Marisa Lajolo
faz, neste texto publicado inicialmente no Facebook, um interessante diálogo
com meu livro. Uma leitura que aponta discordâncias, mas de maneira ética,
equilibrada, sábia. Leitura lobatiana, com aquela argúcia que Monteiro Lobato
nunca deixou de lado – e que Marisa Lajolo, decana dos estudos lobatianos, não
poderia deixar de ter.
BOA RETÓRICA E BOA LITERATURA
Marisa Lajolo
Nas cores sóbrias da capa de Muita retórica – Pouca literatura (Campinas, SP: Vide Editorial)
uma figura de rosto borrado parece escrever em folhas que levantam voo e
transformam-se em pássaros. A capa é sedutora. O título intrigante provoca o
leitor. Mas o suspense se desfaz no subtítulo: De Alencar a Graça Aranha.
E é efetivamente pela prosa brasileira que Rodrigo Gurgel –
o autor do livro – passeia, compartilhando com seus leitores juízos sobre
escritores e obras do século XIX e comecinho do XX. Leitor rigoroso, de dedo em
riste e olhar severo, o crítico aponta e discute cochilos e acertos – de
diferentes ordens de grandeza – de nossos escribas.
É claro que o leitor não precisa concordar com Gurgel. Eu,
por exemplo, acho que Lucíola e O cortiço são grandes obras. Gurgel não
acha, mas ele expõe seus argumentos com tanto talento (a boa retórica!) que
fico obrigada a ir buscar os meus para discordar dele. O que é uma bela forma
de a crítica cumprir sua função de aprimorar a leitura.
Aprimorar a leitura literária não é concordar com nosso
interlocutor. Seja ele quem for. É respeitar leituras alheias, pois literatura
é um entrelaçamento de obras e de leituras que as obras receberam. O leitor que
decida em qual malha desta rede quer meter sua colher torta.
Claro que nas respostas à entrevista e no calor da hora da
gravação vêm à tona detalhes do livro, outras opiniões de seu autor, enfim,
aquele making off que tanto delicia
fãs (como eu) de filmes em DVD. É aí, nestes bastidores e no day after, que Gurgel aponta, de forma
explícita e direta, um tópico que, no seu livro, é reafirmado ao longo dos
vinte ensaios que o compõem: a pluralidade dos domínios do conhecimento
necessários ao discurso que fala de literatura.
Filosofia, História, Sociologia, Retórica... muitos são os
sotaques que podem entrecruzar-se na fala do crítico e vários deles,
efetivamente, comparecem à fundamentação da crítica de Gurgel. E alguns outros
ele expulsa definitivamente, como os pobres linguistas estruturalistas, por si
mesmos afastados do palco (!) mas imediatamente substituídos por outros
fundamentalismos.
Vem da filosofia – do espanhol Ortega y Gasset – um dos
pressupostos do pensamento de Gurgel. A ideia de que eu sou eu + minha
circunstância inspira a amplificação que o crítico faz de uma obra para além
das palavras que seu autor escreve, e permite a ele (crítico) discutir a obra
entendendo-a como amplificadora da experiência humana.
Foi aí que Gurgel me pegou.
E a circunstância do leitor? E a circunstância do momento de
cada uma de suas leituras? Não seriam determinantes de sua compreensão da obra
e de sua valorização?
Eu, por exemplo, gosto de Inocência, livro que Gurgel considera um romancinho sentimental, onde o diminutivo desqualifica. Lembro
de ter lido o livro com onze para doze anos. Lição de escola, de Dona Maria
Luíza. Mas... havia uma menina na minha classe chamada Inocência, chata como a
peste. Petulante e convencida. Fui ler o
livro com a maior má vontade inspirada na homônima da heroína. Mas o livro me
emocionou: me comoveu a subalternidade da menina ao pai autoritário, a
confiança dela no padrinho, a delicadeza da homenagem representada por dar o
nome dela a uma borboleta...
Vinguei-me de minha colega apelidando-a de papilosa e acho que foi aí que me tornei
leitora de romances e aprendi a lidar com leituras alheias, matéria-prima de
professores de literatura.
Ou seja: como lidar com as infinitas circunstâncias em que
leitores leem o que leem? Este livro de Gurgel sugere várias destas maneiras.
Ele nunca se esquece, por exemplo, de que está falando em público de suas
leituras privadas. Franqueia, pois ao leitor sua circunstância de leitura,
atribuindo a seus leitores reações que bem podem ter sido as suas: se você, leitor, teve vontade de rir, não se
sinta constrangido (115). Ou justificando suas decisões discursivas: ideia sobre a qual nem me darei ao trabalho
de comentar, tamanho o seu despropósito (143).
Ou ainda, mencionando outros críticos e pensadores com os
quais concorda ou dos quais diverge. Ou transcrevendo os textos dos romances
nos quais se apoiam suas observações, ou tirando da estante prosadores que têm
passado em branco na história canônica da literatura brasileira. Desta lista de
prosadores brasileiros do B que Muita retórica – Pouca literatura
apresenta, destaco a agradável surpresa que representa a leitura que Gurgel faz
de João Francisco Lisboa e de Joaquim Felício dos Santos.
Ou seja: todas aquelas folhas em revoada na primeira capa do
livro voltam obedientes à escrivaninha do crítico e compõem um livro
extremamente corajoso e provocador.
Vamos
a ele!