Todos os aspectos da realidade interessam ao escritor |
Imagine uma cena: você
está no ponto do ônibus, voltando do trabalho; anoitece; a fila é grande,
algumas pessoas reclamam, a maioria está muda e cansada. O ônibus, com o motor
ligado, mantém as portas fechadas, o que aumenta a impaciência de todos. Faz
calor. Você está no meio da fila, pensando se conseguirá sentar ou não. Atrás
de você, uma mulher; você a observou rapidamente há alguns segundos, mas não
percebeu nada de especial. De repente, um barulho estranho: você se vira
instintivamente e vê a mulher aos prantos, transtornada — há desespero no
choro, ela se curva sobre si mesma e, soluçando, cai de joelhos na calçada.
Qualquer pessoa normal tentará
ajudá-la, não é mesmo?
E um escritor, o que
faria?
…
Ele ajudaria também,
claro!
Quando chegasse em casa,
contudo, seria capaz de reconstituir a cena — toda a cena —, do momento em que
chegou no ponto até o choro inesperado e o que ocorreu depois.
Mas não só.
Suponhamos que a mulher
não tenha verbalizado o motivo do seu choro. Suponhamos que, passados cinco
minutos, restabelecida, ela tenha ido embora — ou entrado no ônibus e, em
silêncio, descido alguns pontos depois.
Você continuou a
observá-la, sem dúvida, apesar do ônibus lotado. Observou-a tanto, que pode
descrever seu rosto, seu cabelo, a roupa,
vários outros detalhes.
Esse interesse e essa
capacidade fazem de você um candidato a escritor.
Mas não só.
Faltam elementos para
completar essa forma especial de atenção: você precisa ser capaz de imaginar 10
motivos — ou 20 — para o comportamento dessa mulher.
10 motivos verossímeis.
Você precisa conectar essa
mulher — seus traços, seu modo de andar, sua forma de chorar, suas roupas, o
detalhe do esmalte gasto nas unhas das mãos, o couro puído da bolsa que ela
carregava —, você precisa conectar esses pormenores ao cenário da rua e,
principalmente, a um passado e a um futuro.
Se você consegue imaginar,
de forma consistente, o passado e o futuro dela, ligando-os aos possíveis
motivos do seu choro, então você está se tornando — ou já é — um escritor.
Claro, não falo aqui sobre
o ato de escrever, de realmente dar vida à história, pois o objeto deste post é a forma especial de atenção que o
escritor precisa ter.
Por causa dessa atenção,
muitos dizem que os escritores sofrem de uma doença terrível: vampirismo.
Eles estão certos.
Todos os aspectos da
realidade interessam ao escritor. Ele deve possuir uma perspicácia especial,
uma inteligência atenta, uma forma de ver os acontecimentos sem se prender a
eles, mas indo além, tentando sempre descobrir o porquê, o como, as
conseqüências.
Às vezes, da janela do meu
apartamento, vejo um menino que desce para jogar bola à noite, na pequena
quadra do condomínio. Ele sempre está sozinho. E fica chutando sua bola contra
o gol durante longo tempo. Eu o observo. O som da bola batendo contra o aramado
repercute no vão entre os prédios e sobe até meu andar.
Para um escritor, esse
menino não é apenas um garoto solitário. Não. Esse menino é uma história. Um
drama, talvez. Nele se concentram dores, expectativas, alegrias.
O escritor o observa,
senta à escrivaninha e sabe tudo: sabe o que se esconde em cada chute, o que
pulsa no coração do menino.
E sabe, principalmente,
porque esse menino o faz escrever. Afinal, o escritor só consegue ser um bom
observador dos outros porque observa a si mesmo.
O escritor precisa ser um mestre da atenção.
Um comentário:
Muito bom! Parabéns!
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