No Canto I da Eneida, o protagonista, Eneias, se depara, em certo templo de Cartago,
com um mural que retrata a Guerra de Troia, de que fora um dos poucos
sobreviventes. E, chorando, lastima: Sunt
lacrimae rerum, et mentem mortalia tangunt (“Há lágrimas nas coisas, e os
sofrimentos tocam nossa alma”). Para Daniel Mendelsohn, autor de Os desaparecidos – a procura de 6 em 6 milhões de vítimas do Holocausto, a primeira parte desse verso se transforma,
à medida que o escritor avança em sua busca, numa “espécie de legenda para
distâncias comoventemente insuperáveis criadas pelo tempo”. No caso de Eneias, o
adorno do templo cartaginês representou a revivescência de um fato terrível. No
que se refere a Mendelsohn, o autor testemunha emoção semelhante à do troiano quando
apresenta, a uma de suas entrevistadas, fotografias dos familiares mortos no
Holocausto: para ele, imagens de parentes quase desconhecidos, dos quais
tentava se aproximar décadas depois de terem sido assassinados; mas à idosa
sentada a seu lado, que convivera vários anos com aquelas pessoas e participara
dos acontecimentos brutais que as condenaram à morte, as fotos tinham um
significado pungente. “Eles estiveram lá e nós, não”, conclui Mendelsohn, e assevera:
“Há lágrimas nas coisas; mas todos nós choramos por razões diferentes”.
De fato, a ampla, exaustiva investigação de
Os desaparecidos é uma pugna
detetivesca, às vezes angustiosa, às vezes consoladora, mas sempre lacunar,
marcada pela distância não só temporal, não apenas física, mas também
psicológica. Em vão Mendelsohn tentará preencher o vácuo que o separa dos
familiares mortos sob o nazismo, pois, apesar de todas as suas inúmeras
descobertas, ele guarda uma torturante certeza:
[...]
quanto mais eu conversava com as pessoas, mais estava ciente de quanto
simplesmente não pode ser conhecido, em parte porque a coisa [...] jamais foi
testemunhada e, portanto, é agora incognoscível, e em parte porque a própria
memória daquelas coisas que foram testemunhadas pode pregar peças, pode omitir
o que é doloroso demais, ou ser enfeitada de modo a se adequar a um padrão do
qual gostamos.
Sim, nenhum esforço, nenhum empenho
poderá preencher as fissuras que nascem desta certeza: “Eles estiveram lá e
nós, não”. Ou, como diz padre António Vieira, “os discursos de quem não viu,
são discursos; os discursos de quem viu, são profecias”.
Mas, de que forma nasce Os desaparecidos? O que move seu autor
na direção do passado, em busca da vida e da morte de seis parentes – o tio-avô
materno, sua esposa e as quatro filhas – perdidos entre seis milhões de
vítimas?
Tudo começa por uma leve semelhança e as
reações que ela provoca. Quando menino, Mendelsohn tem alguns traços – certo
arco desenhado pela sobrancelha e a linha do queixo – de Shmiel Jäger, o
tio-avô. E sempre que os parentes veem a criança, a emoção, incontrolável,
aflora. Com o tempo, às perguntas sobre o motivo das lágrimas acrescenta-se a
personalidade do garoto que criva o avô materno – homem refinado, religioso,
que “transpira europeidade” – de perguntas e não se cansa de ouvi-lo contar histórias
familiares, dentre as quais, a dos seis mortos é a única que permanece
incompleta. Somem-se a tais elementos o adolescente que ama o estudo, a busca
da verdade, a incansável classificação de informações, e o adulto apaixonado
pela literatura clássica – e teremos o quadro propício à investigação serena,
lúcida, que Mendelsohn empreende, emocionando-se diante de cada nova descoberta,
sem desistir mesmo quando sofre decepções. Uma pesquisa que procura saber,
minuciosamente, não apenas como seis pessoas morreram, mas também como viveram
e... como viveram seus últimos momentos.
Daniel Mendelsohn cria, assim, uma
impressionante teia de memórias, na qual se entrecruzam o epistolário familiar,
genealogias, testemunhos de sobreviventes, viagens transoceânicas, história do antissemitismo,
exegese bíblica e poucos mas surpreendentes sincronismos.
Consciência
do efêmero
A estrutura do livro obedece a um permanente
diálogo entre as descobertas do autor e seus pensamentos sobre duas diferentes
interpretações da Torá: a do rabino francês
Shlomo ben Itz’hak, mais conhecido como Rashi, nascido em Troyes, em 1040, e a
do rabi Richard Elliot Friedman, mais recente, que busca ligar o texto antigo à
vida contemporânea. Os comentários desses estudiosos iluminam as idas e vindas
de Mendelsohn, que recupera várias das loucuras cometidas em nome do antissemitismo
– das vinganças ocasionais aos assassinatos sistemáticos das aktionen nazistas, passando por
diferentes perseguições de ordem econômica –, parte da história da Galícia, figuras
marcantes do pensamento judaico e o somatório de detalhes que compõem a existência
dos heróis anônimos que, vivendo na cidadezinha polonesa onde seu tio-avô
residia – Bolechow (hoje Bolekhiv, na Ucrânia) –, conseguiram sobreviver.
