outubro 31, 2014

Dicas de leitura no Dia Nacional do Livro (com atraso)

Se há um Dia Nacional do Livro — sim, eu sei, estou atrasado —, ele deve servir, principalmente, para honrar quem dá vida ao livro: o leitor. Só ele garante a sobrevivência, não só da obra, não só da memória do autor, mas também do frágil objeto que, esquecido ou maltratado, tende a desaparecer.

Assim, homenageando os leitores, minhas dez sugestões de livros, para hoje e sempre:

1. “A morte de Virgílio” (Hermann Broch) — Numa prosa soberba, o retrato das últimas horas de vida do escritor que encarna os principais valores da civilização ocidental.

2. “Filoctetes” (Sófocles) — As qualidades de um homem jamais podem ser separadas de seus tormentos e de sua mágoa. [Complemento indispensável: o ensaio “Filoctetes: a ferida e o arco”, de Edmund Wilson.]

3. “O condenado” (Graham Greene) — O mal contamina tudo; e pode se propagar para além da morte.

4. “Berlim” (Joseph Roth) — Crônicas, que também são ensaios, geniais.

5. “A provação de Gilbert Pinfold” (Evelyn Waugh) — Ironia e demência num texto divertidíssimo.

6. “O Agente Secreto” (Joseph Conrad) — Cinismo e canalhice, quando se trata dos esquerdistas, não têm limite.

7. “A fera na selva” (Henry James) — O perigo de não tomar decisões e de se recusar a viver.

8. “Sob o sol de Satã” (Georges Bernanos) — A terrível materialidade do mal.

9. “O bom soldado”, Ford Madox Ford — Um narrador-protagonista que, em meio à confusão e à ruína moral, procura a verdade.

10. “Aspiração”, um poema, de Carlos Drummond de Andrade, que os jovens não costumam entender.

outubro 30, 2014

Simone Weil e o esforço de atenção

“Se há um verdadeiro desejo, se o objeto do desejo é verdadeiramente a luz, o desejo de luz produz luz. Há um verdadeiro desejo quando há esforço de atenção. Se todos os outros motivos estão ausentes, o que verdadeiramente se deseja é a luz. Ainda que os esforços de atenção tenham sido aparentemente estéreis durante anos, um dia uma luz exatamente proporcional aos esforços inundará a alma. Cada esforço aumenta um tesouro que nada no mundo pode arrebatar.” — Simone Weil

outubro 27, 2014

Nova turma do curso Bases da Criação Literária


O curso “Bases da Criação Literária”, cuja primeira turma, em 2012, foi um sucesso, está de volta. Regravei, em alta definição, todas as aulas — e adicionei uma 5ª aula, dedicada ao tema do humor, da ironia. Nesta nova edição, que começa no próximo dia 4 de novembro, haverá também uma 6ª aula, ao vivo, exclusivamente para esclarecer dúvidas dos alunos. Além disso, fiz um grupo, só para os alunos, no Facebook — e participarei dele, trocando informações e dicas. Todos os detalhes sobre como se inscrever estão nesta página.

setembro 09, 2014

A sabedoria das fórmulas

Cada família tem seus bordões, seus provérbios. Frases que repetem ensinamentos antigos e simples sobre a vida social ou a respeito de hábitos e valores que, na opinião dos mais velhos, não devem ser esquecidos.

Minha avó paterna, por exemplo, tinha uns ditos curiosos: quando falávamos sobre a necessidade de ir a certo velório, ela perguntava quem era o morto; e a depender de nossa resposta, arrematava numa delicada censura: “Mas não é parente nem aderente, meu filho...”. Quando eu passava a noite lendo ou preparando um trabalho para a faculdade, no dia seguinte ela dizia: “Não é bom pra saúde passar a noite suindarando, meu filho...”. Vovó havia transformado a suindara, a chamada coruja-de-igreja, num verbo útil e expressivo.

Manuel Bandeira, no seu “Itinerário de Pasárgada”, lembra como sempre esteve atento a cada manifestação da linguagem: versos de algumas histórias da carochinha, cantigas de roda, trovas populares, pregões rimados dos vendedores ambulantes. E ao recordar a influência de seu pai, ele diz: “Na companhia paterna ia-me embebendo dessa ideia que a poesia está em tudo – tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas”.

Bandeira tem razão: encontramos poesia – e também verdade – em muitos dizeres. Alguns anos depois da morte de meu pai, descobri, no Em busca do tempo perdido, um provérbio que ele muitas vezes me repetira com a voz em tom de grave advertência: “Os cães ladram e a caravana passa”. Proust o coloca na boca do Sr. de Norpois em À sombra das raparigas em flor.

Essa máxima – e várias outras que ele nos repetia – contribuiu, de alguma forma, para moldar nosso caráter. Há uma variação espanhola mais suave: “A palabras necias, oídos sordos”. Mas, definitivamente, não tem a força da imagem desses cães que, acreditando ser um obstáculo, conseguem apenas latir.

agosto 06, 2014

Uma crítica literária sem hermetismos

Cada encontro que tenho com meus leitores é uma grata surpresa. Nunca imaginei que houvesse tanta receptividade, no Brasil, para a crítica literária. As palavras animadoras que me dizem, os sorrisos, os abraços, a forma calorosa com que as pessoas se aproximam, falando sobre meus textos, tudo isso reafirma em mim a certeza do papel mediador da crítica literária, um papel essencial se não queremos, como dizia Northrop Frye, brutalizar as artes e perder a memória cultural. E também confirma o que sempre acreditei: precisamos de uma crítica livre de hermetismos, independente e livre do jargão acadêmico, que muitas vezes serve apenas como subterfúgio para o crítico que teme julgar. Obrigado a todos, amigos e leitores! E obrigado a todos que estiveram na Livraria Cultura, aqui em São Paulo, na última segunda-feira. Foi uma grande alegria estar com vocês!

