Uma coisa é
estar pessoalmente com Cristo, com o Deus vivo; a outra é que temos
possibilidade de acreditar sempre e só no “nós”. Às vezes, digo que São Paulo
escreveu: “A fé vem da escuta”, não da leitura. Há necessidade também de ler,
mas a fé vem da escuta, isto é, da palavra viva, das palavras que os outros me
dirigem a mim e que posso ouvir; das palavras da Igreja através de todos os
tempos, da palavra que atualmente me dirige por meio dos sacerdotes, dos bispos
e dos irmãos e das irmãs. Faz parte da fé o “tu” do próximo, e faz parte da fé
o “nós”. E precisamente a exercitação no suportar-se mutuamente é muito
importante; aprender a acolher o outro enquanto tal na sua diferença, e
aprender que ele também deve suportar-me a mim na minha diferença, para nos
tornarmos um “nós”, a fim de podermos um dia também na paróquia formar uma
comunidade, chamar as pessoas para entrarem na comunhão da Palavra e caminharem
juntas para o Deus vivo. Faz parte disto o “nós” muito concreto que é o
Seminário, como o será a paróquia, mas sempre também o olhar para mais além do “nós”
concreto e limitado, ou seja, para o grande “nós” da Igreja de todo o lugar e
de todo o tempo, a fim de não fazermos de nós mesmos o critério absoluto.
Quando dizemos “nós somos Igreja”, dizemos certamente a verdade: somos nós, não
uma pessoa qualquer. Mas o “nós” é mais amplo do que o grupo que o está
dizendo. O “nós” é a comunidade inteira dos fiéis: os de hoje e os de todos os
lugares e de todos os tempos. E não me canso de repetir ainda: é verdade que,
na comunidade dos fiéis, existe por assim dizer o juízo da maioria efetiva, mas
não pode jamais haver uma maioria contra os Apóstolos e contra os Santos: isso
seria uma maioria falsa. Nós somos Igreja. Pois bem, sejamo-lo! Sejamo-lo
precisamente no abrirmo-nos ultrapassando-nos a nós mesmos e no estarmos juntos
com os outros.
setembro 30, 2011
setembro 20, 2011
Os perigos da moda René Girard
De repente, no Brasil, dizer-se seguidor de René
Girard tornou-se uma espécie de chancela que, por si própria, atesta a
idoneidade, a sabedoria e a lucidez deste ou daquele autor. Comportamento,
aliás, típico do nosso subdesenvolvimento cultural. Em nome desse novo modismo agora
publica-se de tudo, independente de quem seja o autor. É o caso de O pecado original à luz da ressureição: a alegria de se perceber equivocado, do heterodoxo, controvertido e repreensível
teólogo James Alison, cujas teses sobre o homossexualismo – escritas num estilo
melífluo, que engana os desavisados – são frontalmente contrárias ao Magistério da Igreja. Para completar as heresias do volume, a É Realizações convidou o padre J. B. Libanio (um sociólogo marxista que se acredita teólogo) para escrever a apresentação. Ao que parece, Alison leu, de Girard, apenas o que lhe interessa – e esqueceu de ler o essencial. Quanto à editora, é uma pena que esteja se transformando em mais um braço do esquerdismo tupiniquim.
setembro 13, 2011
“Decidir incondicionalmente a favor da vida”
O II Congresso Internacional pela Verdade e pela Vida (Human Life International) será
realizado de 3 a 6 de novembro de 2011, no Mosteiro de São Bento (São Paulo,
SP).
Objetivos:
1. Compartilhar
experiências sobre a defesa da vida no Brasil e no mundo;
2. Aprofundar
aspectos concernentes à defesa da vida humana e à defesa da família;
3. Informar
sobre as inúmeras pressões exercidas contra a dignidade da pessoa humana e
suscitar reflexão nos convidados;
4. Promover o
diálogo entre as diversas entidades e associações existentes que trabalham em
prol da Família.
setembro 12, 2011
Joaquim Nabuco – o antifilisteu
No Rascunho deste mês, meu ensaio sobre o
clássico Minha formação, de Joaquim
Nabuco.
