julho 16, 2009
A honra de 32
As comemorações do 9 de Julho, na semana passada, foram inexpressivas. São Paulo não comemora a Revolução de 32 como seus heróis merecem. Aliás, o culto do heroísmo há muito caiu no esquecimento entre nós – a não ser, é claro, quando se trata das figuras que sucumbiram sob o regime de 64. Essas, graças à hegemonia cultural da esquerda, são sempre reverenciadas.
Minha formação, contudo, é diversa. Venho de uma época na qual 1932 era lembrado com orgulho na escola, com direito a discursos, bandeiras de São Paulo, cartazes. E a história dos jovens que morreram sob a metralha getulista, contada pelos professores, nos fazia olhar com desconfiança o jeito bonachão de Vargas.
Aliás, em minha família, desde cedo aprendemos que a luta revolucionária – que se resume, para os meus patriarcas, à luta pela liberdade – não é, não foi e nunca será uma tradição da esquerda.
No caso específico do 9 de Julho, cresci admirando o altar que meu avô paterno mantinha no escritório de sua casa: acima da escrivaninha, na parede, o capacete que ele usara nas trincheiras de 32 e um mapa do Estado de São Paulo, no qual estavam marcados à caneta as batalhas e os nomes dos amigos mortos ou feridos. Ao lado, numa estante próxima, ele mantinha sua própria foto, vestindo a farda de capitão-médico da revolução.
Meus avós e meus tios jamais falaram em separatismo ou demonstraram qualquer preconceito em relação aos outros estados. Falava-se apenas da luta de São Paulo pela legalidade, pela Constituição e contra a ditadura getulista, que desvirtuara os ideais de 1930. Durante as rodas de buraco ou de víspora, nos domingos à tarde, a política era um tema constante – e Getúlio sempre foi lembrado como um populista vulgar, nada mais.
Cresci ouvindo meu avô declamar os poemas de Guilherme de Almeida ou ler em voz alta, com orgulho, os discursos de Ibrahim Nobre. E, revendo aqueles dias, percebo que cultuar 32 representava, para nós, fazer também uma contraposição a qualquer forma de despotismo. Sim, os mais velhos eram todos anticomunistas, mas visceralmente liberais. Meu tio-avô, por exemplo, que foi deputado estadual e secretário de Justiça no governo Lucas Nogueira Garcez, infelizmente já falecido durante a ditadura de 64, subia nos palanques e descia o malho de sua oratória sobre a esquerda, mas era o único advogado em nossa cidade que aceitava defender, gratuitamente, os comunistas – e livrou muitos da cadeia.
A mãe de meu tio-avô, minha bisavó, mulher altiva, cultíssima, fluente em inglês, que chegou aos 94 anos de idade, nunca deixou de expressar sua discordância com os rumos de 64. Detestava Jango e defendia o golpe, mas achava que os militares haviam traído a confiança dos civis que apoiaram o movimento – e nunca teve receio de se referir aos presidentes do ciclo militar com os piores adjetivos. A seu modo, com a dignidade e a classe que lhe eram peculiares, enviou flores anos seguidos, no 31 de março, a políticos que, amigos de nossa família, tinham sido cassados pelos atos institucionais.
Não é de admirar, portanto, que a Revolução de 32 fosse venerada em minha casa.
Hoje, infelizmente, o obelisco do Parque Ibirapuera serve apenas para ser coberto por um preservativo gigante no Dia Mundial da Aids, nas escolas disseminou-se a mentira de que 32 foi um movimento desprezível das oligarquias paulistas, e há quem faça comentários cínicos ao ler, na entrada do mausoléu: “Viveram pouco para morrer bem – morreram jovens para viver sempre”. Mas a sordidez não muda o passado, não altera a verdade. Talvez consiga esconder das atuais gerações a honra daqueles mortos. Mas não para sempre. Não eternamente.
***
Adiciono a este post os lúcidos comentários do historiador Marco Antônio Villa, que lançou, no ano passado, um belo livro sobre a Revolução de 1932:
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4 comentários:
eu não sei, nunca me empolguei muito com a revolução de 32. como vc, ouvi meu avô contar sobre a revolução e nem ele nem nós víamos como heróis. beijos, pedrita
Se um dia tiver interesse, Pedrita, leia sobre o assunto. Talvez vc se empolgue... Ou, quem sabe, a explicação do professor Marco Antônio Villa, que acabo de incluir no post, possa despertar sua curiosidade...
É verdade que está faltando no mundo uma direita digna, dessas que o são pela afinidade com a tradição e a desconfiança pela ruptura. Mas o que dizer da esquerda! Também anda em falta, para dizer pouco. Seu texto me fez lembrar várias coisas. Uma delas: no começo dos anos 2000 andei vasculhando a Serra da Bocaina em caminhadas orientadas por guia local. Lembro de ele nos mostrar resquícios de trincheiras, buracos de bala, relíquias diversas de batalhas sangrentas travadas por lá, nas quais os paulistas dançaram feio. Emocionante, pois não é à-toa que não há avenida Getúlio Vargas em São Paulo, e a única instituição com o nome do caudilho gaúcho fica na avenida 9 de Julho. E por falar nisso, meus avós e bisavós, imigrantes italianos, portugueses, polacos e quase todos operários (as italianas eram tecelãs) idolatravam o Getúlio, sem ter a santa consciência de que o estado de penúria em que viviam completava o pacote getulista ao lado das leis trabalhistas. Como dizia a nona: "Depois do Getúlio a gente teve tudo, até sábado!". Uau!
pode ser, mas como sou sumariamente contra lutas armadas. realmente não sei se gostaria. terminei de ler a canção de solomon da toni morrison e comentei no meu blog. beijos, pedrita
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