Cada autor cria um método particular de vencer obstáculos |
Sempre que falo sobre a
disciplina que o escritor precisa ter, lembro-me de outras questões importantes.
Todos os dias, no mesmo
horário, cumprindo seu ritual, o escritor impõe a si mesmo a tarefa de arrancar
da imaginação certo número de páginas.
Ele não segue um padrão, a
não ser as variações do seu próprio estilo. Qualquer outro padrão significaria
tornar-se repetitivo, enfadonho, como certos escritores que, de livro a livro, confundem
ter estilo com repetir os mesmos cacoetes linguísticos.
O estilo é a marca do
escritor. Mas isso não significa que ele segue, a cada livro, a mesma fórmula —
ou que utiliza manuais com modelos de cartas de amor, redações para vestibular
ou petições forenses, a fim de simplesmente adaptá-los à sua necessidade.
Seu estilo é sua
personalidade, que se expressa por meio do tom de narrar, da forma de construir
as frases, das escolhas vocabulares e de tantos outros elementos que compõem um
texto. E, como toda personalidade, é cambiante, apresenta variações.
Caso tenha planejado seu
livro, o escritor tem um norte, sabe para onde deseja levar sua história, seus
personagens — mas ainda precisa obrigar as palavras a dizerem exatamente o que
ele quer.
Nessa luta para não ser
controlado pela língua, para trabalhar a linguagem não como um limite, mas como
meio maleável de expressão, várias forças se debatem: o que existe em potência
na mente do autor; as emoções que despertam à medida que ele escreve; seu
conhecimento dos recursos da língua; o ambiente em que ele se encontra — com
todas as solicitações que podem desorientá-lo; seu estado físico e mental; os
escritores que o marcaram.
Karl Kraus, infelizmente
pouco traduzido no Brasil, expressa bem essa relação conflituosa com a língua:
“Não domino a língua, mas a língua me domina completamente. Ela não é a criada
de meus pensamentos. Vivo numa relação com ela em que concebo pensamentos, e
ela pode fazer de mim o que bem quiser. Eu a obedeço à letra. Pois das letras
salta o jovem pensamento ao meu encontro e dá forma retroativa à língua que o
criou. Semelhante graça de gestar pensamentos me obriga a ficar de joelhos e
transforma todo dispêndio de cuidado trêmulo em dever. A língua é uma senhora
dos pensamentos; ela pode ser útil na casa de quem consegue inverter essa
relação, mas lhe fecha o útero”.
Tratando a língua como
senhora ou escrava, a ansiedade é consequência natural desse embate, desse
enfrentamento que o escritor repete a cada dia.
Dominar essa tensão exige
autocontrole e descobrir, passo a passo, formas de obedecer ou ludibriar sua
oponente.
Já comentei aqui sobre a receita encontrada por Hemingway. Interromper o trabalho no momento em que,
“ainda não tendo perdido o gás”, ele poderia “antecipar o que vem em seguida”
permite superar uma forma de ansiedade. Mas dá vida a outra, como o próprio
Hemingway confirma: “A interrupção dá uma sensação de vazio, como quando se faz
amor com quem se gosta. E ao mesmo tempo não é um vazio, mas um
transbordamento. Não há nada que o atinja, nada acontece, nada tem sentido até
o dia seguinte, quando você faz tudo de novo. Difícil é viver a espera até o
dia seguinte”.
Cada autor cria um método
particular de vencer obstáculos, mas ainda considero o planejamento a melhor
ferramenta para o escritor principiante.
Um planejamento minucioso
contribui, inclusive, para eliminar a dependência da inspiração, ainda que ela seja
útil e se faça presente.
Um planejamento detalhado,
que não descarte possíveis mudanças de rumo, que esteja aberto à reelaboração,
pois nem sempre é possível seguir a bússola — o navio, às vezes, precisa fazer
uma ampla curva para contornar certa dificuldade e, só então, chegar ao
destino.
Trata-se também de não enxergar a escrita como uma carga, mas como um ofício. Um ofício que o escritor
impõe a si mesmo e realiza, apesar dos obstáculos, com arrojo e alegria. O mesmo Kraus que afirma ser escravo da língua exclama em outro
aforismo: “Oh deleite das experiências da língua, devorador da medula! O perigo
da palavra é o prazer do pensamento”.
Escrever é esse ofício que
se reconstrói, que se redescobre a cada dia — um “caminho que se faz ao
caminhar”, como afirma o sábio poema de Antonio Machado.
Um comentário:
Dicas valiosas!
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