se faça a minha vontade, mas a tua: esta é a palavra que revela o Filho, a sua humildade e conjuntamente a sua divindade, e nos indica a estrada.

Deixemo-nos interpelar por mais uma questão: Não será que, com tais considerações, o que na realidade se defende é o imobilismo, a rigidez da tradição? Não! Quem observa a história do período pós-conciliar pode reconhecer a dinâmica da verdadeira renovação, que frequentemente assumiu formas inesperadas em movimentos cheios de vida e que tornam quase palpável a vivacidade inexaurível da santa Igreja, a presença e a ação eficaz do Espírito Santo. E se olharmos para as pessoas de quem dimanaram, e dimanam, estes rios pujantes de vida, vemos também que, para uma nova fecundidade, se requer o transbordar da alegria da fé, a radicalidade da obediência, a dinâmica da esperança e a força do amor.

Queridos amigos, daqui se vê claramente que a configuração a Cristo é o pressuposto e a base de toda a renovação. Mas talvez a figura de Cristo nos apareça por vezes demasiado alta e grande para podermos ousar tomar as suas medidas. O Senhor sabe-o. Por isso providenciou «traduções» em ordens de grandeza mais acessíveis e próximas de nós. Precisamente por este motivo, São Paulo resolutamente diz às suas comunidades: Imitai-me, mas eu pertenço a Cristo. Ele era para os seus fiéis uma «tradução» do estilo de vida de Cristo, que eles podiam ver e à qual podiam aderir. A partir de Paulo e ao longo de toda a história, existiram continuamente tais «traduções» do caminho de Jesus em figuras históricas vivas. Nós, sacerdotes, podemos pensar numa série imensa de sacerdotes santos que vão à nossa frente para nos apontar a estrada, a começar por Policarpo de Esmirna e Inácio de Antioquia, passando por grandes Pastores como Ambrósio, Agostinho e Gregório Magno, depois Inácio de Loiola, Carlos Borromeu, João Maria Vianney, até chegar aos sacerdotes mártires do século XX e, finalmente, ao Papa João Paulo II, que, na acção e no sofrimento, nos serviu de exemplo na configuração a Cristo, como «dom e mistério». Os Santos indicam-nos como funciona a renovação e como podemos servi-la. E fazem-nos compreender também que Deus não olha para os grandes números nem para os êxitos exteriores, mas consegue as suas vitórias sob o sinal humilde do grão de mostarda.

Queridos amigos, queria ainda, brevemente, acenar a duas palavras-chave da renovação das promessas sacerdotais, que deveriam induzir-nos a refletir nesta hora da Igreja e da nossa vida pessoal. Em primeiro lugar, é-nos recordado o facto de sermos – como se exprime Paulo - «dispensadores dos mistérios de Deus» (1 Cor 4, 1) e que nos incumbe o ministério de ensinar, o (munus docendi), que constitui precisamente uma parte desta distribuição dos mistérios de Deus, onde Ele nos mostra o seu rosto e o seu coração, para Se dar a Si mesmo. No encontro dos Cardeais por ocasião do recente Consistório, diversos Pastores, baseando-se na sua experiência, falaram dum analfabetismo religioso que cresce no meio desta nossa sociedade tão inteligente. Os elementos fundamentais da fé, que no passado toda e qualquer criança sabia, são cada vez menos conhecidos. Mas, para se poder viver e amar a nossa fé, para se poder amar a Deus e, consequentemente, tornar-se capaz de O ouvir corretamente, devemos saber aquilo que Deus nos disse; a nossa razão e o nosso coração devem ser tocados pela sua palavra. O Ano da Fé, a comemoração da abertura do Concílio Vaticano II há 50 anos, deve ser uma ocasião para anunciarmos a mensagem da fé com novo zelo e nova alegria. Esta mensagem, na sua forma fundamental e primária, encontramo-la naturalmente na Sagrada Escritura, que não leremos nem meditaremos jamais suficientemente. Nisto, porém, todos sentimos necessidade de um auxílio para a transmitir rectamente no presente, de modo que toque verdadeiramente o nosso coração. Este auxílio encontramo-lo, em primeiro lugar, na palavra da Igreja docente: os textos do Concílio Vaticano II e o Catecismo da Igreja Católica são os instrumentos essenciais que nos indicam, de maneira autêntica, aquilo que a Igreja acredita a partir da Palavra de Deus. E naturalmente faz parte de tal auxílio todo o tesouro dos documentos que o Papa João Paulo II nos deu e que está ainda longe de ser cabalmente explorado.

