A decadência da escola
Sempre me surpreendo com o fato de que a escola brasileira – não só a pública – ensine cada vez menos. Quando meus pais estavam em idade escolar, na década de 1940, nenhuma criança terminava o antigo Ginásio sem ter estudado, durante quatro anos, latim, francês e inglês, além das matérias que até hoje são aprendidas. Depois, no que se chamava Colegial, aqueles que escolhiam a área de humanas, o antigo Clássico, acrescentariam o grego às línguas – e, em alguns estabelecimentos de ensino, também o espanhol. E ninguém seguiria para a universidade sem dominar os fundamentos da filosofia (método lógico de raciocínio, visão abrangente das escolas filosóficas, estudo dos textos básicos dos grandes mestres) e sem conhecer literatura clássica (os latinos eram lidos no original). Os livros didáticos daquela época ainda podem ser encontrados nos sebos e comprovam o que afirmo.
Esse período de ouro é passado, infelizmente – um passado, aliás, que já ouvi muitos pretensos educadores tratarem com desprezo. Mas aquela escola preparou uma geração cujos frutos ainda repercutem, apesar de cada vez mais diluídos.
Em minha casa, por exemplo, além da biblioteca paterna, pela qual tínhamos profundo respeito, recebíamos aulas informais de argumentação oral. Aos domingos, meu pai me incentivava a ler os artigos de fundo e os editoriais de O Estado de S. Paulo. Em seguida, escolhendo os pontos mais polêmicos, provocava o debate, muitas vezes radicalizando de maneira proposital o seu raciocínio, com o objetivo de forçar minha refutação. Quantas vezes fiquei encurralado, sem respostas. E em raras ocasiões, ao pressentir sua derrota, ele começava a rir, pois eu conseguira fisgá-lo. Lembro-me de, ao final daquelas tardes, imaginar-me entre os peripatéticos. Quando nossas discussões terminavam, um sentimento de orgulho me reconfortava, pois sabia que algo novo e melhor fora acrescentado à minha inteligência.
Se aquelas tardes foram possíveis, se meu pai conseguiu abrir minha consciência e meu discernimento daquela forma, foi porque recebeu uma formação escolar sólida, na qual os alunos jamais eram nivelados por baixo.
Revendo meus anos escolares, percebo que a decadência do ensino estava em marcha. Dentre as línguas, estudávamos apenas inglês, e não me recordo de, na aula semanal de filosofia, ter avançado além de uma rápida história das escolas filosóficas. A própria formação dos professores era desigual. Quando o Estado encerrou, de maneira arbitrária, o 2º Grau no Colégio Romeiro Pereira – em minha cidade natal, Jundiaí-SP – e fomos forçados a migrar para outras escolas, me surpreendi com a mediocridade de alguns dos professores que encontrei no Ana Pinto Duarte Paes. Um professor de história, por exemplo, nos obrigava a decorar as apostilinhas superficiais que ele elaborava e depois distribuía em classe, tremendo e espargindo perdigotos, profundamente emocionado ao nos ensinar que os gregos inventaram o bambolê. E havia também uma professora de inglês que passava as aulas folheando o Diário Oficial e fazendo comentários sarcásticos sobre os nomes estrambóticos que encontrava, esquecendo-se de que ela mesma atendia pelo nome de Dausinéia. Suportei apenas um ano aquela palhaçada. Transferido para o Instituto Experimental de Educação, reencontrei o prazer de estudar ao conhecer pelo menos três grandes mestres: Cecy Martinho (história), Paulo Bevilácqua e Paulo Vieira (ambos de língua portuguesa).
A derrocada da escola alcançaria seu ápice, no entanto, com a "progressão continuada". Por meio dela, com a desculpa de se promover oportunidades iguais em uma sociedade injusta, premia-se a negligência e a inércia. Milhares de alunos chegam à universidade sem estarem alfabetizados, impedidos de exercer qualquer juízo crítico que vá além de decidir entre as marcas de papel higiênico num supermercado. E sem conhecer nem mesmo a borda do que a humanidade acumulou em sua história.
Ao passar a falsa idéia de que somos todos iguais, a escola equipara o aluno dedicado, e que deseja se superar, àquele que sempre será, no máximo, mediano. Infelizmente, esqueceu-se, neste país, uma verdade simples: não se adquire conhecimento sem esforço, sem auto-superação. Assim, ensina-se menos e exige-se menos – e ao final, conseguimos uma horda de analfabetos. Um recurso perfeito para melhorar as estatísticas apresentadas à ONU e ao Banco Mundial, mas que substitui a meritocracia pelo deserto da ignorância.
4 comentários:
E o pior de tudo é quando vc percebe o trabalho que terá pela frente se quiser suprir o imenso vácuo deixado pela péssima educação - tudo se torna mais difícil, dos idiomas à apreensão de noções básicas da filosofia.
Legal vc ter comentado lá blog sobre o texto de Merquior. Foi aquele texto que me apresentou Harry Levin!
Abraço!
Você está certa, Evelyn. Preencher as lacunas, digamos, naturais da nossa formação já é um trabalho para a vida toda. Agora, quando a própria escola se incumbe de tranformar essas lacunas em verdadeiros fossos, então a tarefa ganha características desumanas. Quanto ao Merquior e ao Levin, qualquer elogio é pouco. Grande abraço e bom final de semana, Evelyn!
Rodrigo, some-se a isso o fato terrível de que as diretrizes curriculares do MEC desobrigam as faculdades de Letras (que é onde ainda milito) de terem carga maior de Literatura. Mas as obrigam a ter horas e horas de disciplinas pedagógicas. Ou seja, o infeliz aprende todas as técnicas do como ensinar, mas não aprende o que vai ensinar. Saída para isso? Não vejo nenhuma.
Há várias questões em jogo aí, Ricardo. Em primeiro lugar, erudição se transformou num termo pejorativo entre nós, infelizmente. Em segundo, quando cursei Letras, na PUC-SP, mais ou menos no início da década de 1980, já naquela época todo mundo tinha de saber Roman Jakobson de cor, mas ninguém precisava ler Machado de Assis... Quando muito, vc analisava uma capítulo minúsculo, onde, segundo os mestres, a "primeiridade" pulsava de maneira inigualável. Imagino, então, como as coisas devem estar hoje... Risíveis, suponho...
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