abril 04, 2012

Memória e lágrimas: “Os desaparecidos – a procura de 6 em 6 milhões de vítimas do Holocausto”, de Daniel Mendelsohn


No Canto I da Eneida, o protagonista, Eneias, se depara, em certo templo de Cartago, com um mural que retrata a Guerra de Troia, de que fora um dos poucos sobreviventes. E, chorando, lastima: Sunt lacrimae rerum, et mentem mortalia tangunt (“Há lágrimas nas coisas, e os sofrimentos tocam nossa alma”). Para Daniel Mendelsohn, autor de Os desaparecidos – a procura de 6 em 6 milhões de vítimas do Holocausto, a primeira parte desse verso se transforma, à medida que o escritor avança em sua busca, numa “espécie de legenda para distâncias comoventemente insuperáveis criadas pelo tempo”. No caso de Eneias, o adorno do templo cartaginês representou a revivescência de um fato terrível. No que se refere a Mendelsohn, o autor testemunha emoção semelhante à do troiano quando apresenta, a uma de suas entrevistadas, fotografias dos familiares mortos no Holocausto: para ele, imagens de parentes quase desconhecidos, dos quais tentava se aproximar décadas depois de terem sido assassinados; mas à idosa sentada a seu lado, que convivera vários anos com aquelas pessoas e participara dos acontecimentos brutais que as condenaram à morte, as fotos tinham um significado pungente. “Eles estiveram lá e nós, não”, conclui Mendelsohn, e assevera: “Há lágrimas nas coisas; mas todos nós choramos por razões diferentes”.

De fato, a ampla, exaustiva investigação de Os desaparecidos é uma pugna detetivesca, às vezes angustiosa, às vezes consoladora, mas sempre lacunar, marcada pela distância não só temporal, não apenas física, mas também psicológica. Em vão Mendelsohn tentará preencher o vácuo que o separa dos familiares mortos sob o nazismo, pois, apesar de todas as suas inúmeras descobertas, ele guarda uma torturante certeza:

[...] quanto mais eu conversava com as pessoas, mais estava ciente de quanto simplesmente não pode ser conhecido, em parte porque a coisa [...] jamais foi testemunhada e, portanto, é agora incognoscível, e em parte porque a própria memória daquelas coisas que foram testemunhadas pode pregar peças, pode omitir o que é doloroso demais, ou ser enfeitada de modo a se adequar a um padrão do qual gostamos.

Sim, nenhum esforço, nenhum empenho poderá preencher as fissuras que nascem desta certeza: “Eles estiveram lá e nós, não”. Ou, como diz padre António Vieira, “os discursos de quem não viu, são discursos; os discursos de quem viu, são profecias”.

Mas, de que forma nasce Os desaparecidos? O que move seu autor na direção do passado, em busca da vida e da morte de seis parentes – o tio-avô materno, sua esposa e as quatro filhas – perdidos entre seis milhões de vítimas?

Tudo começa por uma leve semelhança e as reações que ela provoca. Quando menino, Mendelsohn tem alguns traços – certo arco desenhado pela sobrancelha e a linha do queixo – de Shmiel Jäger, o tio-avô. E sempre que os parentes veem a criança, a emoção, incontrolável, aflora. Com o tempo, às perguntas sobre o motivo das lágrimas acrescenta-se a personalidade do garoto que criva o avô materno – homem refinado, religioso, que “transpira europeidade” – de perguntas e não se cansa de ouvi-lo contar histórias familiares, dentre as quais, a dos seis mortos é a única que permanece incompleta. Somem-se a tais elementos o adolescente que ama o estudo, a busca da verdade, a incansável classificação de informações, e o adulto apaixonado pela literatura clássica – e teremos o quadro propício à investigação serena, lúcida, que Mendelsohn empreende, emocionando-se diante de cada nova descoberta, sem desistir mesmo quando sofre decepções. Uma pesquisa que procura saber, minuciosamente, não apenas como seis pessoas morreram, mas também como viveram e... como viveram seus últimos momentos.

Daniel Mendelsohn cria, assim, uma impressionante teia de memórias, na qual se entrecruzam o epistolário familiar, genealogias, testemunhos de sobreviventes, viagens transoceânicas, história do antissemitismo, exegese bíblica e poucos mas surpreendentes sincronismos.

Consciência do efêmero

A estrutura do livro obedece a um permanente diálogo entre as descobertas do autor e seus pensamentos sobre duas diferentes interpretações da Torá: a do rabino francês Shlomo ben Itz’hak, mais conhecido como Rashi, nascido em Troyes, em 1040, e a do rabi Richard Elliot Friedman, mais recente, que busca ligar o texto antigo à vida contemporânea. Os comentários desses estudiosos iluminam as idas e vindas de Mendelsohn, que recupera várias das loucuras cometidas em nome do antissemitismo – das vinganças ocasionais aos assassinatos sistemáticos das aktionen nazistas, passando por diferentes perseguições de ordem econômica –, parte da história da Galícia, figuras marcantes do pensamento judaico e o somatório de detalhes que compõem a existência dos heróis anônimos que, vivendo na cidadezinha polonesa onde seu tio-avô residia – Bolechow (hoje Bolekhiv, na Ucrânia) –, conseguiram sobreviver.