Todo o nosso anúncio se deve confrontar com esta palavra de Jesus Cristo: «A minha doutrina não é minha» (Jo 7, 16). Não anunciamos teorias nem opiniões privadas, mas a fé da Igreja da qual somos servidores. Isto, porém, não deve naturalmente significar que eu não sustente esta doutrina com todo o meu ser e não esteja firmemente ancorado nela. Neste contexto, sempre me vem à mente o seguinte texto de Santo Agostinho: Que há de mais meu do que eu próprio? E no entanto que há de menos meu do que o sou eu mesmo? Não me pertenço a mim próprio e torno-me eu mesmo precisamente pelo facto de me ultrapassar a mim próprio e é através da superação de mim próprio que consigo inserir-me em Cristo e no seu Corpo que é a Igreja. Se não nos anunciamos a nós mesmos e se, intimamente, nos tornamos um só com Aquele que nos chamou para sermos seus mensageiros de tal modo que sejamos plasmados pela fé e a vivamos, então a nossa pregação será credível. Não faço publicidade de mim mesmo, mas dou-me a mim mesmo. Como sabemos, o Cura d’Ars não era um erudito, um intelectual. Mas, com o seu anúncio, tocou os corações das pessoas, porque ele mesmo fora tocado no coração.

A última palavra-chave, a que ainda queria aludir, designa-se zelo das almas (animarum zelus). É uma expressão fora de moda, que hoje já quase não se usa. Nalguns ambientes, o termo «alma» é até considerado como palavra proibida, porque – diz-se – exprimiria um dualismo entre corpo e alma, cometendo o erro de dividir o homem. Certamente o homem é uma unidade, destinada com corpo e alma à eternidade. Mas isso não pode significar que já não temos uma alma, um princípio constitutivo que garante a unidade do homem durante a sua vida e para além da sua morte terrena. E, enquanto sacerdotes, preocupamo-nos naturalmente com o homem inteiro, incluindo precisamente as suas necessidades físicas: com os famintos, os doentes, os sem-abrigo; contudo, não nos preocupamos apenas com o corpo, mas também com as necessidades da alma do homem: com as pessoas que sofrem devido à violação do direito ou por um amor desfeito; com as pessoas que, relativamente à verdade, se encontram na escuridão; que sofrem por falta de verdade e de amor. Preocupamo-nos com a salvação dos homens em corpo e alma. E, enquanto sacerdotes de Jesus Cristo, fazemo-lo com zelo. As pessoas não devem jamais ter a sensação de que o nosso horário de trabalho cumprimo-lo conscienciosamente, mas antes e depois pertencemo-nos apenas a nós mesmos. Um sacerdote nunca se pertence a si mesmo. As pessoas devem notar o nosso zelo, através do qual testemunhamos de modo credível o Evangelho de Jesus Cristo. Peçamos ao Senhor que nos encha com a alegria da sua mensagem, a fim de podermos servir, com jubiloso zelo, a sua verdade e o seu amor. Amém.

março 10, 2012

O meu verdadeiro destino


“A Graça é o acontecimento perante o qual o homem entende o seu destino, o seu verdadeiro destino.”

Flannery O’Connor

(Agradeço ao amigo Karleno Márcio Bocarro, que publicou a frase da escritora Flannery O’Connor em seu perfil, no Facebook.)