Leiam um trecho:
No ensaio “Um
capítulo da higiene mental dos artistas”, Hermann Hesse fala sobre a
importância do ócio na vida do escritor. O tom às vezes exageradamente
hedonístico dessas páginas não me agrada, mas o romancista alemão está certo
quando diz que “o trabalho intelectual se deixa envolver e dominar” cada vez
mais “pela atividade industrial rude e violenta, sem tradição e bom gosto” e
que “retalhamos o tempo em pequenos e ínfimos pedaços, dos quais cada um tem
ainda o valor de uma moeda”. O texto, escrito em 1940, permanece atual, com um
agravante: a arte, contaminando-se, de maneira crescente, do corriqueiro, do
vulgar, passou a obedecer a certo filistinismo hostil, zombeteiro até, em
relação à estética que, repelindo a demagogice, anseia preservar um mínimo de virtuoso
requinte. Nabuco tinha perfeita consciência disso e denunciava que “o público,
o protetor moderno das letras, cuja generosidade tem sido tão decantada, não
passa de um Mecenas de meia-cultura”. Não por outro motivo ele alertou, 40 anos
antes de Hesse, que
setembro 08, 2011
A bondade é mais interessante que a maldade
Uma frase da
escritora Anne Rice, publicada por certo amigo no Facebook, revela, de maneira
indireta, qual o senso comum destes dias, inclusive entre escritores. Para
Rice, “é triste que não possamos fazer a bondade ser tão interessante quanto a
maldade”. A autora, conhecida por suas tramas de vampirismo – e que teria voltado
à Igreja Católica em 1998 –, mostra-se melancólica em relação ao fato de a
temática do bem não produzir tantos adeptos quanto a literatura que narra o
mal. Teríamos nos acostumado à maldade? E estaríamos realmente impedidos de transformar
a bondade num tema capaz de despertar interesse?
Esse é o
problema da rápida reflexão de Anne Rice: ela só exprime o senso comum. Pois, como
respondi a meu amigo, a bondade é mais interessante que a
maldade. A verdade parece ser o contrário apenas porque somos massacrados – do
noticiário à literatura – por todas as formas de mal, dia após dia. Nossa
cultura niilista, devota do pessimismo, insiste em nos apresentar o mal como a regra
de todos os homens – e exatamente por esse motivo nada, absolutamente nada,
pode ser mais entediante do que a maldade.
Se o homem
contemporâneo é descrito por muitos como a figura do egoísmo, do vazio e da
frivolidade, se a vilania tornou-se vitoriosa na ficção, em parte da poesia e,
se acreditarmos no que diz a mídia, também na realidade, isto se deve ao
cinismo que a cultura erudita do século XX elevou à categoria de deus. Mas se
dermos ao homem enfadado pela maldade um só gesto, uma só página de bondade, ele
se sentirá renovado, quando não desorientado, pois a bondade – neste mundo que aparentemente
cultua o mal – inquieta, perturba, estimula.
setembro 06, 2011
O ironista macambúzio
Costumo afirmar, para desagrado de meus amigos
nacionalistas, que o Brasil é um país primitivo. E, para infelicidade deles, os
fatos confirmam minha certeza. Em qual país civilizado, um crítico, escrevendo
seu texto em 2011, poderia reclamar, ao se referir a certo autor de inegáveis
méritos, que sua obra se encontra esquecida, salientando que a mesma afirmação
já fora pronunciada na década de 1940, em 1967 e, novamente, dez anos depois?
O escritor é o maranhense João Francisco Lisboa. E os
principais defensores de sua memória formam um trio respeitável que, ao longo
do século XX, malhou em ferro frio. No início da década de 1940, Álvaro Lins,
então diretor da Coleção Joaquim Nabuco, da falecida Americ Editora, ao pensar
em “livros antigos, esgotados ou pouco acessíveis” do século XIX, imediatamente
lembrou de Lisboa. Graças a Lins, Octávio Tarquínio de Souza pôde organizar os
volumes das Obras escolhidas,
publicados em 1946. Vinte e um anos depois, João Alexandre Barbosa, em seu
lúcido ensaio de introdução ao volumezinho da Coleção Nossos Clássicos (Editora
Agir), mostrava-se enfático: “A obra de João Francisco Lisboa, apenas
superficialmente referida nos nossos tratados de história literária ou somente
lembrada em discursos comemorativos [...], obra que tem sido louvada sem ser
lida ou que, e vem a dar no mesmo, se conhece tão somente de antologias da
língua portuguesa [...]”, é “uma obra esquecida”. Finalmente, dez anos mais
tarde, Maria de Lourdes M. Janotti lamentaria, no mais alentado estudo da vida
e da obra do maranhense – João Francisco
Lisboa: jornalista e historiador (Editora Ática) –, o fato de ele ser “um
desconhecido para o país”, e que, descontados os poucos testemunhos de seus
contemporâneos, o pesquisador que pretendesse estudá-lo se depararia com “um
grande vazio bibliográfico”.
