Em
sua última entrevista, concedida à Revista
Visão em fevereiro de 1974, Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, que viria a
falecer poucos meses depois, diz que “conquistar a tragédia é [...] a postura
mais popular que existe: em nome do povo brasileiro, a conquista, a descoberta
da tragédia, você conseguir fazer uma tragédia, olhar nos olhos da tragédia e
fazer com que ela seja dominada”. Ele próprio explica melhor sua ideia, ao afirmar,
de maneira alegórica, que, diante da primeira tragédia, “o povo grego devia
sair em passeata, em carnaval”, conclamando: “finalmente temos a nossa
tragédia, descobrimos, olhamos, estamos olhando nos olhos os grandes problemas
da nossa vida, da nossa existência, da condição humana”.
Sem
desmerecer a dramaturgia de Vianinha, esses comentários representam perfeita introdução
à obra de Nelson Rodrigues, seu contemporâneo, com quem, aliás, se antagonizou no
início da década de 1960. E não me refiro apenas às peças teatrais de Nelson,
mas também aos romances e às crônicas, relançados pela Editora Agir. No volume O reacionário – memórias e confissões há
exemplos do que afirmo, a começar de uma constatação facilmente observável:
Nelson pode ser lírico, dramático ou histriônico, pode ser corrosivo ou meigo,
mas é sempre desmesurado, chegando a paroxismos. Tal busca do excessivo é não
só dramática, mas trágica. Não importa se o texto tem a acrimônia das suas
posições antiesquerditas, a sagacidade de sua psicologia social, ou nasce
carregado de lancinante autobiografia – Nelson Rodrigues é sempre trágico. E
não há qualquer exagero em afirmar que, ao ler seus textos, muitas vezes temos
a impressão de reencontrar Édipo, cego, conduzido por Creonte, enquanto o
corifeu proclama: “Até o dia fatal de cerrarmos os olhos / não devemos dizer
que um mortal foi feliz de verdade / antes dele cruzar as fronteiras da vida
inconstante / sem jamais ter provado o sabor de qualquer sofrimento!”.
Essa
plena expressão do trágico não é apenas fruto de leituras escolhidas ou de
algumas qualidades literárias. Não. Nelson viveu a tragédia, foi seu personagem,
embriagou-se dela. Vejamos o que ele fala ao recordar o assassinato de seu irmão,
na crônica “Memória nº 25”:
Três
anos depois, descobri o teatro. De repente, descobri o teatro. Fui ver, com uns
outros, um vaudeville. Durante os
três atos, houve, ali, uma loucura de gargalhadas. Só um espectador não ria: – eu. Depois da morte de
Roberto, aprendera a quase não rir; o meu próprio riso me feria e envergonhava. E, no teatro, para não rir, eu
comecei a pensar em Roberto e na nudez violada da autópsia. Mas no segundo ato,
eu já achava que ninguém deve rir no teatro. Liguei as duas coisas: – teatro e
martírio, teatro e desespero. No terceiro ato, ou no intervalo do segundo para
o último, eu imaginei uma igreja. De
repente, em tal igreja, o padre começa a engolir espadas, os coroinhas a
plantar bananeiras, os santos a equilibrar laranjas no nariz como focas
amestradas. Ao sair do vaudeville, eu
levava, comigo, todo um projeto dramático definitivo. Acabava de tocar o
mistério profundíssimo do
teatro. Eis a verdade súbita que eu descobrira: – a peça para rir, com essa destinação específica, é tão obscena e
idiota como o seria uma missa cômica.
Descontada
a afirmação de que ali, em poucos minutos, assistindo àquela comédia, ele
elaborara seu “projeto dramático”, fica evidente o processo intuitivo que
norteou a obra rodriguiana.
Em
uma de suas crônicas mais clássicas, “A menina”, a pungência da tragédia se
instala lentamente. O leitmotiv da
cegueira se propaga desde a primeira linha, contaminando o texto até o último
momento, quando a condenação do herói cai sobre o leitor num impacto avassalante.
Em doze parágrafos, Nelson Rodrigues sintetiza e explora todos os elementos da
tragédia: o sofrimento que provoca, ao mesmo tempo, terror e compaixão; a
condição humana, vítima do engano ou de um estranho magnetismo que, muitas
vezes, nos atrai para a ruína; a dor imerecida. E apesar da destruição, da
queda que lança o protagonista da segurança à desgraça, a dignidade intocável do
herói: ele observa o drama no qual está enredado, reconhece, num átimo, os
caminhos que o levaram até o destino atroz, mas segue adiante, sofrendo
conscientemente, aguardando que Deus volte a abençoá-lo. “A menina” é um texto
que deveríamos ler de joelhos.