setembro 30, 2011

O “nós” que não faz de nós mesmos o critério absoluto

Uma coisa é estar pessoalmente com Cristo, com o Deus vivo; a outra é que temos possibilidade de acreditar sempre e só no “nós”. Às vezes, digo que São Paulo escreveu: “A fé vem da escuta”, não da leitura. Há necessidade também de ler, mas a fé vem da escuta, isto é, da palavra viva, das palavras que os outros me dirigem a mim e que posso ouvir; das palavras da Igreja através de todos os tempos, da palavra que atualmente me dirige por meio dos sacerdotes, dos bispos e dos irmãos e das irmãs. Faz parte da fé o “tu” do próximo, e faz parte da fé o “nós”. E precisamente a exercitação no suportar-se mutuamente é muito importante; aprender a acolher o outro enquanto tal na sua diferença, e aprender que ele também deve suportar-me a mim na minha diferença, para nos tornarmos um “nós”, a fim de podermos um dia também na paróquia formar uma comunidade, chamar as pessoas para entrarem na comunhão da Palavra e caminharem juntas para o Deus vivo. Faz parte disto o “nós” muito concreto que é o Seminário, como o será a paróquia, mas sempre também o olhar para mais além do “nós” concreto e limitado, ou seja, para o grande “nós” da Igreja de todo o lugar e de todo o tempo, a fim de não fazermos de nós mesmos o critério absoluto. Quando dizemos “nós somos Igreja”, dizemos certamente a verdade: somos nós, não uma pessoa qualquer. Mas o “nós” é mais amplo do que o grupo que o está dizendo. O “nós” é a comunidade inteira dos fiéis: os de hoje e os de todos os lugares e de todos os tempos. E não me canso de repetir ainda: é verdade que, na comunidade dos fiéis, existe por assim dizer o juízo da maioria efetiva, mas não pode jamais haver uma maioria contra os Apóstolos e contra os Santos: isso seria uma maioria falsa. Nós somos Igreja. Pois bem, sejamo-lo! Sejamo-lo precisamente no abrirmo-nos ultrapassando-nos a nós mesmos e no estarmos juntos com os outros.

Bento XVI, em sua recente viagem à Alemanha.

agosto 13, 2011

Recuperar Ernest Hello


Crítico de Ernest Renan e René Descartes, Ernest Hello (1828-1885) é um nome infelizmente pouco lembrado nos dias de hoje. Filósofo, ensaísta, crítico literário, biógrafo e tradutor (de Ângela de Foligno e Van Ruysbroeck), foi influenciado por Barbey d'Aurevilly e por São João Maria Batista Vianney, o Cura d’Ars, a quem conheceu pessoalmente e que dele diria: “Monsieur Hello a reçu de Dieu le génie”.

Ernest Hello marcou o pensamento de Leon Bloy (que o considerava seu mestre), Georges Bernanos, Paul Claudel e vários outros. Foi depois de ler seu livro O Homem que Garrigou-Lagrange decidiu abandonar a medicina e ingressar na Ordem dos Dominicanos, tornando-se, mais tarde, notável filósofo e teólogo.

São nomes como esse que precisamos recuperar, por razões evidentes para quem é leitor deste blog.

A seguir, algumas citações atualíssimas de Hello – apenas um aperitivo, para estimular a inteligência e a sensibilidade dos amigos:   

O homem medíocre

Ao medíocre agradam-lhe os escritores que não dizem nem sim nem não sobre nenhum tema, que nada afirmam e que tratam com respeito todas as opiniões contraditórias. Toda afirmação lhe parece insolente, pois exclui a proposição contrária. Mas se alguém é um pouco amigo e um pouco inimigo de todas as coisas, o medíocre o considerará sábio e reservado, admirará sua delicadeza de pensamento e elogiará o talento das transições e dos matizes.

Para escapar da censura de intolerante, feita pelo medíocre a todos os que pensam solidamente, seria necessário se refugiar na dúvida absoluta; e, ainda nesse caso, seria preciso não chamar a dúvida pelo seu nome. É necessário formulá-la em termos de opinião modesta, que preserva os direitos da opinião oposta, tomar ares de dizer alguma coisa e não dizer nada. É preciso acrescentar a cada frase uma perífrase açucarada: “parece que”, “ousaria dizer que”, “se é permitido expressar-se assim”.

O gélido fantasma da fealdade

É importante estudar a lógica do delírio. Temos de segui-la passo a passo. Se o homem sempre tivesse associado em sua mente a beleza com o bem, a beleza continuaria sendo a beleza e o bem seguiria sendo o bem; o homem, permanecendo fiel à primeira, teria sentido, então, que permanecia fiel ao segundo. Mas, tendo o homem dito, tendo permitido aos escritores dizer que os tipos do belo deviam se encontrar ali onde o bem já não se encontrava, isto é, nos crimes audazes, nos escândalos de repercussão; que a desordem e o gênio eram a mesma coisa; havendo, pois, pensado o homem que a ideia do belo e a ideia do bem eram duas ideias contraditórias, concluiu que a ideia do belo era contraditória consigo mesma e terminou por dizer: o belo é o feio! Magnífica homenagem prestada à unidade pelos que haviam perdido a noção de unidade! Eles nos provaram que a ideia do belo, quando não está associada com a ideia da ordem, do verdadeiro, do bem, nega-se a si mesma e já não se reconhece. Eles nos provaram que quando o homem quer colocar suas mãos na beleza, desprendida da ordem, associada à ideia de desordem, a beleza que deseja alcançar escapa em eterna fuga; o objeto vacila e, na mão do homem enganado, resta o gélido fantasma da fealdade.