De fato, a bibliografia de – e sobre – João Francisco
Lisboa é das mais pobres. A primeira edição de suas Obras completas foi publicada entre 1864 e 1865; no ano de 1901,
uma nova edição surgiu, em Portugal; daí, saltamos para 1946, com as Obras escolhidas; e de lá para cá os
problemas só se agravaram. Às vezes algum editor oferece uma surpresa, como as
edições de Vida do Padre Vieira, pela
extinta Jackson, ou os Apontamentos para
a história do Maranhão, que a Vozes publicou em 1976, ou a Crônica política do Império, editada
pela Francisco Alves em 1984. Hoje, quem pretende conhecer um pouco de Lisboa deve
encetar penosa jornada pelos sebos, ou se satisfazer lendo excertos da sua obra
mais famosa, Jornal de Timon,
publicados pelas editoras Cia. das Letras (1995) e do Senado Federal (2004).
Mata-se, assim, com edições minguadas, esse escritor
dono de estilo inigualável, verdadeiramente clássico, de páginas cujo poder
descritivo só pode ser qualificado como surpreendente. Não há exagero,
acreditem, quando afirmo que não termos edições dos seus folhetins –“Procissão
dos Ossos” e “Festa de Nossa Senhora dos Remédios”, por exemplo, lançados
quando ele era redator do Publicador
Maranhense, em 1842 – ou dos “Retratos” que escreveu sob o pseudônimo de
Zumbido – em 1843, no Echo do Norte –
diminui a nossa literatura. E para que não me acusem de empreender, nesta série
de ensaios, uma campanha difamatória contra certos românticos, repito apenas o
julgamento de Álvaro Lins:
[...]
Quando já envelhecida ou ultrapassada uma ideia de João Francisco Lisboa, ainda
assim permanece íntegra e atualizada a forma em que ele a exprimira. [...] Que
se compare a prosa do autor do Jornal de Timon,
pelo senso estilístico e pela estrutura literária, com a de seus contemporâneos
[...], sem excluir José de Alencar, de expressão formal tantas vezes
insuportável na frouxidão ou vacuidade do seu verbalismo [...] – e ver-se-á,
então, que João Francisco Lisboa não parece só um escritor de outra época, mas
até de outro país e de outra literatura. Como prosador, aproxima-se dele,
naquele tempo, tão só Manuel Antônio de Almeida (in A glória de César e o punhal de Brutus).
Edições
Não seria próprio de um país primitivo que tenham
restado, de tal escritor, tão poucas opções de leitura neste início do século
XXI? Exatamente por esse motivo, somos obrigados a nos ater ao Jornal de Timon: trata-se, como
dissemos, da única obra que ainda pode ser encontrada nas livrarias. É, aliás,
sintomático que apenas esse livro – compêndio avassalador sobre as formas de
corrupção, principalmente nos processos eleitorais – tenha sobrevivido ao
esquecimento: o fato de termos duas edições do Jornal de Timon parece dizer que nosso país insiste em se olhar ao
espelho, sem, ao que parece, enxergar-se. E, terrível ironia – semelhante às do
próprio Lisboa, exímio ironista –, a obra mais completa é a publicada pela Editora
do Senado.