Com o tradutor e amigo Elpídio Mário Dantas Fonseca

Com os amigos William Campos da Cruz, Jessé de Almeida Primo, Paulo Cruz e Elpídio Fonseca

Com os amigos Maria Júlia Dalsenter, Ieda Yamasaki Souza e Paulo Chagas de Souza

Com minha irmã, Bel, e meus sobrinhos Sofia, Mariana e João Pedro

Com a amiga e agente literária Marisa Moura

Com o amigo e editor Pedro Almeida

agosto 02, 2014

Bizantinismo — Adelino Magalhães e “A hora veloz”

Na edição do Rascunho deste mês, analiso a prosa simbolista de Adelino Magalhães, apontado por alguns como um escritor apenas “para iniciados”. 

julho 28, 2014

Lançamento, em São Paulo, de “Esquecidos & Superestimados”

Na próxima segunda-feira, dia 4 de agosto, a partir das 18h, vocês estão convidados para o lançamento do meu novo livro na Livraria Cultura do Conjunto Nacional (Av. Paulista, 2073). Será um prazer reencontrar os amigos e abraçar meus leitores. Até lá!

julho 26, 2014

Olavo de Carvalho contra o “beija-mão esquerdista”

“O ritual obrigatório do beija-mão esquerdista já aviltou grandes inteligências entre nós. Nem o Otto Maria Carpeaux escapou.” Hoje, entre nós, brasileiros, só há um intelectual capaz de afirmar isso com desassombro: ele se chama Olavo de Carvalho.

Só Olavo, de maneira franca e clara, diz aos jovens: “Se você não tem força para ser ao mesmo tempo um gênio e um joão-ninguém, jamais chegará a ser um gênio. Será sempre um talento estragado”.  

Ninguém, hoje, neste país, do alto de qualquer cátedra, tem desassombro para dizer, como Olavo: “Prezo todos os homens inteligentes, mas prezo muito mais aqueles que, além de ser inteligentes, têm a coragem de prescindir do apoio de grupos e capelas, como fizeram o Mário Ferreira dos Santos e o Vilém Flusser, ainda que pagando por isso o preço do ostracismo”.

Vida intelectual sem exercício da virtude, sem intrepidez, é o mesmo que construir castelos na areia, meus amigos.

julho 15, 2014

“Em cada trecho seu que releio, creio descobrir o mais perfeito”

A literatura não é apenas o que está nos livros, o que foi publicado, mas também toda a coleção de incertezas do autor, as correções sem fim, os prazos jamais cumpridos, a revisão nem sempre minuciosa e, no caso de Marcel Proust, sua eterna angústia, o avanço da doença, a monumentalidade da obra — e a paciência do editor, Gaston Gallimard.

O processo industrial de edição encontra-se hoje num estágio diferente: os revisores enlouquecem por outros motivos, ninguém precisa decifrar marcações e hieróglifos como os de Proust. Mas a inquietude do autor, suas decepções e, muitas vezes, o descuido dos revisores — tudo permanece igual.

Em Marcel Proust – Gaston Gallimard – Correspondência (1912-1922), livro do qual as páginas abaixo foram retiradas, encontramos não só a desolação de Proust e suas eternas reclamações, mas principalmente o desvelo e a admiração de Gallimard, que escreve, em 14 de janeiro de 1921: “Em cada trecho seu que releio, creio descobrir o mais perfeito. Mas, seja onde for que os olhos pousem, em seu texto, o coração é arrebatado, e não consigo me desligar das páginas que acabei de ler”.



julho 10, 2014

“O que amas de verdade não te será arrancado”

A literatura pode, muitas vezes, ser o único elo com nossa consciência. Um poema esconde a força capaz de nos manter ligados a valores que desmoronam ao nosso redor — e aos quais também somos convidados a renunciar. Quando vemos a virtude se desintegrar e quando nos expomos, por nossas próprias opções, ao risco da fragmentação moral, algumas poucas estrofes podem servir como uma âncora que nos aferra à verdade.

Só muitos anos depois daquele inverno em que mudei para a casa de minha bisavó pude compreender a decisão de copiar, em letras de fôrma, na parede ao lado da escrivaninha, o trecho do Canto 81 de Ezra Pound. Não posso precisar meus sentimentos, mas a figura de um cínico é a que mais se aproxima das minhas lembranças. Eu me sentia um misantropo sem filosofia, a não ser algumas páginas de Nietzsche; um hedonista e seu inseparável aguilhão, o desespero.

Mas o poema estava lá, na parede entre os dicionários e o telefone, letras imperfeitas e grandes, linhas tortas, escritas sem grande cuidado. O poema estava ali todos os dias. Era uma promessa — “O que amas de verdade não te será arrancado” —, mas também uma advertência: “Abaixo tua vaidade / Tu és um cão surrado e largado ao granizo”. Não era uma condenação, longe disso, mas um alerta: “o erro todo consiste em não ter feito”. O que fazer, eu me perguntava — eu, “ávido em destruir, avaro em caridade”. E a visita de Pound a Wilfrid Scawen Blunt era a resposta: colher “no ar a tradição mais viva / ou num belo olho antigo a flama inconquistada”.

