Entre
o final de 2009 e meados de 2010, as livrarias brasileiras receberam dois importantes
lançamentos, escritos por autores jamais traduzidos entre nós, e que,
infelizmente, continuarão a não receber maiores cuidados. Creio, por inúmeras
razões, que devemos nos contentar com esses livros, independente do fato de tais
pensadores – Sébastien-Roch-Nicolas de Chamfort (Máximas e pensamentos & Caracteres e anedotas) e Karl Kraus (Aforismos) – terem deixado várias obras.
É uma pena. Para os que leem outras línguas, isso não traz, claro, nenhuma
dificuldade, mas para a massa que só domina o português, esse vazio editorial é
um obstáculo à cultura, à inteligência.
As
pessoas, evidentemente, podem acreditar que é possível ter uma ótima vida sem
ler Chamfort, Kraus e quaisquer outros; e, de fato, a imensa maioria chega ao
túmulo, em pleno século 21, mantendo-se afastada dos livros ou satisfazendo-se
com uma insalubre mistura de romancinhos kardecistas e obras de autoajuda. Chamfort,
aliás, escreveu um ótimo aforismo sobre o assunto: “O que faz o sucesso de
grande quantidade de obras é a relação que se encontra entre a mediocridade das
ideias do autor e a mediocridade das ideias do público”. Sabemos, contudo, o
quanto esse comportamento é fruto da ignorância, o quanto essas escolhas são
ditadas não pela vontade consciente dos leitores, mas por uma mescla de
incultura, propaganda e obscurantismo (o que, aliás, sempre existirá). E temos
consciência de que ler Chamfort ou Kraus – e também, para ficarmos no âmbito
dos aforistas, La Rochefoucauld ou Lichtenberg – pode não tornar a vida melhor,
mas, certamente, tem o poder de expandi-la, aprimorando nossa maneira de ver o
mundo e de encarar nossas limitadas possibilidades de escolha, além de diminuir
a cegueira e os tantos deslumbramentos de que somos acometidos, que nos fazem
perder tempo com um sem número de coisas vãs.
Agudeza e concisão
Chamfort
e Kraus ficaram famosos por seus aforismos. Percebam que não falamos aqui de
provérbios ou ditos espirituosos, bons para enfeitar diálogos fúteis ou
conceder ao falante um verniz de falsa erudição. O aforismo é uma forma de
refletir sobre a realidade, de problematizá-la. Sua precisão serve bem à ironia
e ao sarcasmo, pois transforma o pensamento numa seta que fere sem alarde, cujo
zunido quase imperceptível sintetiza um erro, um absurdo, às vezes certa
mentira renitente.
De
origem multíplice – os estudiosos o encontram na Escola Hipocrática, nos livros
sagrados da Índia, nos ensinamentos de Confúcio ou Lao-Tsé, e também na Bíblia,
incluindo uma das leituras prediletas de Machado de Assis, o Eclesiastes –, o aforismo pretende ser
uma epítome de frações do vivido ou do observado. Do mesmo modo, ele se
assemelha – se for possível tal imagem – a um pequeno abismo, no qual o
aprofundamento do tema soma-se à brevidade da expressão. Destituído de enredo, paira
acima do tempo e do espaço, pois qual civilização ou que homem não encontrará
verdade ao ler: “O que foi, será, o que se fez, se tornará a fazer: nada há de
novo debaixo do sol!”?
Pleno
de agudeza e concisão, no centro do aforismo pulsa uma força que pretende depurar
a existência sem necessitar de argumentações. E quanto mais elaborada a frase
por meio da qual o pensamento se expressa, mais o aforismo denuncia a banalização
da linguagem. Manifestos contra o senso comum, julgamentos insólitos, exemplos
de engenho linguístico, os aforismos estimulam nossa inteligência, obrigam-nos
a refletir.
