O universo dos
cachimbos é repleto de itinerários sinuosos. Mas nenhuma cilada espera o
fumante, a não ser aquelas que ele próprio, por inexperiência, pressa ou
desconhecimento, arma contra si mesmo. E à medida que superamos os passos
iniciais, os cuidados básicos que cachimbos e tabacos necessitam para nos
recompensar – muitas vezes, com um prazer inesperado, surpreendente –, podemos
educar nossa sensibilidade dando atenção a detalhes não menos importantes.
Um campo sempre
aberto a investigações é o dos acessórios indispensáveis. Todo fumante conhece
e usa, por exemplo, a famosa ferramenta tríplice, sem a qual a arte de
cachimbar retrocede aos gestos grosseiros e hesitantes do primeiro homem que
decidiu saborear fumaça. E uma rápida pesquisa na Web pode mostrar como o design dessa ferramenta básica evoluiu e
se diversificou, adquirindo camadas de beleza e funcionalidade que, em muitos
casos, transformaram a pipe tool num
objeto artístico.
Como afirmei no
início, o fumante, com alguns poucos cuidados, pode evitar ciladas. Mas ele
jamais conseguirá prever as surpresas que o aguardam – principalmente se, ao
seu lado, existe alguém disposto a tornar seu ritual diário ainda mais
prazeroso.
Foi o que
ocorreu comigo há algumas semanas.
Minha esposa, a principal
responsável por eu ter começado a fumar cachimbo, esteve em Lisboa durante
alguns dias e, nos intervalos do trabalho, visitou a conhecida Feira da Ladra,
cujas origens remontam ao ano de 1272, reunião de vendedores dos mais variados
tipos, incluindo os que se dedicam ao comércio de antiguidades. Num tapete estendido
sobre a calçada, repleto de quinquilharias, depois de muita insistência e repetidas
perguntas ao comerciante idoso, ela encontrou, no fundo de uma caixinha em que
se aglomeravam os mais diferentes objetos, esta bela ferramenta:
Nem o próprio
vendedor sabia qual a utilidade do estranho conjunto de peças. E quando recebi
o presente, recorri, para ter certeza, a alguma pesquisa e a dois experientes
amigos da Confraria do Cachimbo, Cláudio Carvalho e Luiz Leal.
Esse instrumento
incomum, tão diverso dos tipos que encontramos atualmente, representa uma época
em que a pressa e a economia de gestos ainda não eram exigências urbanas. Só o
fumante talvez do início do século XX teria uma corrente presa ao colete, na
qual poderia levar o relógio e este artefato indispensável ao seu prazer; só
esse homem – com tempo disponível para desatarraxar calmamente a tampa, liberar
a ponteira em espiral, afofar o tabaco, recolocá-la no interior do socador e
fechar o conjunto – disporia de longuíssimos segundos e estaria pronto a
gastá-los com prodigalidade.
Mas o inusitado
presente não consegue apenas me transportar ao passado. Não. Ele me confirma
que o ato de fumar cachimbos é um exercício de paciência no qual a afobação não
tem lugar – uma cerimônia que me liberta da azáfama cotidiana, da pressão dos
prazos, do atropelo de São Paulo, e me conduz a um espaço de calma e silêncio
sem o qual é impossível pensar. Ou melhor, é impossível viver.
4 comentários:
Gurgel
Isso equivale a achar uma tumba com uma múmia desconhecida. Parabéns. Obrigado por compartilhar a experiência e as imagens do "misterioso" objeto.
Um abraço
Vaz
Excelente texto! Aliás, ótima descoberta (não do texto, mas do socador do cachimbo). Encontrei o meu numa de minhas idas à Pça. XV, Centro do Rio, num sábado pela manhã. Quando estiver em Lisboa em julho vou tentar encontrar algo bom por lá também.
Olá Gurgel, interessante o objeto, mas apesar das imagens não entendi... era para carregar o fumo ou é um modelo de cachimbo, fumava-se nesse apetrecho de metal? Um abraço.
Mário: essa ferramenta serve para socar ou afofar o tabaco dentro do fornilho do cachimbo.
Luiz e Gregório: obrigado pelos comentários!
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