O fragmento do Canto 81 substituiu a prece que eu me recusava a fazer. A literatura foi minha âncora enquanto não redescobri onde havia guardado meu coração.

julho 07, 2014

A celebração do telegrama — Plínio Salgado e “O Estrangeiro”

No Rascunho deste mês, escrevo sobre o primeiro romance de Plínio Salgado, O Estrangeiro, resposta direta à Semana de Arte Moderna, livro repleto de lugares-comuns, escrita telegráfica, bobagens linguísticas, filosofia confusa, nacionalismo exacerbado e horrores retóricos. Verdadeira tralha linguística.

julho 04, 2014

Reflexões para os momentos de desânimo

Às vezes, encontramos entre velhos papéis o pensamento adequado, a anotação feita há muito tempo, mas que hoje ressurge para oferecer, novamente, seu pleno sentido:

“O verdadeiro destino de um grande artista é um destino de trabalho. Em sua vida chega a hora em que o trabalho domina e conduz sua destinação. As infelicidades e as dúvidas podem atormentá-lo por muito tempo. O artista pode vergar sob os golpes da sorte. Pode perder anos numa preparação obscura. Mas a vontade de obra não se extingue desde que ela encontrou uma vez seu verdadeiro foco. Começa então o destino de trabalho. O trabalho ardente e criador atravessa a vida do artista e confere a essa vida virtudes de linha reta. Tudo vai em direção à meta numa obra que cresce. Cada dia, esse estranho tecido de paciência e entusiasmo torna-se mais ajustado na vida de trabalho que faz de um artista um mestre.” — Gaston Bachelard

junho 27, 2014

Raskólnikov e eu

Quando li Crime e castigo a primeira vez, estava absorvido por múltiplas e desordenadas leituras, tinha uma compreensão maniqueísta da existência, Vladimir Ilitch Lenin acabara de surgir no meu horizonte como a figura perfeita do herói, a desagregação existencial que Antonio Callado mostra em Quarup parecia-me inata à condição humana e, meses mais tarde, eu me aventuraria numa viagem confusa e decepcionante à Bahia, disposto a recomeçar minha vida em alguma comunidade paupérrima que, acreditava, me apresentaria o verdadeiro Brasil.

Como descobri muito tempo depois, todos nós temos o pleno direito de sermos idiotas aos dezessete, vinte anos. E exerci esse direito plenamente, inclusive no que se refere às minhas leituras.

É uma pena que eu não tenha mais aquela edição de Crime e castigo, na qual anotei com sofreguidão, nas últimas páginas, elaboradas ofensas a Dostoiévski, criticando-o por permitir que seu personagem alcançasse a redenção. E como detestei Raskólnikov quando ele se lançou aos pés de Sônia, derrotado pelo amor. “Não, não, não!” – meu cérebro gritava, apegando-se a um niilismo infantil.

Duas décadas se passaram até que eu relesse o romance, agora de maneira quase febril, exaltado pela narrativa, negando-me, desde a primeira página, a qualquer tipo de distanciamento crítico. Eu desejava ler pelo prazer de ler.

Se havia algum resquício do jovem da primeira leitura, ele morreu ali, página a página, até chegar ao Epílogo, quando foi definitivamente sepultado. Nunca agradeci tanto a um escritor. A redenção de Raskólnikov era a minha redenção. Se aquele assassino podia zerar o passado e reiniciar a vida, então também para mim – e para todos – o recomeço seria possível. E a pena de sete anos, diante da paz interior finalmente encontrada, era uma insignificância.

Em abril de 2013 – ou seja, quase duas décadas depois dessa última leitura –, uma amiga, Lorena Miranda Cutlak, analisou com agudeza o Epílogo do romance. Ali está tudo o que eu gostaria de escrever. Ali está, esmiuçada, a dívida que temos com Raskólnikov.

junho 24, 2014

Karl Kraus, grande ironista

Leiam as duas cartas a seguir. Do lado esquerdo, o semanário moscovita Krassnaia Niva pergunta a Kraus quais os efeitos e conseqüências da Revolução Russa para a cultura mundial. Mas a resposta não pode ultrapassar vinte linhas. O tom burocrático e repetitivo da carta – que sugere, claro, um teor encomiástico para a resposta – recebe o merecido sarcasmo de Kraus (à direita): de fato, o que a revolução fez pela literatura cabe em dez ou vinte linhas. 

junho 10, 2014

Camões e Flaubert: amor mais longo que a vida

O tempo que o amor exige não conhece medida. O soneto de Camões evoca a inesgotabilidade do amor verdadeiro – e a consequente resignação ao objeto desejado, a paciência que supera limites. Não importa que Raquel almejamos. Muito menos, que forma assume Labão em nossa história.

Relemos a correspondência de Flaubert e lá está Jacó, debatendo-se por Raquel, servindo Labão como infatigável operário. “É preciso uma vontade sobre-humana para escrever e eu sou apenas um homem”, ele diz, trabalhando sete horas por dia; e, ao fim de um mês, enganado, produz apenas vinte páginas.

Não é o amor de Jacó, disposto a servir mais sete anos, que Flaubert carrega? “Eu gosto do meu trabalho com um amor frenético e pervertido, como um asceta do cilício que lhe arranha o ventre.” E não se sujeitou a sacrifícios, não se humilharia ainda mais, “ se não fora para tão longo amor tão curta a vida”?

Tal amor, sempre a um passo da obsessão, mostra-se, o soneto não conta, às vezes infértil. Em maio de 1852, Flaubert diz sentir-se “estéril como uma pedra”. Na história de Raquel e Jacó, o filho nasce depois de longa insistência. Será o favorito, José, mas a fala de Raquel não esconde o alívio: “Deus tirou o meu opróbrio”. Flaubert, contudo, não se permitiu o contentamento – sabia que “a palavra humana é como um caldeirão rachado, no qual batemos melodias próprias para fazer dançar os ursos, quando desejaríamos enternecer as estrelas”.