Mendelsohn constrói lentamente sua narrativa, apoiando-se nesses fragmentos de memórias sofridas, das quais, muitas vezes, avulta a pior das dores, a psíquica. Enquanto descortina a verdade sobre seus familiares, também acorda para suas lembranças da infância – quando se sentia decepcionado com seu povo, que lhe parecia, ele confessa, “um povo de perdedores” – e da adolescência, quando compreende o que é ser judeu e de como estava ligado a uma intrincada e milenar trama de relações.  

Sessenta anos depois do Holocausto e duas décadas após o suicídio de seu avô, que já não suportava a tortura do câncer, Mendelsohn aprenderá que o trivial pode se transformar, com a passagem do tempo, em algo merecedor de ser preservado. Cada nova revelação ampliará sua angústia, fazendo-o tomar consciência de como “é fácil para alguém se perder, permanecer desconhecido para sempre”. Durante os longos meses em que procura dar vida aos que morreram, experimentará a decepção de não poder modificar o passado – e também, durante raros e gratificantes momentos, a proximidade com os mortos, até acordar para a verdade das palavras do irmão que o acompanha na maioria das viagens: “o Holocausto não foi algo que simplesmente aconteceu, mas é um evento que ainda está acontecendo”.

Duplo investigador

Contudo, se há uma característica central nessa busca que se defronta ora com testemunhos contraditórios, ora com relatos que desmentem, inclusive, parte das histórias que o próprio avô de Mendelsohn contava, ela tem um nome: fragilidade. Mas, terrível ironia, é exatamente essa fragilidade, nascida da distância de que falávamos acima, que permite a existência do narrador, daquele que se propõe contar a história.

Dentre outros méritos, o narrador de Os desaparecidos não hesita em expor até mesmo divisões familiares, velhos ressentimentos. Não o faz para obedecer a alguma doentia compulsão, mas porque – movido, aparentemente, pela sinceridade – estabelece analogias entre o passado de seus ancestrais, próximos e distantes, e as descobertas que realiza no presente, utilizando-as como parte de seu método investigativo. Acompanhamos, assim, um duplo pesquisador: o que interroga suas testemunhas e o que se questiona sobre de que maneira as respostas obtidas não só o aproximam ou afastam da verdade, mas também lhe franqueiam as portas do autoconhecimento e das raízes do judaísmo.

Dotado de bom humor, destituído de qualquer ingenuidade, Mendelsohn está certo de que todo conhecimento traz, em seu bojo, alguma dor – e que se há orgulho na acumulação do saber, há também a possibilidade de conhecer certas coisas tarde demais para que nos façam algum bem. Dessa forma, ele nunca deixa de se perguntar se deve ou não prosseguir.

Inspirando-se na técnica narrativa do avô, plena de digressões, técnica reencontrada, anos mais tarde, em Homero, Heródoto, Proust e Sebald, esse narrador detalhista mostra-se capaz de analisar inclusive sutilezas linguísticas, com o objetivo de esclarecer, por exemplo, o sentido de uma palavra em iídiche – e assim iluminar sua história e a de seu povo.

Mas, insisto, trata-se, acima de tudo, de uma voz consciente de que seu olhar e suas conclusões sobre o testemunho dos que viveram o Holocausto é, somente, uma frágil aproximação da verdade.

O homem que vê e se vê

Homenagem aos que se recusam a esquecer, preito à memória, a cada página de Os desaparecidos ressoa a exclamação: lembrem dos judeus de Bolechow, daqueles milhares que foram humilhados gratuitamente e morreram sob a iniquidade. Ao final, deles restaram apenas 48, dispersos sobre a terra. E lembrem-se também daqueles seis, emudecidos pelo ódio.

Mais de três séculos antes de Os desaparecidos ser publicado, no ano de 1674, em Roma, pronunciando, perante a rainha Cristina da Suécia, o panegírico “Lágrimas de Heráclito”, António Vieira comentava o verso de Virgílio que Mendelsohn escolheu como epígrafe:

Não residem as lágrimas só nos olhos, que veem os objetos, mas nos mesmos objetos, que são vistos; ali está a fonte, aqui está o rio; ali nascem as lágrimas, aqui correm; e se as mesmas coisas que não veem, choram, quanto mais razão tem o homem que vê e se vê?.


Quando chegamos às páginas finais de Os desaparecidos, descobrimos – ou lembramos – quão extensa é a dor que impregna a vida – ainda que tal verdade seja perceptível apenas ao “homem que vê e se vê” –, pois o relato de Daniel Mendelsohn nos fornece inúmeras, desoladoras razões para distinguir as lágrimas das coisas, chorar com elas – e também por nós.

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