Crítica ao laxismo

O nome da caridade se volta contra a luz sempre que, ao invés de esmagar o erro, pactua com ele, sob o pretexto de se comportar prudentemente em relação aos homens. O nome da caridade se volta contra a luz todas as vezes em que é empregado para fraquejar na execração do mal. 

O homem transige na presença da debilidade que quer invadi-lo quando adquiriu o hábito de chamar de caridade o acomodamento universal de toda debilidade, ainda que remota.

A ausência de horror para com o erro, para com o mal, para com o Inferno, para com o demônio, esta ausência parece que chega a ser uma desculpa para o mal que cada um leva em si mesmo. Quanto menos se detesta o mal em si mesmo, mais se prepara um meio de desculpar o que se acaricia na própria alma.

agosto 10, 2011

Reflexões sobre o católico escritor

No ensaio que escreveu sobre François Mauriac – “Mauriac?” –, Otto Maria Carpeaux, com sua característica consistência, cria não só um roteiro seguro para se conhecer as bases do pensamento desse romancista francês, mas, sopesando aspectos positivos e negativos, estabelece, de maneira indireta, as linhas mestras da ficção e do ensaísmo católicos.

De antemão afirmo que não se trata, neste texto, de colocar o problema da possibilidade de uma ficção católica brasileira contemporânea. E por um simples motivo: o tema não me preocupa, pois, sob o ponto de vista teológico, o qual não desprezo nem um pouco, “o Espírito sonda todas as coisas, até mesmo as profundidades de Deus” (1Co 2,10). Ou seja, apesar do ateísmo, do materialismo e de todos os demais “ismos” que proliferam hoje, a oportunidade de uma literatura que se pretenda católica está presente, ainda que desprezada por certa intelligentsia cínica – e fadada a cumprir, sem qualquer demérito, o papel de sal e fermento: desaparecer, mas para dar sabor e volume; para ocupar, no substrato da cultura, um papel talvez despercebido, mas jamais secundário.

As perguntas que me coloco são outras: de que trata uma literatura católica? Ou um ensaísmo católico? O que significa ser católico e também escritor?

Seguindo o raciocínio de Carpeaux, há um tema básico: o pecado. Por sua própria natureza, o homem vive em oposição à vontade de Deus; sua inclinação para o bem está debilitada. O senso comum, se deseja compreender esta questão, precisa abandonar a ideia de pecado enquanto mera desobediência a preceitos religiosos. Para a teologia católica, o pecado é uma tendência natural, um “hábito inato”. Por razões sobre as quais não tratarei aqui, o homem tende ao mal. Assim, se o pecado é, como diz Carpeaux, “o caminho da morte e da vida”, será inevitável ao escritor católico se defrontar com esse tema.

Mas como fazê-lo? Segundo Carpeaux, com a “inquietação” de Mauriac. Mas não só. Usando de finíssima ironia, o ensaísta nos aponta o caminho: abandonar os moralismos. Ele nos dá um exemplo curioso, próprio do que ocorria quando escreveu seu texto, ao criticar aqueles que, “em meio ao incêndio da civilização cristã e à difamação do nome cristão por povos cristãos, se ocupam dos maillots na praia”. Mas também nós corremos esse perigo, apesar de não estarmos vivendo as consequências da Segunda Guerra Mundial e os maiôs já não serem novidade, visto que há sempre o risco de colocarmos “a ética antes do ser”, como afirma Bento XVI, lembrando que “o cristianismo não é um moralismo”, pois “não somos nós que temos de realizar aquilo que Deus espera do mundo, mas em primeiro lugar temos de entrar” no que o Papa chama de “mistério ontológico: Deus entrega-se a si mesmo. O seu ser, o seu amar precede o nosso agir [...]”.