No fim, diante da obra terminada ou do filho, o que resta, senão amor? Amor que Camões adivinhou sob a plenitude, a totalidade do número 7. Amor mais longo que a vida.

junho 07, 2014

Hoje, lançamento de “Esquecidos & Superestimados” em Santos

Espero os amigos santistas hoje, às 17h, na Livraria Realejo, para o lançamento do meu novo livro, Esquecidos & Superestimados. A Realejo fica no Gonzaga, na Rua Marechal Deodoro, nº 2. Também participarei, com a mediação do jornalista e editor Rodrigo Simonsen, de um bate-papo sobre literatura e crítica literária. Até lá!

junho 04, 2014

Mediocridade e valor — o caso “A marquesa de Santos”, de Paulo Setúbal

Otto Maria Carpeaux estava certo: “Não existe relação entre os valores literários e os efeitos sociais: o sucesso não é prova de valor; a mediocridade não exclui consequências benéficas”. É o que mostro no ensaio que escrevi para a edição deste mês do jornal Rascunho, em que analiso o romance A marquesa de Santos, de Paulo Setúbal, um best-seller da literatura brasileira.

maio 31, 2014

Reações ao Decreto 8.243 — a sociedade ainda respira. Até quando?

A principal característica de um governo esquerdista é que ele jamais se contenta em governar de acordo com a ordem legal, instituída. Ele sempre acredita que detém a chave, a poção, a receita miraculosa para transformar o país no que, ele imagina, será o melhor dos mundos. O problema é que o melhor dos mundos, quando se trata da esquerda, está sempre próximo do que imaginamos ser o Inferno, quando não é o próprio Inferno.

A prova do que afirmo encontra-se não apenas na história das revoluções — vejam o Purgatório congelado no tempo em que Cuba se transformou, sobrevivendo graças à submissão de um povo sem esperança e sem armas e à propaganda esquerdista mundial, ou os milhões de crimes perpetrados pelo comunismo soviético —, mas também no presente, no cotidiano da sociedade brasileira, sequestrada, em grande parte, pelo pior tipo de populismo que já conhecemos, superior, em método e recursos, aos refinamentos do getulismo.

Esta semana, mais uma vez, o governo ensaiou uma tentativa de golpe. O alarme foi dado pelo editorial do Estadão, “Mudança de regime por decreto”, e rapidamente se espalhou pelas redes sociais e blogs, transformando-se em um fenômeno viral.

De fato, enquanto os políticos de oposição dormem, refestelados em seus altos salários e mordomias, parcela da sociedade vigia, atenta, os ensaios para se criar uma ditadura. As reações foram múltiplas: Reinaldo Azevedo pontificou: “A ‘democracia direta’ de Dilma é ditadura indireta do PT”. Alexandre Borges deu uma breve mas incisiva aula de história em “Todo poder aos sovietes petistas”. Felipe Moura Brasil denunciou a lentidão dos tucanos, sempre envergonhados ou sempre pactuando silenciosamente com o governo, no post “Ronaldo Caiado sai na frente de Aécio: ‘É golpe do PT!’”. No artigo “Um tumor inserido por decreto”, Fábio Blanco sangrou ainda mais a manobra traiçoeira. E Milton Simon Pires não deixou por menos: mostrou, em “Brasil 8243”, como o PT pretende destruir as instituições do país.

O mais didático e irônico, contudo, foi Erick Vizolli, no sempre ótimo Liberzone. No artigo “Afinal, o que é esse tal Decreto 8.243?”, Vizolli mostra que o sistema representativo, apesar de todos os seus defeitos, ainda é a única forma de nos protegermos de um Estado controlado por grupos que não têm compromisso com a democracia ou a liberdade, mas apenas com suas próprias ideologias.

Todos esses articulistas me recordaram as reflexões de Roger Scruton em The Uses of Pessimism and the Danger of False Hope (As vantagens do pessimismo, Editora Quetzal, Lisboa). No Capítulo 6, “A Falácia do Planeamento”, Scruton faz uma brilhante analogia entre a estrutura da União Europeia e a forma como Lenin aboliu, na Revolução Russa, “todas as instituições através das quais o partido e seus membros pudessem ser responsabilizados pelo que fizeram”, permitindo que um erro se sucedesse a outro, sempre maior, sempre mais criminoso.

Scruton reflete como se tivesse acabado de ler o decreto de Dilma Roussef: “Quando os poderes de Governo estiverem adequadamente repartidos e quando os que detêm a soberania puderem ser expulsos por uma votação, os erros podem encontrar o seu remédio. Porém suponhamos que as instituições de Governo estão montadas de tal maneira que toda a concentração de poder é irreversível, de modo que os poderes adquiridos pelo centro nunca podem ser recuperados. E suponhamos que aqueles que mandam no centro são nomeados, não podem ser afastados a pedido do povo, encontram-se em segredo e guardam poucas ou nenhumas atas das suas decisões. Acha que, nessas circunstâncias, existem condições em que possam ser retificados erros ou mesmo convincentemente confessados?”.

Todos os infinitos casos de corrupção; todas as manifestações de ódio coletivo que têm tomado as ruas; o longo e incansável trabalho de controle ideológico feito pelo Ministério da Educação, censurando, de forma velada, o conteúdo de milhões de livros didáticos distribuídos país afora; todas as tentativas de manter sob vigilância a mídia e a Internet; o evidente controle do Executivo sobre parcela do Congresso e do Supremo Tribunal Federal — tudo contribui para transformar o Decreto 8.243 na cereja do bolo.

Se ainda podemos ter alguma esperança, ela reside no fato de que eles sempre acabam destruindo uns aos outros. “Doze vozes gritavam cheias de ódio e eram todas iguais. Não havia dúvida, agora, quanto ao que sucedera à fisionomia dos porcos. As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já se tornara impossível distinguir quem era homem, quem era porco” — conta George Orwell no final de A Revolução dos Bichos.

maio 27, 2014

Dolly Freed, uma chestertoniana inconsciente

Graças à indicação de meu amigo Sílvio Grimaldo, tenho lido, antes de dormir, o divertidíssimo Possum Living: How To Live Well Without A Job And With (Almost) No Money, escrito por Dolly Freed no final da década de 1970.