Vítima dos jacobinos
Segundo
o que diz Cyril Connolly, em seu angustiado The unquiet grave, Chamfort era “um filósofo sem esperança e sem compaixão”,
além de “bufão cínico e mimado pela corte” que ele trairia ao apoiar a
Revolução Francesa. Pensionista da monarquia, secretário de Louis Joseph de
Bourbon, príncipe de Condé, e depois secretário do próprio rei, foi dos
primeiros a invadir a Bastilha, tornando-se um agitador das massas. O que ele desconhecia,
contudo, é que a nova classe no governo não possuía a fleuma dos aristocratas,
não era capaz de rir de si mesma ou de aceitar críticas, principalmente as irônicas
– característica, aliás, não só dos jacobinos, mas da esquerda em geral.
A
partir do momento em que começa a desaprovar os excessos da revolução, Chamfort
sintetiza a ética jacobina: “Seja meu amigo – ou eu te matarei”. De fato, acaba
preso por seus companheiros no ano de 1793. Julgado, é absolvido, mas logo
depois recebe nova condenação. Em desespero, reage com uma tentativa de
suicídio: o tiro na têmpora arranca-lhe o nariz e um pedaço do maxilar, mas não
o mata. Usa, então, o abridor de cartas que encontra sobre a escrivaninha,
primeiro ferindo o pescoço, depois o peito – e ainda assim sobrevive. Morre
meses mais tarde, talvez de uma septicemia. Infelizmente, não seria o último a
sofrer nas mãos dos que prometem o Paraíso na terra. E sabia do que seus amigos
eram capazes, pois certa vez escreveu: “O homem no estado atual me parece mais
corrompido pela razão do que pelas paixões”.
Suas
máximas podem ser repletas de humor – “Um tolo que tem um momento de espírito
espanta e escandaliza, tal como cavalos de carroça a galope” – ou de acrimônia
– “Os burgueses, por uma vaidade ridícula, fazem de suas filhas o adubo para as
terras das gentes de qualidade” –, mas guardam sabedoria e triste atualidade:
“Um autor, homem de gosto, é, no meio desse público blasé, o mesmo que uma meretriz no meio de um círculo de velhos
libertinos”.
Contra a imprensa
Encontramos
mal-estar semelhante ao de Chamfort nos aforismos de Karl Kraus. Morando em
Viena, entre a derrocada do Império Austro-Húngaro e o início da II Guerra
Mundial, ele foi testemunha do que Hermann Broch classificou de “alegre Apocalipse”.
Em 1899 funda A Tocha (ou O Archote), publicação que editará
sozinho durante trinta anos e na qual denuncia os absurdos de sua época,
principalmente a forma como jornalistas e intelectuais justificavam o
antissemitismo e a violência. Chama-os de “traidores da humanidade”.
Contestador
da psicanálise – “É a doença cuja cura ela pretende ser “ –, Kraus é definido
por Freud, erroneamente, como “um louco idiota com grande talento histriônico”.
Se fosse apenas isso, alguns jornais não fariam, logo após a I Grande Guerra,
uma campanha pedindo sua morte.
Revolucionário
para alguns, reacionário para outros, Kraus apontou, sem medo, a covardia, o
silêncio e a cumplicidade de intelectuais e jornalistas, mestres da incoerência
e do descompromisso com a verdade. A imprensa, em sua opinião, era,
essencialmente, uma corruptora da linguagem, capaz de utilizar eufemismos para qualificar
a guerra e, logo a seguir, o avanço do nacional-socialismo. Kraus usa a ironia
e a sátira, portanto, como instrumentos para se contrapor à linguagem deturpada
pela ideologia e destituída de seu principal poder: o de criticar. Foi um
lutador solitário, a voz da consciência de um tempo em que os homens perderam a
razão: “Tendo bom ouvido, ouço barulhos que os outros não ouvem e que me
perturbam a harmonia das esferas que os outros tampouco ouvem”.