Um católico, incluindo aqueles que são escritores, deve compreender que, apesar da indiscutível realidade do pecado, Deus deseja conceder ao homem um novo ser. “Esta é a grande dádiva”, diz Bento XVI, “o ser precede o agir e a partir dele segue-se, depois, o agir, como uma realidade orgânica, porque o que somos, podemos sê-lo também na nossa atividade”. É assim que Deus nos aparta do moralismo, pois ser cristão não significa apenas “obedecer a uma lei que está diante de nós, mas simplesmente [...] agir em conformidade com a nossa nova identidade”. Não se trata, portanto, de “uma obediência, algo exterior, mas sim uma realização do dom do novo ser”.

Voltando a Carpeaux, trata-se, portanto, para o ficcionista, de “resolver o problema do pecado e da graça (literariamente, não teologicamente)”, de “não desfigurar o seu cristianismo em moralismo”. Graça – ou seja, doação, pois Deus “se nos doou antecipadamente a si mesmo, entregando-nos o seu amor”, lembra o Papa.

Outro risco é “petrificar-se” no pietismo, o que Carpeaux chama de “catolicismo de fórmulas vazias”. Ele não se refere apenas à tese da superioridade da fé sobre a razão, mas àquela tendência de responder ao pecado não por meio de uma vida autenticamente evangélica, mas de uma religiosidade superficial, apegada a manifestações sentimentais.

Carpeaux também defende o abandono de quaisquer mediações: o artista deve enfrentar os problemas do seu tempo, sob pena de, recusando-se a fazê-lo, condenar-se ao laxismo (afirmação, aliás, extremamente contemporânea). Assim, nosso crítico repudia o intelectual apenas “bem-pensante”, que privilegia seu comodismo e prefere fazer concessões a se defrontar com temas espinhosos. Carpeaux, com razão, qualifica esse tipo de católico como “um abastardamento” do escritor.

Amor criativo

Em busca de escritores que sejam mais do que “filhos dos seus confessores”, Otto Maria Carpeaux demonstra ter um objetivo claro: “A própria vida, assunto do romance, é o caminho da santidade”.

Um novo elemento se adiciona, dessa forma, ao nosso raciocínio: a que se refere o crítico quando diz “santidade”? O santo é aquele que, tendo compreendido as realidades do pecado e da graça, cinge-se àquele “mistério ontológico” sobre o qual falamos acima e descobre a verdadeira alegria, que não é apenas laetitia, mas gaudium, júbilo, regozijo. “Quem se deixou sensibilizar por este mistério, que Deus se revelou, rasgou o véu do templo e mostrou o seu rosto, encontra uma fonte de alegria permanente”, diz Bento XVI.

Vejo, a partir deste ponto, uma estrada com duas vias: numa, encontro o escritor que compreende o mistério, ou que ao menos deseja desvendá-lo, e por esse motivo busca, em sua vida pessoal, a santidade – e na outra descubro o mesmo escritor, traduzindo, por meio da escrita, as quedas e recaídas do homem que, dividido entre o pecado e a graça, anseia experimentar, concretamente, a verdadeira alegria. Ocorre que este escritor é indissociável do primeiro: ele sabe, portanto, que viver na graça “é amor, amor criativo, que encontra sozinho a riqueza, a abundância do bem”, segundo o que nos ensina Bento XVI – e também por esse motivo escreve.

Mas, atenção: quando Bento XVI diz que “quanto mais repletos estivermos desta alegria de ter descoberto o rosto de Deus, tanto mais o entusiasmo do amor será autêntico em nós e produzirá fruto”, ele não se refere a uma vida desgarrada da realidade, na qual só há espaço para o arroubo místico, mas a experiências concretas – tão palpáveis quanto o ato de escrever um livro. Carpeaux tem consciência disso; e por esse motivo pode dizer, graças não só à erudição, mas principalmente movido por sua fé, que “um romance católico que pretende ignorar o pecado, é mentira” – e “um romance católico que inclui e supera o pecado, tem valor de teodiceia”, ou seja, pode defender e justificar a crença em Deus.