Não, não se trata de algo semelhante a Walden, de Henry David Thoreau, ainda que o despretensioso livrinho de Dolly tenha sido sequestrado pelos seguidores do movimento Simple living.

Dolly Freed não está interessada em atacar uma suposta “sociedade de consumo”. Ao contrário da tediosa linguagem de cunho ideológico, ela nos oferece humor, ironia. Numa das partes dedicadas à alimentação, recomenda, por exemplo, que os humanos só devem ser comidos em casos de emergência, pois sua carne é fibrosa e carente de vitamina B.

Ela escreve com franqueza contagiante — e ainda que eu não esteja disposto a viver totalmente como Dolly propõe, um estilo de vida que ela própria se viu forçada a abandonar, o livro é um delicado convite à simplicidade, a buscar o que é realmente essencial, como a bondade e a alegria. Possum Living é a obra de uma chestertoniana inconsciente. 

maio 22, 2014

Hoje, lançamento de “Esquecidos & Superestimados” em Curitiba

Espero os amigos curitibanos hoje, às 18h30, na Livraria Danúbio, para o lançamento do meu novo livro, Esquecidos & Superestimados. A Danúbio fica no Batel Soho, na Alameda Prudente de Moraes, 1239. Até lá!

maio 19, 2014

Só um alienista pode salvar o país

Quando o populismo e a demagogia imperam — exatamente como acontece nos últimos anos no Brasil —, a cultura pequena predomina, ganha altos postos e financiamentos soberbos.

É curioso o discurso dos que justificam o rebaixamento de Machado de Assis a uma linguagem popular, supostamente acessível ao povo: enquanto lança perdigotos, o magnânimo evangelizador literário das massas, com a serenidade típica de um cônego que recolhe esmolas apenas para garantir o próprio consumo de presunto e vinho, desfia seu amor desabrido, realmente perdulário, não ao dinheiro captado graças à esdrúxula Lei Rouanet, mas à “copeira do escritório”, ao “balconista da farmácia”, ao “motorista de táxi”.

Chegam a ser comoventes esses padrinhos e madrinhas dos pobres iletrados brasileiros. Quanto amor! Quanta prodigalidade! Se pudessem, levariam a cada lar um volume de Machado de Assis. E de quebra, quem sabe, uma terrina de caldo de galinha! Ah, se pudessem!, esses médicos de almas sentariam à cabeceira de cada brasileiro, cobrindo as cabecinhas pouco iluminadas do povo com suas infalíveis compressas de cultura.

Quanto paternalismo! Quanta simulação de virtude! Quanta receita infalível e pretensiosa, enquanto o país rasteja para se agarrar às últimas posições de todas as estatísticas, de todos os índices, de todas as pesquisas que avaliam níveis de educação.

É fácil construir um túnel de livros, criar impacto numa mídia sedenta de impacto e se dizer benfeitor da cultura. O difícil é, com giz e lousa, sob o sol e a chuva, no verão e no inverno, na caatinga, na Amazônia ou sob uma árvore raquítica no quintal de casa, ser professor, formar uma nova geração, preparar bons leitores de Machado. Isso ninguém quer fazer – e os que fazem, os que realmente se dedicam a educar, para esses não há Lei Rouanet, mas só o minguado contracheque.

É realmente irônico, machadiano demais, que a salvação literária nacional seja oferecida ao povo por meio de um alienista. Alienista de roupinha puída, doutorzinho medíocre, de poucas luzes, perfeito para os burros doidos deste país.

Mas não deixemos que a ironia nos engane. No substrato dessa proposta, na base de um Estado que acolhe e ajuda a financiar tal projeto, só há vulgaridade. Ortega y Gasset estava, desgraçadamente, certo: a vulgaridade tornou-se um direito – e domina toda a vida pública.

maio 15, 2014

Flávio Morgenstern contra o falso iludido contente

“Estou chocado!”, repete o opositor de Flávio Morgenstern no debate. É a reação do típico intelectual esquerdista: finge indignação; conhece a verdade, mas prefere escondê-la sob o discurso faccioso, sempre pronto à exaltação do regime e da ideologia a que serve.

Poderia ser apenas a reencarnação do Dr. Pangloss, mas não: mentir tantas vezes, distorcer os fatos repetidamente, torna-se uma segunda pele. No fim, ele já não sabe a diferença entre mentira e verdade – e se transforma no que chamo de falso iludido contente.

Vejam o debate. E constatem: nem mesmo altas doses de realismo conseguem arrancar desses fantasistas profissionais um renovador minuto de honestidade.

maio 10, 2014

Hugo von Hofmannsthal no Estábulo de Áugias

A obra de arte

Cada verdadeira obra de arte é a planta do único templo que existe na Terra.

Qual voz o escritor seguirá?

Para aquele que produz não há nenhuma prova mais séria do que procurar reconhecer se o que, de um passo para outro, o coage e previne é o seu verdadeiro gênio ou a voz pusilânime das suas influências: se, ao adquirir a forma, obedece ao que nele há de mais elevado ou de mais baixo.

O absurdo inominável

A função da obra poética é proceder à depuração, estruturação, articulação do material da vida. Na vida reina o absurdo abominável, um furor horrível da matéria – por hereditariedade, coação interior, estupidez, maldade, vileza que no íntimo se radica –, no domínio espiritual uma desordem e inconsistência até ao inacreditável – este é o estábulo de Áugias que tem de ser limpo continuamente e quer ser transformado num templo.