E
como poderíamos definir a crônica “Paulo Rodrigues”? É um altar erigido em
memória daqueles que amamos e, infelizmente, morreram antes de nós. A
lamentação fúnebre nos surpreende no meio da noite, quando estamos indefesos,
certos de que tudo está bem. Trata-se de um exemplo da ampla coleção de
crônicas autobiográficas nas quais Nelson se coloca no papel do herói trágico:
personagem e narrador; paciente e testemunha – mas submetido aos desígnios do
destino.
Os
trágicos nunca olham a morte como algo fortuito ou previsível, mas como a força
que, inerente ao homem, o condena à fragilidade. “Na hora de morrer, e quando
sabe que está morrendo – o homem tem um olhar súplice e insuportável de criança
batida. Não, não, um olhar de contínuo. Sempre imagino que o arquiduque
austríaco, com os intestinos de fora, morreu como o último dos contínuos”, diz
Nelson Rodrigues.
A
experiência da tragédia não se resume, no entanto, às mortes familiares. A
tuberculose também se encarregou de moldar a forma de Nelson ver a existência. Os
meses que viveu em contato íntimo com a morte – ouvindo as tosses que se
repetiam noite adentro, compartilhando as frustrações de um tratamento que em
nada se assemelha aos métodos da medicina contemporânea, podendo testemunhar a decadência
física e moral dos companheiros de enfermaria – estão relatados em inúmeras
crônicas. Mas “A casa dos mortos” guarda elementos peculiares: há nesse texto a
síntese da técnica rodriguiana. O começo despretensioso engana o leitor.
Segundos depois, percebemos que adentramos um túnel povoado de lembranças
infelizes. Então, talvez desejando nos despistar mais uma vez, Nelson torna-se
tragicômico. Mas há um tom grotesco que sibila por trás da narrativa, como se a
tragédia não aceitasse ser destronada pela comédia. Até que, três parágrafos
antes do fim, a primeira vence, qualquer possibilidade de riso desaparece, e a
derrota humana surge na sua forma mais abjeta: espelhando-se na derrota animal.
O escritor se lembraria para sempre daquele primeiro período em que lutou
contra a doença, em Campos de Jordão: “No Sanatorinho, aprendi a olhar no fundo
da nossa brutal e indefesa fragilidade. Ninguém é forte”.
Igualmente
trágica é a sinceridade de Nelson. Seus relatos sobre como pedia aos colegas
para que escrevessem elogiando suas peças, ou a confissão de ter escrito
artigos furiosos contra o crítico Álvaro Lins, que repugnara Álbum de família, mas assinando-os, pusilânime,
com os nomes dos amigos, colocam-no na condição do herói que busca purgar a
própria culpa. Herói solitário, cujo isolamento ganha uma dolorosa concretude
no contraponto da crônica “O autor sem apoteose”: de um lado, a fama, o sucesso
brilhando nas “cintilações delirantes do lustre do Municipal”; de outro, a fria
realidade do bife com fritas, na solidão depois da primeira apresentação de Vestido de noiva.
As coisas ditas uma vez
O
estilo de Nelson Rodrigues é uma prova de que os manuais nem sempre estão
certos. Ele caminha, por exemplo, na contramão do ideário poundiano,
incansavelmente disseminado no Brasil, e não se preocupa em condensar a
mensagem num mínimo pouco inteligível de palavras, como as novíssimas gerações gostam
de fazer. Ao contrário, sua adjetivação desconhece barragens e os superlativos
são usados sem pudor.
A
composição de sua frase ganha, assim, uma potência que reanima os substantivos;
e suas metáforas, ainda que paguem, algumas vezes, o preço da grandiloquência, guardam
certa brutalidade, certa carga muitas vezes quase indecorosa, que coloca a língua
em um surpreendente patamar. A psicanálise é a “joia da ociosidade”, a “flor do
lazer”. Um amigo “tinha a tal voz fininha de criança que baixa em centro
espírita”. Ao falar de sua própria ingenuidade, trata-a como “crassa e
espessa”. Há “homens fluviais”, aqueles que fertilizam várias gerações com suas
ideias. E há também as “verdades totais”, o “extrovertido ululante” (“ululante”
é um dos seus qualificativos prediletos), a “polidez hedionda”. A dignidade de
Quintino Bocaiuva torna-se incontestável diante da afirmativa: “Saía da redação
como uma estátua que volta ao seu monumento”. “No centro de Londres, com um sol
de rachar catedrais”, um amigo vê “um inglês, de casaca e cartola, deslizando
como um cisne”. Os suspensórios que trazem desenhos de vaquinhas, carneirinhos,
etc., são definidos como “um presépio liliputiano”. E falando de si próprio,
ele diz, “eu era pequenino e cabeçudo como um anão de Velásquez”.