Os
elogios que Otto Maria Carpeaux escreveu sobre ele – “Assim como a teologia
moral é a técnica de revelar os pecados, assim a arte satírica de Kraus é uma
técnica de filologia moral” – encontram justificativa em cada um dos seus
aforismos: mostrou-se implacável com jornalistas – “O que a sífilis poupou será
devastado pela imprensa. Nos amolecimentos cerebrais do futuro, não se poderá
mais constatar a causa com segurança” –, com certos escritores – “A ironia
sentimental é um cão que ladra para a Lua enquanto mija sobre sepulturas” –,
com as mulheres – “Vista de perto, muitas vezes uma mulher nos decepciona.
Sentimo-nos atraídos porque ela aparenta ter espírito, e ela o tem” – e com os
mitos que subsistem até hoje – “O progresso faz porta-moedas de pele humana”. Carpeaux
está certo: “Karl Kraus é o maior escritor satírico e o maior moralista da
literatura alemã”.
Um gigante
Kraus
era leitor assíduo de outro brilhante aforista, sobre quem escreveu: “Lichtenberg
cava mais fundo do que qualquer outro, mas não volta à superfície. Ele fala sob
a terra. Só o escuta quem também cava fundo”.
Lido
e citado por Kant, Thomas Mann, Goethe, Wittgenstein, Musil, Canetti e muitos
outros, Georg Christoph Lichtenberg foi, além de satirista, matemático e físico
experimental, professor da Universidade de Göttingen, apaixonado pela
Inglaterra – chegou a ser preceptor dos filhos do rei Jorge III –, eleito para
a Royal Society em 1793. Formou, com Christoph Martin Wieland e Gotthold
Ephraim Lessing, o trio responsável pela divulgação de Shakespeare na Alemanha.
Leitor devotado dos ingleses, recomendava aos alemães que não perdessem tempo
com o Werther, de Goethe, mas se dedicassem
a Daniel Defoe, Jonathan Swift e Laurence Sterne, o que, de certa forma,
confirma sua revelação autoirônica: “Na realidade, fui à Inglaterra para
aprender a escrever em alemão”.
Hipocondríaco
e supersticioso – obcecado pela ideia da morte, tinha o hábito de contar os
enterros que passavam sob sua janela –, um acidente sofrido na infância
marcou-o com uma corcunda e dificultou seu crescimento, deixando-o pouco maior
que um anão. Mas, salientemos: isso não impediu Lichtenberg de ter êxito com as
mulheres.
Editor
e escritor de almanaques, transformou esses anuários de temas populares, para
os quais escrevia artigos de divulgação científica, num grande sucesso. Quanto
aos seus inúmeros cadernos de notas (escritos de 1765 a 1799), a publicação se estendeu
por vários anos, e só em 1971 os leitores tiveram acesso à obra completa.
Em
permanente polêmica com alguns de seus contemporâneos, Lichtenberg alcançou influência
espantosa. Kierkegaard chamava-o de “Voz no deserto” e Schopenhauer escreveu
paráfrases de seus textos em O mundo como
vontade e representação. Seus aforismos revelam argúcia surpreendente – “Na
verdade, há muitos homens que leem apenas para não pensar” –, profunda visão
ética – “Onde a moderação é um erro, a indiferença é um crime”–, capacidade para
rir de si mesmo – “Ao longo de minha vida outorgaram-me tantas honras
imerecidas, que eu bem poderia me permitir alguma crítica imerecida” – e certo lirismo
– “Uma moeda de um centavo é sempre preferível a uma lágrima”.
Poucos,
pouquíssimos tiveram sua obra colocada em tão alta conta por Otto Maria
Carpeaux, que assim se referiu aos Aforismos:
“Exilado numa ilha deserta, eu levaria este pequeno breviário de sadio bom
senso, ao lado de Marco Aurélio e dos Pensées
de Pascal, sem ofender aos meus santos. Lichtenberg, também, é um companheiro
eterno”.