Ir além de si próprio

As pessoas exigem que uma obra poética fale com elas, lhes diga qualquer coisa, com elas se familiarize. Porém, as obras de arte superiores não fazem isso, assim como a Natureza também não se familiariza com as pessoas; a obra está aí e leva o homem para além de si próprio – se ele estiver concentrado e pronto para isso.

Obedecer a que público?

O paradoxo da existência literária é que o público da época deseja uma alimentação diferente da que reclama o público sobreepocal.

maio 09, 2014

O pão de cada dia

Em março de 2009, neste blog, falei sobre o texto de dois críticos que atuavam em campos diferentes do meu: Luiz Américo Camargo, na gastronomia, e Lauro Machado Coelho, na música erudita.

O que afirmei na época continua valendo: ambos recusam o discurso dúbio – a crítica ambígua sempre esconde covardia intelectual – e seus textos são destituídos da empáfia, cada vez mais comum, de quem pretender criar um novo gênero literário, quase sempre carregado de linguagem hermética.

Lauro, infelizmente, não escreve há bom tempo. Mas Luiz Américo continua a presentear os leitores com seu texto leve, sem metáforas excêntricas e, o principal, sem medo de avaliar, de forma clara e isenta, os restaurantes que visita.

Críticos assim não devem permanecer confinados à página do jornal; seus trabalhos merecem um número crescente de leitores. Foi, portanto, uma agradável surpresa descobrir que Luiz Américo lançou o primeiro livro. Agradável por dois motivos: primeiro, porque minha mulher e eu gostamos de cozinhar; fomos criados por mães, avós e bisavós que cultuavam os bons pratos e as receitas familiares, de geração a geração. Nossas cozinhas sempre foram um espaço de convivência fraternal e descobrimos nelas, todos os dias, alguma forma de alegria. E o segundo motivo: o livro de Luiz trata do alimento que é a síntese da nossa cultura: o pão.

Não me aprofundarei aqui em simbolismos – e não listarei as dezenas de lembranças que explodem na minha memória quando sinto o perfume dos pães que acabam de sair do forno. Seria repisar sensações comuns, conhecidas por todos. Mas é exatamente aí que nasce a importância do livro de Luiz Américo: falar de algo que, sob uma aparência trivial, esconde a base da civilização.

Acrescente-se a esses fatores o saboroso texto do autor – vejam, por exemplo, a crônica “As mãos sujas”, em que ele mescla existencialismo à arte de fazer os próprios fermentos – e teremos um livro que, além de todos esses prazeres, tem a delicadeza de nos ensinar a fazer o pão de cada dia.

maio 07, 2014

Tediosa floresta — Gastão Cruls e “A Amazônia misteriosa”

Analiso, no Rascunho deste mês, o romance que Gastão Cruls escreveu inspirado em A ilha do Dr. Moreau, de H. G. Wells. Este é um trecho do meu texto:

O que não seria problema nas mãos de um bom escritor transforma-se, na pena de Gastão Cruls, em obstáculo intransponível: o livro foi escrito sem que ele conhecesse o Norte do país, a não ser “através de numerosa e selecionada bibliografia”, diz a nota da Editora José Olympio; seu primeiro contato com a Amazônia só ocorre em 1928, quando acompanha a expedição do Marechal Rondon à fronteira do Brasil com a Guiana Holandesa, atual Suriname.

Seu apego à bibliografia — e não à sua capacidade de fantasiar; o desejo de escrever uma obra que fosse réplica da floresta — e não exercício de verossimilhança; a aflição evidente de transpor para o livro cada mínimo elemento amazônico, atribuindo-lhe seu nome específico; tudo contribui para a criação de uma narrativa artificial, que obriga o leitor ao exercício de consultar, página a página, o “Elucidário”, formado por cerca de 250 palavras. Usar a expressão “o lago estava saru”, por exemplo, é condenar a um vazio mental o leitor que não domina os regionalismos.

— A íntegra do ensaio está disponível no website do Rascunho.

maio 06, 2014

Reminiscências do mundo dos sonhos

Para onde nos levam os sonhos? Ao caminharmos, indefesos, nessas trilhas de símbolos, seguimos para que estranho, desconhecido país?

O mundo onírico é mais do que a tela na qual se projetam desejos que anseiam por se realizar. Cada sonho guarda um convite ao autoconhecimento; cada viagem empreendida ao subterrâneo da mente esconde um sinal que, às vezes repetitivo, insiste no sentido de desvendarmos nosso eu.

Assim, quando acordo e percebo que a memória preserva o itinerário da viagem noturna, acalento essas lembranças – talvez fragmentadas – como se formassem o mapa de uma aventura que clama por ser reconstituída; tarefa que, realizada pela mente em vigília, pode oferecer o tesouro – quem sabe inominável segredo – escondido em algum ponto de chegada. Procuro, então, revisitar, durante o dia – e, muitas vezes, esforçando-me por continuar a fazê-lo nos dias seguintes, quando pressinto que a lembrança do sonho já se esvai –, as mesmas etapas noturnas, como o menino que, encontrando no caminho à sua frente as pegadas de um adulto, tentasse colocar seus pés, passo a passo, nas marcas deixadas na terra, que ele só consegue alcançar com grande esforço.