Porém, antes de seguirmos em frente, a expressão “mais
completa” exige explicações: a edição do Senado, apesar de trazer mais textos
que a da Cia. das Letras, não apresenta o “Prospecto do Jornal de Timon”, escrito para ser uma introdução à obra. A da Cia.
das Letras, por sua vez, traz o “Prospecto” mas descarta os folhetins iniciais,
em que Lisboa estuda as eleições na Antiguidade, na Idade Média e nos tempos
modernos. Finalmente, nenhuma das duas oferece os últimos folhetins, de 1858,
escritos quando, vivendo em Portugal – recolhido à pesquisa de documentos sobre
a história brasileira, função em que substituiu Gonçalves Dias –, Lisboa retomou
a publicação interrompida em 1853.
O leitor, portanto, ainda que possa desfrutar, em
ambas as edições, da parte mais significativa do Timon – “Partidos e eleições no Maranhão” –, ou perde os textos
esclarecedores do início, ou fica sem saber que direção o autor tomou depois de
ter praticamente esgotado seu tema principal. Suspensos num desagradável vácuo,
somos obrigados a ler apenas o que os editores consideraram importante – sem, no
entanto, conhecer seus critérios de avaliação.
Nasce
Timon
A leitura dos textos que antecedem a parte central da
obra nos revela os processos de formação do periódico – que foge completamente
aos padrões contemporâneos – e de construção do narrador, Timon, inspirado no
filósofo homônimo da Antiguidade, autor de poemas satíricos. Depois de lermos o
“Prospecto”, que não deixa dúvidas quanto ao espírito do jornal –
Timon
enche a sua obscura carreira em um obscuro e pequeno canto do mundo; e apesar
do pouco aviso e desacordo que devera ser o resultado do seu ódio pretendido ao
gênero humano, ou pelo menos à geração presente, nem por isso ignora que não é
para todo o dizer tudo, em todo tempo e em todo lugar
–, passamos à construção gradual do pensamento de
Lisboa, como se o autor tateasse seu objeto de estudo, tratando primeiro dos
crimes eleitorais e das formas de manipulação das massas em tempos remotos,
para só depois atacar seus contemporâneos. Ele estuda a forma adequada de se
exprimir; quem sabe, testa a reação dos leitores; ou apenas empreende um
projeto realmente educativo. Já encontramos nesses capítulos os períodos bem
arquitetados, límpidos, de pontuação segura; e descortinamos as fontes do
autor: cita Plutarco, tratando-o com intimidade, a ponto de chamá-lo “único
amigo”, e também Maquiavel, Montesquieu, Salústio, Tácito, Dickens – e mais à
frente, Camões, Cervantes, Molière, Tocqueville e Chateaubriand (deste, Lisboa
soube escolher, diferente de Alencar, o melhor livro: Mémoires d'outre-tombe).
O narrador implacável surge timidamente. De início, na
segunda parte de “Eleições na Antiguidade”, fala de si como um simples “eu”,
repetindo o mesmo procedimento parágrafos depois. A partir desse ponto, se
pronuncia cada vez mais, agora referindo-se à sua pessoa como um terceiro –
recurso que cria certo efeito de insuspeição, mas que, apesar de sugerir uma respeitosa
distância entre Timon e os fatos, coloca o narrador no papel de testemunha ocular
ou, pelo menos, de alguém capaz de obter declarações fidedignas. Pari passu, analogias entre exemplos do
passado e a realidade do Maranhão começam a aparecer. Quando seus
contemporâneos são invocados, tornando-se a matéria principal do texto, a
construção do compêndio sobre crimes eleitorais e demagogia – para Timon, mãe
de todas as transgressões políticas – chega ao ápice. E se o narrador,
pessimista inflexível em relação ao Brasil, pondera que “onde há o mal também
podemos encontrar o bem”, logo a seguir salienta: “Falo dos estranhos”.
Ficção
Iniciada a série de nove seções do capítulo “Partidos
e eleições no Maranhão”, o leitor não tem dúvidas sobre que tipo de críticas
encontrará – mas ainda desconhece as habilidades superiores do narrador: essas
páginas se inscrevem entre as melhores da prosa brasileira – e deveriam ser lidas
e estudadas por todos os que pretendem conhecer nossa literatura ou redigir em
língua portuguesa.
