Nenhum escritor se submete ao que desconhece |
Certos escritores
insistem na idéia de que o ato de narrar tem algo de místico.
Já falei aqui
sobre autores que se dizem dominados por suas personagens. Mas há também
aqueles que afirmam não escolher suas próprias histórias: “Elas se impõem”,
falam alguns, como se narrativas surgissem do nada ou fossem desfiadas por um
gênio semelhante à criança que, sem saber o que faz, puxa o fio de um novelo.
É evidente que há
uma base de intuição no processo criativo — mas é também evidente que, dentre
as várias histórias possíveis, a escolha de uma em especial obedece a
determinado conjunto de auto-imposições: ninguém, em sã consciência, decide
escrever sobre o que desconhece ou não pesquisou.
Um autor não
precisa ter a experiência de Joseph Conrad para escrever aventuras marítimas,
mas será obrigado, como Patrick O’Brian, por exemplo, a fazer minuciosas
pesquisas, consultar especialistas, viajar. (Leiam a entrevista de O’Brian na Paris Review.)
E não bastam
apenas pesquisas. Devemos pensar no planejamento que uma obra requer — para
evitar incongruências, absurdos.
Hoje, quando
qualquer conto ampliado recebe o nome de “romance”, o planejamento tem merecido
o menosprezo de alguns supostos experts
e de muitos escritores.
Mas quem se
dispuser a ir além de um conto estendido deve se preparar para escolher um tema
que lhe seja de alguma forma próximo — ou se dispor a planejamento e pesquisa
exaustivos. Sua história não descerá rutilante e pronta dos céus.
E se uma história,
como alguns escritores místicos gostam de dizer, se impõe, ela certamente o faz porque foi alimentada no imaginário.
Estava ali, nas sombras da mente do autor, tomando forma, aguardando para
escapar. E ele não pode dizer que a desconhecia.
Nenhum escritor se
submete ao que desconhece. Só os navegantes de primeira viagem cometem o erro
de abraçar um tema que não dominam ou que sequer imaginam como poderão dominar.
Quando um
principiante percebe o erro que cometeu, sua primeira reação é tentar resumir,
em 50 páginas, o que precisaria de 400 para ser narrado. Um autor experiente
abandonaria o projeto ou faria um conto. Ou enfrentaria as dificuldades — e
teríamos 400 páginas empolgantes.
Além disso, dizer
que a história se impõe é
autodepreciar-se. E toda a habilidade técnica, todo o domínio do idioma, da
capacidade de imaginar e narrar?
Tudo nasce da
inspiração? E as anotações feitas? E o número de horas debruçado sobre o papel,
além dos longos dias em que, fazendo outras coisas, o escritor, na verdade, só
pensa na sua história?
Os novatos,
portanto, devem acreditar menos nas afirmações quase sobrenaturais de certos
autores — e confiar mais na certeza de que escrever exige dedicação, reflexões,
esforço, aperfeiçoamento constante, domínio do idioma. Além de um mergulho sem
volta na psicologia humana.
Portanto, se, no
início, sentindo-se inseguro, você não consegue ir além de um ou dois
personagens, de um ou dois cenários, de uma trama simples, não se angustie:
escreva sua história como for possível, dentro dos seus limites. Mas não acredite que a inspiração fará o trabalho pesado.
Certa imagem, um
gesto, a leitura de uma notícia, o fragmento de conversa no ônibus podem
desencadear, sem dúvida, a imaginação. Mas esse é apenas o início, o primeiro
passo de um longo trabalho.
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