Mendelsohn constrói lentamente sua
narrativa, apoiando-se nesses fragmentos de memórias sofridas, das quais,
muitas vezes, avulta a pior das dores, a psíquica. Enquanto descortina a
verdade sobre seus familiares, também acorda para suas lembranças da infância –
quando se sentia decepcionado com seu povo, que lhe parecia, ele confessa, “um
povo de perdedores” – e da adolescência, quando compreende o que é ser judeu e
de como estava ligado a uma intrincada e milenar trama de relações.
Sessenta anos depois do Holocausto e duas
décadas após o suicídio de seu avô, que já não suportava a tortura do câncer, Mendelsohn
aprenderá que o trivial pode se transformar, com a passagem do tempo, em algo
merecedor de ser preservado. Cada nova revelação ampliará sua angústia,
fazendo-o tomar consciência de como “é fácil para alguém se perder, permanecer
desconhecido para sempre”. Durante os longos meses em que procura dar vida aos
que morreram, experimentará a decepção de não poder modificar o passado – e
também, durante raros e gratificantes momentos, a proximidade com os mortos,
até acordar para a verdade das palavras do irmão que o acompanha na maioria das
viagens: “o Holocausto não foi algo que simplesmente aconteceu, mas é um evento
que ainda está acontecendo”.
Duplo
investigador
Contudo, se há uma característica central
nessa busca que se defronta ora com testemunhos contraditórios, ora com relatos
que desmentem, inclusive, parte das histórias que o próprio avô de Mendelsohn contava,
ela tem um nome: fragilidade. Mas, terrível ironia, é exatamente essa
fragilidade, nascida da distância de que falávamos acima, que permite a existência
do narrador, daquele que se propõe contar a história.
Dentre outros méritos, o narrador de Os desaparecidos não hesita em expor até
mesmo divisões familiares, velhos ressentimentos. Não o faz para obedecer a
alguma doentia compulsão, mas porque – movido, aparentemente, pela sinceridade
– estabelece analogias entre o passado de seus ancestrais, próximos e
distantes, e as descobertas que realiza no presente, utilizando-as como parte de
seu método investigativo. Acompanhamos, assim, um duplo pesquisador: o que interroga
suas testemunhas e o que se questiona sobre de que maneira as respostas obtidas
não só o aproximam ou afastam da verdade, mas também lhe franqueiam as portas
do autoconhecimento e das raízes do judaísmo.
Dotado de bom humor, destituído de
qualquer ingenuidade, Mendelsohn está certo de que todo conhecimento traz, em
seu bojo, alguma dor – e que se há orgulho na acumulação do saber, há também a
possibilidade de conhecer certas coisas tarde demais para que nos façam algum
bem. Dessa forma, ele nunca deixa de se perguntar se deve ou não prosseguir.
Inspirando-se na técnica narrativa do
avô, plena de digressões, técnica reencontrada, anos mais tarde, em Homero,
Heródoto, Proust e Sebald, esse narrador detalhista mostra-se capaz de analisar
inclusive sutilezas linguísticas, com o objetivo de esclarecer, por exemplo, o
sentido de uma palavra em iídiche – e assim iluminar sua história e a de seu
povo.
Mas, insisto, trata-se, acima de tudo, de
uma voz consciente de que seu olhar e suas conclusões sobre o testemunho dos
que viveram o Holocausto é, somente, uma frágil aproximação da verdade.
O
homem que vê e se vê
Homenagem aos que se recusam a esquecer,
preito à memória, a cada página de Os
desaparecidos ressoa a exclamação: lembrem dos judeus de Bolechow, daqueles
milhares que foram humilhados gratuitamente e morreram sob a iniquidade. Ao
final, deles restaram apenas 48, dispersos sobre a terra. E lembrem-se também
daqueles seis, emudecidos pelo ódio.
Mais de três séculos antes de Os desaparecidos ser publicado, no ano
de 1674, em Roma, pronunciando, perante a rainha Cristina da Suécia, o panegírico
“Lágrimas de Heráclito”, António Vieira comentava o verso de Virgílio que Mendelsohn
escolheu como epígrafe:
Não
residem as lágrimas só nos olhos, que veem os objetos, mas nos mesmos objetos,
que são vistos; ali está a fonte, aqui está o rio; ali nascem as lágrimas, aqui
correm; e se as mesmas coisas que não veem, choram, quanto mais razão tem o
homem que vê e se vê?.
Quando chegamos às páginas finais de Os desaparecidos, descobrimos – ou lembramos – quão extensa é a dor que impregna a vida – ainda que tal verdade seja perceptível apenas ao “homem que vê e se vê” –, pois o relato de Daniel Mendelsohn nos fornece inúmeras, desoladoras razões para distinguir as lágrimas das coisas, chorar com elas – e também por nós.
Quando chegamos às páginas finais de Os desaparecidos, descobrimos – ou lembramos – quão extensa é a dor que impregna a vida – ainda que tal verdade seja perceptível apenas ao “homem que vê e se vê” –, pois o relato de Daniel Mendelsohn nos fornece inúmeras, desoladoras razões para distinguir as lágrimas das coisas, chorar com elas – e também por nós.
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