Antes de iniciarmos a leitura, devemos ter claro que
abandonamos o porto aparentemente seguro da ciência histórica e nos lançamos à
ficção. Mais que utilizar recursos alegóricos – como salientou João Alexandre
Barbosa –, Lisboa inventa, imagina, cria um universo particular, com
personagens, cenários, diálogos; há dramas subjacentes à narração, ambições se
digladiam, e o que se encontra em disputa não é um simples processo eleitoral,
mas projetos de vida, individualidades que usam as mais diversas armas para
garantir a prevalência de seus interesses. A cada página, sem nos esquecermos
de que ele fala muitas vezes de personagens coletivos – os eleitores, o
partido, a oposição etc. –, estamos, insisto, distantes do relato histórico, em
plena criação fantasiosa, essencialmente ficcional. Não importa que tais
páginas tenham sido escritas com intuito diverso, o de fazer severas denúncias
ou de comprovar as teses do autor: o resultado escapa ao controle de Lisboa – e
ele nos legou algo maior do que planejara.
Vejam, logo no início, o presidente de Província e seu
medo de ser substituído, na iminência das eleições, por um adversário, o que
acabaria com seu sonho de se candidatar a deputado. À longa descrição dos
estados emocionais do político, acrescentam-se os angustiados pensamentos de
quem procura se convencer da própria segurança, ainda que a realidade lhe
mostre o contrário. Trata-se de um clima febril, no qual há evidente exagero
melodramático, recurso que só aumenta nossa percepção sobre a absoluta
egolatria desse político:
Só
quem observar de perto um presidente candidato no meio destas obsessões e das
intrigas que para a sua queda se agiram na corte e na província, ao
aproximar-se a terrível quadra eleitoral, poderá compreender a intensidade da
longa agonia que o vexa e extenua, até ser coroada pela morte e demissão, ou
por um triunfo renhidamente disputado, miserável compensação dos amargos
dissabores curtidos, e das cruéis injúrias devoradas.
Então, da fortaleza que guarda a cidade soa o aviso:
um navio, trazendo a bandeira imperial, se aproxima. É o fim. Ele será
substituído. Sem conseguir tomar as necessárias decisões, o presidente só vê a
derrota. Até a rapidez com que o vapor se aproxima é acintosa. E nenhum detalhe
escapa ao narrador: do uniforme desbotado da tropa que se perfila para receber
o novo governante aos rojões que, sobrepondo-se ao som da música militar, a
oposição estoura em diferentes bairros. Semanas mais tarde, quando o deposto
embarca de volta à Corte, Timon é impiedoso:
S.
Excia. desprendeu-se a custo de seus braços [de um correligionário], e dizem que no momento supremo lançara um
derradeiro olhar, baço e vidrado pelo susto da fraudada candidatura, como um
pecador não absolvido que partisse para outro mundo.
Antífrases
Se ficássemos dando exemplos da capacidade descritiva
de Lisboa, seria melhor apenas transcrever grande parte do capítulo. Há,
contudo, um aspecto de sua prosa que desejo ressaltar: a ironia. Apreciador
dessa figura, ele se tornou um mestre na difícil e ilustrada arte do ironismo.
Voltando ao início do livro, ao descrever a morte de
Fócion, político e general ateniense acusado de traição, Timon relata que o
condenado, “no momento fatal, cedeu [...] a precedência para a morte a seus
companheiros de infortúnio [...]; de maneira que quando lhe chegou a vez estava
esgotada a taça do suplício”. A seguir, vejam com que aristocrática ironia ele
descreve a atitude do carrasco: “Então o algoz, homem de uma pontualidade e
exatidão que faria honra a qualquer banqueiro moderno, declarou que já tinha
feito o seu dever, e certamente não havia aí obrigá-lo a moer outra dose de
cegude, se lhe não pagassem primeiro as suas doze dracmas, que era o preço
legal”. O enaltecimento do esmero e do profissionalismo, comparando-os aos de
um banqueiro, desmerece, é claro, mais este do que o verdugo, mas ressalta a
insanidade do gesto, o caráter excêntrico dessa condenação interrompida por uma
exigência burocrática, ampliando a frieza e a cegueira das decisões de Estado.
Poucas linhas à frente, Timon diz que os atenienses teriam se arrependido da
condenação tempos depois; e conclui: “Estes amáveis republicanos tinham esta
apreciável qualidade: raro era o homem eminente entre eles que escapasse à
morte ou ao desterro; mas o arrependimento vinha sempre após, se bem que
ordinariamente... quando já não podia aproveitar”. As antífrases cumprem seu
papel – e o leitor percebe qual o verdadeiro sentido dos qualificativos que o
narrador concede aos cidadãos de Atenas –, bem como essa compunção absurda, nascida
apenas quando a injustiça se tornou irremediável.