Há algumas noites, depois de longa conversa com minha mulher sobre o processo de criação de alguns textos, enveredei mais uma vez, durante o sono, para o meu labirinto pessoal. Deparei-me comigo, ainda criança: um menino de nove ou dez anos. Freqüentava uma escola dirigida por religiosas e, naquela manhã, chegando com outras crianças para a aula, percebi que o centro da escada de metal, por onde subíamos para entrar nas classes, fora retirado. Alcançando determinado degrau, eu tentava pular o vão que me levaria à parte superior da escada, mas meus esforços eram inúteis. Desci, então, resolvido a buscar um atalho, pois a aula começaria em poucos minutos. Nesse momento, uma freira se aproximou de mim e, demonstrando conhecer minha dificuldade, instruiu-me sobre o caminho alternativo. Mais trabalhoso, disse-me ela, com o sorriso que revelava a promessa de uma opção agradável, prazerosa. Eu deveria sair do prédio, orientou-me a irmã, circundá-lo, encontrar a fonte existente em algum ponto do terreno, mergulhar nela, atravessar a nado um trecho submerso e voltar à tona mais à frente, quando encontraria a entrada para a classe. Aceitei as orientações e, mesmo notando a existência de outra escada, esta semelhante à do sobrado em que passei minha infância, decidi seguir em frente. Cruzo o longo gramado que ladeia o prédio e encontro-me diante de uma fonte circular, na qual mergulho sem hesitação. Lá, sob a água cristalina e iluminada, em um espaço surpreendentemente amplo, deparei-me com o cenário deslumbrante: no centro havia uma coluna formada por outra qualidade de água, ainda mais transparente e mais luminosa do que aquela onde me encontrava; e por essa coluna subiam, rumo à superfície, exemplares – animados e inanimados – de tudo o que compõe a realidade. Esse conjunto imensurável vinha de uma região subterrânea, e cada exemplar demorava-se alguns segundos à minha frente, para depois continuar em sua rota ascendente. Alegremente atônito, deixei-me ficar ali, esquecido das aulas, maravilhado com o espetáculo. E foi com inigualável sentimento de completude que acordei.

Ainda sentado na cama, meus pensamentos dividiam-se entre buscar uma explicação para o sonho e, ao mesmo tempo, rememorá-lo sem perder os detalhes. Finalmente, poucos minutos depois, antes de iniciar os afazeres do dia, enquanto ainda concatenava minhas idéias, não sei quais associações fizeram-me lembrar do poema de Eugenio Montale:

Talvez uma manhã andando num ar de vidro,
voltando-me, verei cumprir-se o milagre:
o nada às minhas costas, detrás de mim
o vazio, como um terror de bêbedo.


Depois como numa tela, acamparão de um jato

árvores casas colinas para a ilusão costumeira.
Mas será tarde já; e eu partirei calado
entre os homens que não se voltam, com o meu segredo.


Com o livro de Montale aberto, meu primeiro pensamento dava-me a certeza de que a verdade não estava nas aulas que assistiria, se tivesse conseguido saltar de um trecho a outro da escada. A verdade jamais esteve no ambiente repressivo da classe de aula, com suas filas de carteiras paralelas e professores, a maioria deles, incapazes de me mostrar o que subsistia para além da lição diária. A quase alegria com que percebi a ausência dos degraus e o sentimento de inevitável necessidade de buscar outro caminho deflagraram a certeza de que eu não voltaria ali, de que uma experiência singular me aguardava. É certo: a verdade, sempre encontrei-a em outro lugar, oposto àquele apontado pela escola.


Foi fácil, portanto, recusar inclusive a segunda escada. Sua semelhança com a que existira na casa onde passei minha infância deixou-me desconfiado. E a repentina solução para um problema que, há poucos segundos, apresentava-se insuperável, contribuiu para que eu me afastasse dali, desprezando o atalho, movido pelo desejo de conhecer o ignorado.


Certamente não era à toa que as vestes da religiosa – notei bem enquanto ela me falava – refulgiam em um branco tão ofuscante quanto o que encontrei difuso na atmosfera do pátio gramado; e que, depois, se repetiria sob a água. Como se eu vivesse a manhã envolta no “ar de vidro” de Montale, empenhei-me naquela jornada, sob uma luz insólita e, em breve, com um novo olhar.


A intensa claridade abarca, de fato, esse sonho, tornando-o um rito de passagem no qual o cenário se impregna do branco como nos rituais de batismo. Todas as cores estão reunidas sob a alvura, a tonalidade que marca o amanhecer, quando a aurora reveste os seres, a vida, dessa coloração que nos prepara a um novo começo, desperta-nos da letargia noturna e nos estimula ao enfrentamento da existência. O branco está associado ao reinício, ao recomeço, ao renascimento que se segue à noite, à morte. Eu abandonava a penumbra fria do prédio escolar para ser impregnado pela luz, envolvido por uma claridade que chegava a ofuscar minha vista; mergulhava na fonte, onde a luz fundia-se à água, esta também um símbolo de regeneração. E o fazia não em qualquer lugar, não em um lago estagnado ou num mar tormentoso, mas sob as águas de uma imponente fonte circular; ela também, recordo-me, toda branca, agitando a água de forma inesgotável.


Ali, de volta ao começo, de volta ao elemento no qual tudo teve origem, vislumbrei o centro por onde passam as coisas e de onde elas convergem à vida. No centro do líquido translúcido conheci os elementos da realidade em sua forma original, primeva, quando ainda não estão nomeados, quando ainda não foram classificados e diminuídos pelo homem.


Mas, imerso na transparência, equilibrando-me sob a pressão da água, não apenas os elementos da vida mostravam-se novos. Eu também havia retornado à infância, quando tudo está por ser descoberto. E sentia-me – espectador e personagem do meu sonho – como se pudesse, a partir daquele momento, reiniciar minha trajetória e buscar o que, por acaso, houvesse perdido.


Meu sonho foi, logo, diferente do vivenciado por Montale, pois se o poeta vislumbrou o terror que se esconderia sob o que parece ser o real – para ele, o vazio, o nada –, eu me aproximei do reinício de tudo e percebi o oposto: a urgência de captar a verdadeira face da realidade.