Somemos
essa linguagem aos personagens recorrentes – o milionário paulista, a
estagiária de calcanhar sujo, o padre e a freira de passeata, etc. –, aos temas
que ele ataca de maneira obsessiva – Nelson confessaria: “eu sou uma flor de
obsessão” –, e teremos um todo multifacetado e coerente, centenas de crônicas que,
enfeixadas, poderiam ser um vasto romance, o grande romance brasileiro, o
panorama de uma época. E não nos enganemos: tudo é intencional nessa obra. O
próprio Nelson nos diz: “Aprendi que as coisas ditas uma vez e só uma vez,
morrem inéditas”.
Rei
dos oximoros, Nelson também é o cultor por excelência das contradições. Moralista
ao estilo de La Rochefoucauld, ele pode desacreditar dos homens e, ao mesmo
tempo, endeusar aqueles que escolhe. Defende o amor eterno, o amor predestinado
de almas supostamente gêmeas, mas também afirma que “sem um mínimo de morbidez,
ninguém consegue gostar de ninguém. O amor ou é puro desejo ou, menos do que
isso, a posse sem desejo”. Em “A mulher da gargalhada”, faz um estudo
antropológico sobre a decadência da civilidade e do pudor, mas páginas depois se
deixa arrebatar por alguma vulgaridade, estarrecendo seus leitores, que não
sabem quanto do seu discurso é puro sarcasmo. Na crônica “O milionário não sabe
comer”, revela-se um refinado psicólogo social, mas nega-se a aceitar ou
compreender os movimentos sociais que se opõem à ditadura, a chamada “opinião
pública”, para ele, “uma doente mental”.
Vaticínios
Carlos
Heitor Cony acertou em grande parte do que escreveu no prefácio que abre O reacionário – memórias e confissões, mas
erra ao dizer que “as crônicas de Nelson são datadas”.
Na
verdade, Nelson Rodrigues foi profético. Se as críticas que fazia aos regimes
comunistas, entre as décadas de 1960 e 70, pareciam reacionárias, o tempo as
transformou em peças de clarividência e sensatez. Não é magnífico ler essas
crônicas e ver as tolices que já foram escritas neste país? Imaginem Alceu de
Amoroso Lima defendendo a Revolução Cultural chinesa. Devia provocar orgasmos
na esquerda de 1971. Mas, hoje, quem se atreveria a tal disparate, a não ser –
outro adorado personagem de Nelson – o eterno “débil mental por simples pose
ideológica”?
Fiel
às suas contradições, Nelson Rodrigues, censurado diversas vezes, tripudia
sobre a esquerda em nome da liberdade – “Eu sou um homem que põe a liberdade
acima do pão”, ele diz –, e, vivendo
sob a ditadura militar, chega a tecer elogios ao general-presidente Garrastazu
Médici. Mas ninguém pode acusá-lo de ser tímido ou hipócrita. Ele jamais teceu um
discurso melífluo, que se autodesculpa a cada parágrafo ou faz contorcionismos
retóricos para edulcorar o que deseja dizer e, assim, agradar igrejinhas,
manter-se amigo de todos. A seu modo, permaneceu coerente até o fim, ironizando
os que defendiam “a marcha irreversível para o socialismo”: “Acho admirável a
simplicidade com que o mestre [Alceu Amoroso Lima] administra a História, sem
dar satisfações a ninguém, e muito menos à própria História. Não lhe faria mal
um pouco mais de modéstia”.
Hoje, quando as
utopias mostraram-se falsas e inexequíveis, quando o pensamento anti-histórico
foi derrotado, a arte de Nelson Rodrigues permanece atual e incólume. E se,
como ele bem anteviu, a “ascensão dos idiotas” prossegue, voltar à sua obra
representa – neste império de filisteus – um exercício de prazer e lucidez.
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