junho 28, 2007


Bruno Tolentino (1940-2007)


Talvez

Vem quase todo dia
aquela hora muito lenta, aquela
oscilação da hora fria
em que a sombra amarela

do dia embobinado na procela
balança, assume a forma esguia
de um casulo, e sugere a agonia
de algum verme: antecipa-se a bela,

a futura, a perene borboleta,
e é como a eternidade
que se insinua, a esquiva silhueta

pairando como às voltas de si mesma
com um aroma de luz e de umidade:
a alma entre o nada e a lesma?

II

Algo intangível anda pelos cantos
deste lugar estreito
quando os corpos transbordam do leito
e enrolam-se nos mantos

de uma conspícua viuvez, os agapantos
dos campos desolados do perfeito...
Algo que agora não se vê direito,
se algum dia se viu, entre tantos

trapos, espectros, ângulos, promessas...
Algo invisível como a própria alma
balança-se com a calma

dos morcegos que dormem com as cabeças
apontadas de dia para o chão.
Há resquícios assim em mim. Acordarão?

(De As horas de Katharina, Editora Cia. das Letras, 1994.)

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