Terminado o sonho, pressenti também ser tarde para retornar à mesmice da carteira escolar e das receitas oferecidas pelos homens que jamais “se voltam”. Talvez exatamente por essa razão tenha relembrado, ao acordar, o poema de Montale: porque, assim como ele, a partir daquele sonho – e em todas as manhãs, esforçando-me para repetir o ritual onírico de maneira consciente – eu devesse calar-me “entre os homens que não se voltam”, entre os homens que não sabem olhar, e carregar comigo “o meu segredo”...


A mensagem, certamente há muito dentro de mim, mas galvanizada pelo sonho, repete-me a necessidade de transpassar o real banalizado, esforçando-me por redescobrir a verdade das coisas. O sonho me diz que meu olhar deve despir a realidade da camada de fantasia que lhe pespegamos diariamente; que devo reiniciar meu exercício de observação a cada momento, a fim de redescobrir, sob a mesmice do cotidiano, o caráter inusitado do real.


Esta é a revelação do mundo onírico: devo obrigar-me a enxergar a realidade a partir do seu centro, de onde ela desborda para o que é habitual – resgatar a verdade preservada em cada elemento, seja ela trágica ou pueril, inocente ou terrível.


De todos os enigmas que a noite e o sono semeiam, de todos os sonhos que carrego comigo – um patrimônio que cabe à lucidez decifrar –, dessas imagens noturnas que sobrevivem durante a vigília, esta que acabo de descrever insufla em minha consciência também uma pergunta: o que será daquela criança, embevecida frente à coluna de luz e água por onde passa o universo? Ela não deveria retornar ao pátio gramado, ao convívio dos homens, e ali, dona agora dessa nova forma de olhar, dessa visão que lhe parece inaudita, transmitir os frutos da sua descoberta? Ou, como Montale, resta-lhe apenas viver solitária entre os homens, carregando o seu segredo?


Tal possibilidade, contudo, assemelha-se à segunda escada que surge em meu sonho, pois oferece uma facilidade ilusória. Se a conclusão de Montale à sua angústia é o poema – e não o silêncio –, então ele desejou oferecer aos homens uma tocha capaz de iluminar o desconhecido e diminuir a incerteza que, a cada esquina, nos aguarda.


Da mesma forma, estas linhas são uma pergunta e, também, sua própria resposta. Por meio delas retorno ao pátio ensolarado e busco meus semelhantes, disposto não a lhes denunciar, com pessimismo, a “ilusão costumeira” de Montale, mas pronto a redescobrir o real. E, principalmente, esforçar-me por revelá-lo com o vigor esquecido pela maioria.

abril 23, 2014

García Márquez menos o mito

Poucas vezes encontrei, principalmente nos últimos dias, um julgamento tão equilibrado sobre o autor de Cem anos de solidão. Refiro-me ao ótimo artigo de Rafael Gómez Pérez, do qual coloco um trecho a seguir — texto que vai na contramão do endeusamento patrocinado pela esquerda e coloca Gabriel García Márquez no seu devido lugar:

García Márquez foi um excelente contador de histórias, oferecidas numa linguagem quase sempre muito inventiva. Mas nós não gostamos apenas de ouvir histórias; também apreciamos encontrar um pensamento de fundo, uma concepção de homem, um tema denso. Por isso Homero, Dante, Cervantes, Shakespeare e Goethe são imortais... Ou, em tempos mais modernos, Tolstói e “Guerra e Paz”, ou Dostoiévski em quase toda a sua obra, principalmente em “Irmãos Karamazov”; ou a longa evocação de Proust, ou Thomas Mann em “A montanha mágica”... García Márquez não está nesse grupo, no qual poucos entraram até hoje. Ele está no grupo dos que entretêm contando algumas histórias assombrosas, que seduzem enquanto duram, ainda que, ao final, deixem um não sei quê de inconsistência. É o que se verá quando o mito perder a força e García Márquez estiver no lugar que lhe corresponde.

Recomendo que leiam a íntegra desse artigo justo e lúcido, García Márquez menos el mito.

abril 04, 2014

Ódio ao português – Antônio Torres e “As razões da Inconfidência”

No jornal Rascunho deste mês, escrevo sobre Antônio Torres, esquecido autor mineiro, cronista ferino e ácido que fez enorme sucesso entre as décadas de 1910 a 1930.

Na contramão da eloquência nacional, Torres repete nos textos o rigor que pautava sua conduta, sempre ética. Em Da correspondência de João Epíscopo (1917), não basta mostrar a teimosia com que Antônio Austregésilo Rodrigues de Lima, neurologista escolhido para a Academia Brasileira de Letras em 1914, abusa do chavão “de oradores de comícios, chapa retórica inteiramente gasta”, mas é preciso tripudiar, de forma didática, sobre o “venturoso clínico”:

[...] A sua frase vai, volta, sobe, desce, anda, desanda, empaca, corre um centímetro, enguiça logo depois, resvala para a direita, escorrega para a esquerda, range nas engrenagens, emperra, torna a mover-se, embaraça-se imediatamente, faz novo e último esforço para voar e vai engastalhar-se definitivamente no beco sem saída de um ponto final. Aí o motor de V. Exa. dá uma descarga; o aparelho começa então a funcionar, trepidando; a frase volta ao ponto de partida; tenta tomar nova direção; anda um instante, vibra e paf! novo empacamento! V. Exa. força a manícula; abre a caixa de gases; a frase sai zimbrando (como diria o Sr. Coelho Neto), às curvetas e ziguezagues, em linhas quebradas e sinuosas, e, cansada, arquejante, impotente, despedaça-se no ímpeto de uma derrapagem. Trilam apitos; corre gente, acode a polícia, grita a multidão: Não pode! Não pode! Prende! Lincha! Nisto se ouve tilintar aflitamente a campainha e é a Assistência que chega para socorrer o leitor desfalecido!