Humanismo cristão

Retomando a questão da santidade, o católico que é escritor deve saber – exatamente como Santa Teresa de Jesus – que “a morte dá à história a sua verdadeira medida”. É o que lemos no ensaio de Carpeaux (“A lição de uma santa”) sobre essa religiosa carmelita canonizada em 1622, a quem Paulo VI concederia, em 1970, o título de Doutora da Igreja. Teresa, ela própria sublime escritora, serve como modelo aos intelectuais católicos contemporâneos, ficcionistas ou não. Seus escritos e sua vida confirmam a abundância gratuita que nasce do “amor criativo”, seiva que o escritor, ramo da videira, sorve e distribui, repleto de alegria por ter descoberto o rosto de Deus. Não é à toa que Teresa exclama, em meio aos seus textos, “Oxalá pudesse eu escrever com muitas mãos!”.

Só intelectuais dessa estirpe podem deixar uma obra capaz de confrontar, ao longo dos séculos, heresias, modismos, miragens fabricadas pela estultícia humana. E Teresa alcançou esse objetivo exatamente por não almejar tal glória. Como acertadamente afirma Juan Marichal (La voluntad de estilo – teoría e historia del ensayismo hispánico), “em Santa Teresa opera sobretudo um princípio espiritual oposto ao de todo criador artístico: porque ela desejava testemunhar, com seus escritos, mais sua condição de criatura [grifo do autor] do que seu poder de criadora”.

“Não se dá esse rei senão a quem se entrega de todo”, dizia Santa Teresa – e foi o seu fervor que a transformou num dos melhores símbolos do que Carpeaux chama de “notável e estranha oposição do humanismo cristão”. Oposição à qual os católicos são constantemente chamados, hoje e sempre. Quando prepondera a autossuficiência humana – nada mais que um neopelagianismo –, o católico que escreve alerta para os limites do homem e sua dependência em relação a Deus. Quando a ciência pretende se tornar um novo baal, o católico que escreve recorda os milhares de crimes perpetrados em nome da razão. Quando se propagandeia o espírito revolucionário, o católico que escreve relembra os totalitarismos e se recusa a fazer da história uma tábula rasa. Quando o humanismo ateu deseja se impor, o católico que escreve clama contra a falsa ética dessa deformação do pensamento, sempre pronta a instituir o hedonismo e a egolatria como leis gerais.      

Charles Moeller, na introdução ao volume IV do seu Literatura do século XX e Cristianismo, afirma que “a escravidão da percepção literária consiste em se aproximar por baixo, partindo do sofrimento dos homens e de sua nostalgia da felicidade, para alcançar o mundo da Revelação, que está acima”. E ele próprio conclui: “Mas ‘Deus nos busca antes que nós o busquemos’. Vem a nós até onde estamos. O povo de Israel sabia algo disto. Este povo é também a Igreja. E cada um de nós”. Carpeaux, ao falar sobre Mauriac em sua História da Literatura Ocidental, dirá que “a representação completa do pecado justifica o trabalho do romancista: o desfecho literariamente satisfatório vale como reconhecimento da Justiça e da Graça de Deus”. Esses dois pensamentos formam, com certeza, a síntese do trabalho a que se propõe o escritor católico: partir do que pode chegar a ser inumano para mostrar a transcendência escondida no homem; descrever o nível de degradação que a sociedade pode atingir para fazer sobressair a irrupção da graça divina. Há nele paixão e lógica, mística e zelo – o zelo de Teresa de Jesus; ou o de Elias, no Horeb, que exclama duas vezes, a última com o rosto coberto pelo manto: “Eu me consumo de ardente zelo por Iahweh dos Exércitos, porque os filhos de Israel abandonaram tua aliança, derrubaram teus altares e mataram teus profetas à espada” (1Rs 20,10.14).

junho 28, 2011

Muito além do falso humanismo

Às vezes tenho a alegria de encontrar um texto que, por suas inúmeras qualidades, gostaria de ter escrito. Raras pessoas apresentam, nos dias de hoje, lucidez para abandonar a lógica do senso comum. Aliás, na maioria dos casos, desconfio que não se trata de falta de inteligência, mas, sim, de covardia mesmo. Poucos têm coragem de se contrapor às mentiras, aos chavões e à soberba epistêmica que dominam os discursos na mídia, na política e nas universidades. E se não há coragem, a inteligência também claudica, fraqueja – e torna-se mais cômodo pensar como todos pensam, seguir a torrente de sofismas chamada, com doçura hipócrita, de “politicamente correto”.