Retornando ao capítulo “Partidos e eleições no
Maranhão”, depois que o narrador municiou seus leitores com vários exemplos de
corrupção, descreveu em minúcias os métodos escusos de burocratas e políticos, e
também explanou sobre os motivos pelos quais a massa obedece a tais figuras,
Timon conclui: “[...] As estupendas escolhas que assinalam e salpicam as
páginas da nossa história eleitoral, não consentem duvidar que nos Governos populares a estima pública só se
ganha por uma moral mais pura, e por um caráter intelectual mais elevado!”
[grifo do autor]. A antífrase surge outra vez, pois, no que se refere à história
eleitoral, não há, evidentemente, “escolhas estupendas”; no conjunto, o tom
grandiloquente da ironia hiperbólica ressalta a zombaria.
Exagerado
moralismo
Percebemos, não só pelo discurso irônico, que há um propósito
moralizante em João Francisco Lisboa – mas ele talvez fosse movido também por uma
ponta de amargor ou de vingança pessoal, pois, em 1840, doze anos antes de
iniciar a publicação do Jornal de Timon,
tivera sua candidatura à assembleia provincial preterida por uma influente
família do Maranhão, fato que o fez se afastar da política até 1848. De
qualquer forma, como moralista, se não foi um La Rochefoucauld ou um Chamfort –
nem no estilo, nem no que se refere à pluralidade de interesses –, dentro dos
estreitos limites em que viveu e estudou conseguiu colocar-se muito acima de
seus contemporâneos.
A partir da seção VIII de “Partidos e eleições no
Maranhão”, a insistência do narrador nos mesmos temas começa a enfastiar,
inclusive porque ele abandona o didatismo irônico e o relato fantasioso,
passando a defender princípios teóricos, teses. Sua casmurrice provoca efeito
contrário ao desejado e nos leva a um beco sem saída: se toda a sociedade
chafurda no crime e na depravação; se todos os políticos são criminosos; se o
povo mostra-se sempre apático e manipulável; então não há como aperfeiçoar as
instituições, estamos fadados ao crime e à demagogia perenes – e até mesmo as
páginas do Timon são inúteis. Além
disso, o discurso catastrofista desse pregador esconde uma contradição: se,
como vimos, Lisboa participou da vida política de sua época – além de deputado
provincial em três legislaturas, foi secretário de governo de 1835 a 1838 –,
até que ponto a descrença que ele manifesta é sincera?
Por outro lado, historiadores atestam a veracidade dos
problemas descritos por Lisboa. Basta ler “O sistema político do Segundo
Reinado”, em Os donos do poder, de
Raimundo Faoro, que inclusive cita algumas vezes o Jornal de Timon, ou “Eleições e partidos: o erro de sintaxe
política”, em Teatro de sombras, de
José Murilo de Carvalho, para constatarmos que, como diz este último, citando
Joaquim Nabuco, o Segundo Império foi a “paródia da democracia”. Os poucos defeitos
de Lisboa surgem, assim, da falta de distanciamento entre ele e seu objeto de
análise, pois o autor não percebe que, apesar de ter-se na conta de imparcial,
a paixão turva seu poder de julgar, condenando-o a um exagerado pessimismo.
***
Quando residiu em Portugal,
João Francisco Lisboa encontrou-se algumas vezes, numa pequena livraria, com
Alexandre Herculano; e sua descrição do colega de ofício – “é um macambúzio
pior que eu” – fala muito da sua própria personalidade. Mas devemos apagar da
obra as páginas carrancudas do evangelizador, para ficarmos com os atributos que
contradizem sua autodefinição: a eloquência mordaz, a escrita translúcida, a
fabulação inebriante – e o riso ensolarado e destrutivo do ironista.
setembro 01, 2011
O reino dos demagogos
Feliz era G. K. Chesterton,
que podia dizer:
“Já passamos da época do demagogo, do homem que tem
pouco a dizer, mas o diz em voz alta”.