Delicada malevolência
Nesta
rápida ciranda em torno do gênero aforístico, encerremos falando sobre um dos autores
prediletos de Lichtenberg: François VI, duque de La Rochefoucauld, príncipe de Marcillac,
membro de uma das famílias mais antigas da França. La Rochefoucauld lutou
contra os cardeais Richelieu e Mazarin, participando ativamente – e sem sucesso
– do confuso período da Fronda. Suas decepções foram tantas, que aos 48 anos se
retirou da vida pública e passou a se dedicar exclusivamente à escrita. Publica
Máximas e reflexões, conjunto de epigramas
pessimistas e contundentes, em 1655. Edição a edição, revisará os textos,
atenuando seu caráter ferino e dando-lhes mais brilho, maior concisão.
Desengano
e ressentimento fizeram nascer esse livro. Para La Rochefoucauld, o mundo é
movido por interesse e egoísmo – e são esses dois comportamentos que provocam,
inclusive, as atitudes aparentemente virtuosas. Longe de criar um sistema
filosófico, ele apenas insiste na tese de que o mal impulsiona todos os gestos
humanos. Mas ainda que possamos discordar do seu pessimismo, suas frases nos
encantam, pois ele escreve com leveza, delicada malevolência, fazendo jogos de
paradoxos nos quais brilha uma inteligência extraordinária. Superficiais ou
não, verdadeiros ou não, seus aforismos são lições de estilo, de habilidosa
capacidade para condensar a linguagem.
Na
opinião de La Rochefoucauld, “como mortais, tememos todas as coisas, como
imortais as desejamos todas”. Inflexível na sua visão dos homens, ele afirma
que “esquecemos facilmente nossos erros quando só nós os conhecemos” e que “se
não tivéssemos defeitos não nos agradaria tanto notá-los nos outros”. Mas nosso
aforista também pode cunhar frases de finíssimo humor: “Há casamentos bons, mas
não os há deliciosos”.
Fragmento moral
Para
alguns, subjacente à arte do aforismo encontra-se apenas uma simplificação que
falseia a realidade – juízo ao qual me oponho. Todos os aforistas analisados
aqui estão muito além dessa frágil leitura. E o mesmo pode ser dito daqueles,
tão essenciais quanto estes, de que não pudemos falar: o conceptista Baltasar
Gracián y Morales; o infelizmente desconhecido Nicolás Gómez Dávila e seus
geniais, intrépidos escólios; o veemente Ambrose Bierce; e tantos outros.
Malabarismos
linguísticos, investigações acerca das leis que regem nossa conduta, sentenças
que se contrapõem às loucuras e idiotices de uma época: os aforismos nascem na tênue
fronteira entre a literatura e a filosofia. Fórmulas esmeradas, contraposições
à verbosidade que concentram escárnio, denúncia, humor e lucidez, eles revelam,
numa centelha, certo fragmento moral – quase sempre, apontando o que preferimos
ocultar ou desconhecer.
4 comentários:
eu sempre me incomodo com as poucas traduções. e ler em outro idioma. bom, um pode ler em inglês, outro em francês, um em russo, outro nos idiomas dos países árabes, outros no japonês. mas ter todos esses idiomas é praticamente impossível. ok, podem tentar achar no inglês. mas enfim... deveríamos ter mais traduções. estou lendo agora um livro de um escritor polonês, czeslaw milosz que no brasil agora só se acha em sebos. beijos, pedrita
Prezado Rodrigo, belo artigo sobre esses grandes mestres da escrita aforística. Penso também em Vauvenargues e La Bruyere... Sou escritor de aforismos. Tenho material para a publicação. Gostaria de saber se você tem interesse em lê-los. Aproveito para convidá-lo a conhecer meu espaço literário o Poesia Diversa. www.poesiadiversidade.blogspot.com Deixo meu email, caso tenha interesse em ler meus aforismos que em breve devem ser publicados. hilton.dv@hotmail.com
Estou lendo o "Máximas e pensamentos" do Chamfort bem devagar, para "economizar" o livro e prolongar ao máximo a sensação inexplicável que me dá a leitura de seus aforismos. Ele era realmente genial, pena que tão pouca gente o conheça.
Parabéns pelo post, bjs!
Obrigado pela visita -- e boa leitura!
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