Não é o caso do artigo que publico a seguir. Ele rompe com os artificialismos da lógica atualmente hegemônica, vira-a pelo avesso, e mostra como um pensamento limitado pode ter um discurso convincente – mas jamais, jamais representará a verdade. Ele denuncia a mediocridade e a pequenez do humanismo que hoje encontramos na mídia, na Web, nos chamados movimentos sociais e nas rodinhas de intelectuais; e mostra como a mais execrada das mensagens – execrada por ser radicalmente libertadora – recusa as soluções simplistas e superficiais, guarda uma universalidade insuperável e permanece incólume através dos séculos.

O texto foi publicado no blog Contos do Átrio. Ao seu perspicaz e, infelizmente, anônimo autor, ofereço minha sincera admiração.           

Se é “católico”, dispensa adjetivos

A tendência secular hoje é celebrar a diversidade por si só, como se a existência das diferenças fosse por ela mesma algo a se comemorar, e não uma obviedade da raça humana.

É evidente que somos diferentes e que a possibilidade de expressarmos nossas diferenças é uma coisa boa. Mas isso é muito mesquinho e pequeno perto da proposta do cristianismo, que se propõe católico, isto é, universal. E exigir do cristianismo que ele também celebre essas diferenças é podar o cristianismo, tirando sua radicalidade. Transforma-o numa carta de boas intenções que qualquer ONG ou instituição humanitária teria, com suas propostas geralmente óbvias como é óbvia a diversidade humana.

O cristianismo só pode ser universal, logo o único adjetivo que suporta é “católico”. Celebrar diferenças é exatamente o que não pode acontecer no cristianismo. Se o cristianismo olhar para as diferenças, ele simplesmente desaba.

Foi precisamente essa a discussão no Concílio de Jerusalém, narrado nos Atos dos Apóstolos. No começo do cristianismo, contrapunham-se as tendências judaizante – centrada na manutenção de algo da lei judaica, com destaque para a circuncisão – e helenizante, que igualava judeus e estrangeiros e tirava a importância da circuncisão. Segundo o historiador Daniel-Rops, esse debate moldou o cristianismo como ele é logo no primeiro século. Enquanto se diferenciavam os judeus dos gentios, o cristianismo não alcançava seu potencial inicial.

O desafio do cristão não é acolher o homossexual, o negro, o pobre. É acolher o próximo independentemente de ele ser homossexual, negro, pobre ou estrangeiro. Há aí uma diferença sutil, que passa batida, na palavra “independentemente”: se esse rótulo não importa, ressaltá-lo é justamente o que lhe dá importância.

É por isso que o cristianismo é mais feminista do que as feministas, mais “homossimpatizante” do que os LGBTTT, mais social do que os socialistas, mais libertador do que os libertários, mais avançado do que os progressistas, muito mais humano do que os humanistas. O cristianismo é próximo. Rebaixou Deus à dignidade do homem e elevou o homem à proximidade de Deus. Colocar qualquer outro adjetivo que ressalta diferenças – feminista, dos pobres, dos negros, sertaneja, campesina ou o que seja – mutila o cristianismo.

E isso é bíblico. Há uma pilha de tradições cristãs e passagens bíblicas que elimina qualquer diferenciação no cristianismo e chama todos à unidade, porque a verdade só pode ser uma só.

Também é repleto de fundamento bíblico o fato de que o cristianismo aceita a todas as pessoas porque rejeita todos os vícios. Os vícios acentuam a cegueira que leva as pessoas a ab-rogarem a autoridade – de Deus – para dizerem quando e em quê devem fazer o bem aos outros, o que é de uma ingenuidade tremenda. Mal sabemos quando fazemos o bem a nós mesmos; imagina se vamos saber se fazemos o bem aos outros. O cristianismo que aceitasse vícios não reuniria comunidades, só seria um fingimento, um engodo de união entre as pessoas.

Por isso, a invenção de um cristianismo que aceita o pecador sem rejeitar seu pecado – invocando aquela famosa passagem bíblica da pecadora que seria apedrejada – não tem qualquer lógica. É a ridicularização do cristianismo. Se os vícios não forem abandonados, não é possível amar o próximo sob um dos maiores mandamentos, como escrito em Mateus 22, 36, Marcos 12, 28 e João 14,15, e em tantos outros textos bíblicos. Não existe cristianismo sem eles.